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Anacleto e o Paraíso

Anacleto sonhava e seus sonhos envolviam sua morte. Esta era sua obsessão e era natural que além de fazer parte constante do seu cotidiano, povoasse recorrentemente seu subconsciente, manifestando-se em sonhos tão fantasmagóricos quanto fantásticos. Não era ingênuo a ponto de acreditar num pós-vida idealizado, entre nuvens e anjos, ou choro e ranger de dentes, dependendo da perspectiva; nem era cético a ponto de ver no fim o fim de tudo. Havia algo mais e ele tinha nascido com uma urgência muito grande de descobrir o que seria, sem se dar conta de que talvez estivesse perdendo a cada segundo a maior de todas as experiências possível. Jamais revelava seus sonhos a quem quer que fosse. Quando a mãe perguntava curiosa a respeito, desviava do assunto, dizia que raramente sonhava e, quando sonhava, era com coisas banais do dia a dia, da escola ou dos amigos. Poupava a mãe de mais dores não falando de sangue espalhado, ossos quebrados, pescoço arrochado ou do salto no espaço ao encontro do chão duro, batido.

Houve uma vez, no entanto, um sonho que teve muita vontade de contar mas guardou para si como o maior dos segredos, porque achou esquisito demais até para ele. Sonhou que tinha morrido, até aí nenhuma novidade, os sonhos sempre começavam por aí. Desta vez podia se ver sendo velado, acomodado num caixão, rodeado de flores brancas e vermelhas. Viu seu pai Cleto consolando a mãe Ana que chorava copiosamente. Havia parentes, próximos e distantes, vizinhos consternados e curiosos, professores pesarosos e alunos tentando conter os sorrisos. Panela e Colchonete estavam posicionados do lado de fora da sala, bem em frente à porta, observando silenciosamente todo o movimento, todo o burburinho. Padre Victor da paróquia local chegou solene com a Bíblia surrada às mãos para encomendar aquela alma inocente a Deus, sabendo que somente este poderia perdoar tal desatino cometido contra si próprio. Antes da primeira palavra proferida, Anacleto viu-se distante da cena, ainda que sentisse que estava exatamente no mesmo lugar. Tudo e todos haviam desaparecido!

Piscou freneticamente os olhos tentando entender o que acontecia. Sentiu uma brisa fresca soprar seu rosto enquanto um Sol quente aquecia o vento tornando-o agradavelmente morno. Ao seu redor somente grama, mato, plantas e árvores. Achou que era o Paraíso. Estava numa espécie de floresta tropical, em milhares de tons verdes vibrantes e intensos, cheia de vida. Flores coloridas de vários formatos e tamanhos quebravam a monotonia daquele império verde, tingindo aqui e ali com rosas e azuis, amarelos e lilases, roxos e brancos. Recebiam a visita de abelhas e insetos variados. Estes zuniam alto formando o fundo de uma gigantesca sinfonia de trinados, pios e gritos dos pássaros. Acompanhou o voo de um pequeno sabiá laranjeira acima das árvores mais altas, riscando o céu azul claríssimo, manchado aqui e acolá de nuvens brancas, fofas e algodoadas. Quebrou o pescoço em direção ao chão e viu milhares de formigas marchando apressadamente pelo chão. Formavam um rio vermelho escuro de soldados disciplinados em busca de comida. Notou adiante um revoar de moscas e mosquitos ao redor de um mesmo corpo no chão. Era um pequeno roedor morto, a carcaça aberta mostrando vermes alimentando-se da carne putrefata. Tudo, absolutamente tudo, na mais perfeita harmonia.

Pouco a pouco toda aquela imensa barulheira começou a sumir. Cada bicho, cada pássaro, cada inseto foi silenciando um após outro, até que só se ouvia o murmúrio do vento e o estalar de um galho seco. Atentando um pouco mais podia se perceber o pisado forte e macio de uma onça faminta. Pata após pata, declarando num ronronar intenso: meu… tudo meu… Passou por ele sem vê-lo; somente um arrepio gelado correu de sua nuca à ponta do rabo comprido, pressentindo o que não se pode pressentir. Anacleto acompanhou o afastar do arisco animal observando maravilhado as pintas escuras na pele branca-amarelada brilhante. Meu… tudo meu… meu… foi-se misturando-se entre as folhagens, num disfarce perfeito revelado apenas por um par de olhos furiosos que, quando eram percebidos, era muito tarde. Os murmúrios, sons e a algazarra voltaram aos poucos conforme a dona do pedaço se afastava. Ele ficou por alguns instantes, que poderiam ter sido segundos ou centenas de anos, embevecido por aquele momento, até que um clarão de um milhão de lâmpadas explodiu em seus olhos, seguido de um estrondo ensurdecedor. Pensou que estava cego e surdo até que viu as primeiras gotas prateadas de uma chuva grossa lavar seus olhos e correr pelo seu corpo. Em pouco tempo a água gelada formou uma lâmina no chão lavado, refletindo o mundo num espelho cheio de pingos. As águas tinham endereço, correndo em direção aos filetes de riachos que alimentavam o rio volumoso adiante. Era fundo e transparente, mostrando centenas de peixes no seu interior, sapos e jacarés às suas margens. A água da chuva recolhida dobrou seu volume e em pouco tempo arrastou tudo que lhe era próximo. Passado o temporal, no entanto, tudo voltou ao normal, os que sobreviveram deixaram suas tocas e se alimentaram dos peixes deixados às margens do rio.

O tempo e o espaço não eram barreiras para Anacleto que movia-se para frente ou para trás, para cima ou para baixo num piscar de olhos. Explorava incessantemente tudo à sua volta e mais além. Observava o nascer do Sol acompanhando segundo a segundo sua posição no firmamento, até que este se punha, escondendo-se atrás de uma noite ora escura, ora coalhada de um tapete de estrelas brilhantes e infinitas e uma Lua de várias fases e brilhos. Resolveu descobrir onde se formava aquele rio, seguindo por ele na direção oposta do fluir de suas águas. A cada passo, menor o rio ficava. Menor e menor, até se tornar um fiapo de água cristalina e pura brotando do interior da terra, no alto da serra. Seguiu um pouco mais adiante e viu, do alto da escarpa rochosa que espetava os céus com quase um quilômetro, o mar, gigantesco, batendo-se sobre a terra lá embaixo. Voou lentamente sobre a vegetação pantanosa de terra escura, onde siris e caranguejos olhavam arregalados os pássaros que se aproximavam, e chegou a uma enseada de areia branca e brilhante, pedras moídas pelo tempo. Sorveu o ar marinho, sopa de vida, e sentiu a benção do equilíbrio terra e água, fogo e vento. Tudo é realmente perfeito, tão perfeito como a gota de água que respinga do mar sobre a rocha aquecida pelo Sol e evapora numa nuvem de chuva para retornar ao mar.

Costeou todo litoral em direção ao norte e entendeu que o mar era realmente muito grande! Resolveu atravessá-lo e viu nele muito mais vida, furacões e tormentas, segredos profundos em suas entranhas. Chegou novamente a terras firmes, secas, totalmente secas, mas ainda assim cheias de vida. Escalou os picos mais altos, gelados, sem oxigênio, para descobrir que uma vez lá, só resta a descida. Viu a terra ranger e quebrar-se em pedaços, separando-se em duas, abrindo feridas. Viu jorrar de dentro dela fogo e pedra derretida, destruindo com fogo e cinzas tudo ao redor. Também viu as primeiras folhas de grama verdinha rompendo o tapete da destruição. Alcançou as calotas da Terra, onde só há gelo e vastidão, mas mesmo ali viu a vida se manifestando, na pureza da neve branca, em profusão. Em tudo, absolutamente tudo, havia harmonia e resposta, não havia perguntas nem confusão. Tudo lhe era familiar, como as coisas que aprendemos na escola ou vemos nos filmes da televisão. Era tão natural, tão próximo e verdadeiro, que chegou a pensar que não havia morrido, que não havia ido pra lugar algum. 

Resolveu subir o mais alto que pudesse, na direção do Sol a pino, para ter uma visão geral do lugar. Foi subindo lentamente, cada vez mais alto. Passou pelas montanhas mais altas, as nuvens mais carregadas, viu os animais alados mais poderosos muito abaixo de si. Subiu e, à medida que subia, sentia o desconforto do ar rarefeito, a falta do entorno para o qual fomos criados. Avistou o contorno dos continentes, separados pelo mar. Viu a semelhança com os mapas e globos geográficos da escola. A partir de uma certa altura as cores ficaram difusas, cada vez mais homogêneas, num tom cinza-azulado, frio e distante. Passou pela Lua esburacada e viu diante de si o mesmo planeta azulado, a mesma Terra bendita e perfeita, flutuando na imensidão infinita do Universo.

Anacleto acordou ofegante e ensopado, buscando inspirar o ar que lhe faltava. Viu-se apavorado sentado sobre sua cama, em seu quarto, em sua casa. Precisou de alguns instantes para perceber que havia sonhado um sonho intenso, mais real que a própria realidade. Só então deu-se conta que no Paraíso sonhado não havia seres humanos.

CaMaSa

Anacleto e a Viúva Negra

A cada nova aventura a fama de Anacleto aumentava e, como de bobo ele não tinha nada, começou a tirar proveito da situação. No começo eram os agrados da vizinhança, com presentes de todos os tipos e sabores. O Seo Minorú da quitanda trazia um cacho de bananas, o Pestana do açougue um quilo de coxão mole, o Senhor Alcebíades da papelaria um caderno espiral de 100 folhas, que só tinha 96. Pouco a pouco, no entanto, a coisa foi tomando outra proporção, criando uma rede de interesses entre fabricantes e comerciantes diversos de roupas e panelas, eletrônicos e materiais de construção, anunciantes em geral e os meios de comunicação. Agora ele dava entrevistas vestindo roupas da Ducal e sapatos Samello, segurando um liquidificador Walitta ou ouvindo um rádio Philco de pilha Eveready. Ele agora era o garoto mais popular da escola, do bairro e da cidade, quem sabe até do país. Assim que numa tarde modorrenta de fevereiro, com o Sol castigando os desprevenidos e fazendo a alegria dos endinheirados à beira das piscinas nas mansões dos Jardins, tocaram à sua porta representantes de uma fabricante de motocicletas japonesa, a Yamaha, oferecendo uma proposta de parceria. Ele seria o garoto propaganda da RD 350 e como cachê receberia um modelo novo em folha!

A Yamaha lançou no ano de 1973 uma moto que marcaria de vez a história do motociclismo mundial, a RD 350. Sua produção aconteceu entre 1973 e 1993, duas décadas que marcaram a época e que a deu o cruel apelido de Viúva Negra. Este apelido se deve à grande ineficiência dos freios das RD´s 250/350 anos 70, que povoavam as ruas brasileiras, importadas entre 73 e 76. Seus enormes freios a tambor e posteriormente disco simples na dianteira eram ineficientes para frear uma moto que atingia com extrema facilidade, velocidades de 180 km/h. Naquela época não havia preocupação com a segurança de motoristas e passageiros, tanto em carros quanto em motocicletas. O uso de cinto de segurança em automóveis se tornou obrigatório somente em 1989, mas apenas nas rodovias. Já em 1998, ao entrar em vigor o atual Código de Trânsito Brasileiro, a utilização do cinto de segurança passou a ser compulsório em qualquer via pública e por todos os ocupantes do carro. O uso obrigatório do capacete tornou-se lei desde a edição do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em 1997. Ainda assim, sem qualquer fiscalização, essa não é a realidade para muitos motociclistas no Brasil. A publicidade vendia a masculinidade de Marlboro, a potência dos Mavericks e a liberdade do vento no rosto à cavalo de duas rodas e um motor de 350 cilindradas, joelhos de parachoques e olhos de parabrisa.

Ana e Cleto ficaram apavorados. Só de imaginar seu Cletinho pendurado numa máquina daquelas já dava pra ver a cor do caixão. Negaram e renegaram, a mãe chorou, o pai socou a mesa, mas a infinita persistência do rapaz foi minando pouco a pouco a resistência dos pais, até que depois de muitas juras e promessas que todos sabiam jamais seriam cumpridas, assinaram o contrato. Anacleto já conhecia a fama da moto, havia lido a respeito nas revistas especializadas e notícias de jornal. Sentia que era chegado seu momento e, melhor do que já havia sonhado, seria em grande estilo. Sim porque, para ele, alguém tirar a própria vida era um ato de covardia sem significado. Seu objetivo era outro. Queria cruzar a fronteira, descobrir a outra face da moeda da vida, conscientemente, deixando claro para todos que buscava marcar sua geração, deixar um legado. Para ele cortar os pulsos esvaindo-se da vida num rio vermelho, deixar-se pendurado por uma corda no pescoço, balançando tristemente pelo ar, expirado, eram fraquezas indignas e uma tremenda demonstração de ingratidão. Sempre perseguiu seu intento para saciar a sede de compreensão de toda raça humana sobre o maior de todos os mistérios. E, também, porque era meio patusquela!

Seja como for,  dez dias depois da assinatura do contrato assinado, lá estava ele fantasiado de motociclista, em cima de uma RD preta brilhante, a cara do Mal em forma de aço e borracha, com um sorriso enigmático de quem já sabe o final da história. A fábrica providenciara um instrutor para algumas aulas rápidas, o suficiente para saber onde se ligava e como se conduzia aquele bicho de metal. Insistiu muito sobre os freios, mas Anacleto pulou essa etapa e foi direto para o acelerador. Não que fosse fazer muita diferença. Pilotos profissionais, infinitamente mais experimentados, haviam sucumbido àquele conjunto inapropriado de frenagem. Para o bem ou para o mal, Anacleto saiu às ruas montado naquele pequeno foguete.

O bafo quente do asfalto derretendo em pleno verão, misturado à fumaça de óleo diesel dos ônibus e caminhões, batiam em seu rosto nu, deixando para trás de si o barulho duro, seco e metalizado daquele motor de 347 cm3 que desenvolvia 39 cv de potência a 7.500 rpm e torque máximo de 3,8 m.kgf a 7.000 rpm. Seu torque em baixa rotação era quase nulo, seu surto de potência ocorria a partir dos 5.000 rpm. Com apenas 143 kg de peso, atingia velocidade máxima de 166 km/h e acelerava de 0 a 100 km/h em cerca de 7s. A sigla RD, significa Road Developed, podendo ser traduzido para Feita para Disputas. Anacleto arrancava ao piscar a luz verde dos semáforos, deixando boquiabertos os demais motoristas, espantados com a velocidade. Sua primeira parada foi o colégio. Entrou no pátio do estacionamento rugindo potência, como um leão anunciando sua realeza. Desceu da moto, largou-a fumegando sob os olhares incrédulos e admirados de alunos, professores e funcionários, seguindo em direção à sua classe displicentemente, como se chegar daquela maneira era a coisa mais comum num mundo em que ter uma Cinquentinha fazia de você um príncipe!

Colchonete e Panela não podiam acreditar. Se postaram ao seu lado durante o recreio, como guarda-costas, para impedir o assédio. Mantinham os pivetes inconvenientes afastados e filtravam as perguntas e manifestações de respeito e admiração. Deixavam passar somente os sorrisos e olhares, agora apaixonados, das garotas mais cobiçadas do colégio. Os invejosos cochichavam ao longe, sem resistir a dar uma olhadela de rabo de olhos naquela máquina imponente. Os dois amigos planejavam usufruir daquela maravilha o quanto antes, mas Anacleto tinha outros planos para aquela tarde. Deu todas as respostas e conteve a excitação e entusiasmo dos dois para, ao final das aulas, dirigir-se à RD com toda a calma e tranquilidade. Passou a perna sobre o banco encaixando-se naturalmente. Girou a chave no contato e bateu o pedal com força. O motor gritou atingindo duramente os ouvidos despreparados. Antes de forçar a alavanca do câmbio para baixo, sentiu um toque suave em seu ombro. Dois olhos castanhos flutuantes miravam em sua direção. Da boca carmim, logo abaixo de um narizinho elegantemente arrebitado posicionado entre maçãs do rosto rosadas, saiu uma frase em forma de música:

– Me tira daqui…

Verinha Furacão era bem conhecida na escola. Por meio segundo Anacleto pensou se aquilo realmente estava acontecendo, era muita areia pro seu caminhãozinho! Então lembrou-se que não estava de caminhão, mas  sentado em cima de sua moto. Na outra metade do segundo, fez que sim com a cabeça e viu a garota sentar-se atrás de si, abraçando-o fortemente. Ele sentiu-se invadido por uma sensação de poder e realização, formigando de prazer dos pés à cabeça, e saiu em disparada, sentido o abraço cada vez mais apertado, à medida que a velocidade aumentava. Ela gritava “Corre, corre”, e ele respondia prontamente. Quanto mais corria, mais ela o apertava, e mais ele corria e mais ela gritava. O mundo, o tempo e o espaço, tudo entrou numa dimensão especialíssima de ação, emoção e prazer intensos. Tudo à sua volta parecia mover-se num outro ritmo, em câmera lenta, como se ele pudesse antecipar-se aos outros, prevendo seus movimentos. 

De repente, um leve toque de parachoques tirou-o do devaneio. “Corre, corre…”, Verinha gritava. E ele viu em seu retrovisor um Ford Galaxie 500 vermelho rugindo atrás de si. Era o ex-namorado, loucamente ciumento, que a havia procurado na escola com intenção de convencê-la a reatar o namoro. Um choque de adrenalina pura percorreu seus corpo e milhares de células explodiram de consciência. Seu fim sobre a moto era aceitável, mas sua obrigação era salvar a menina, já que estava claro que as intenções de alguém com um tanque de 1.780 quilos voando sobre você são bem claras. O cara perdeu a cabeça quando os viu saindo juntos na moto e, no momento, não seria possível tentar conversar. Estavam na Radial Leste, já haviam passado o Tatuapé, e a agilidade da moto era compensada pelo motor de 164 cv de potência e velocidade de mais de 155 km/hora. Passaram alguns faróis vermelhos e logo uma legião de carros da polícia perseguiam os dois com as sirenes a todo volume. Anacleto viu adiante um ônibus escolar atravessando lentamente a avenida, parado diante de outros carros à frente. Avaliou a possibilidade de passar entre o pequeno espaço entre o ônibus e o carro à frente, mas imaginou que o Galaxie não frearia a tempo e atingiria fortemente as crianças, causando uma enorme tragédia. Num ato puramente instintivo, apertou os freios sabendo que eram insuficientes para brecar a moto, mas o suficiente para diminuir a velocidade e passar para a pista lateral trazendo o carro atrás de si. 

Um silêncio sepulcral entrecortado por guinchos de pneus arrastados no asfalto e metal chocando-se num muro espalhou-se pela avenida. A moto bateu no meio fio da calçada arremessando Anacleto e Verinha pelos ares, que voaram sobre a parede e aterrissaram sobre um monte de areia fofa usada na construção próxima. O Galaxie subiu sobre o guard rail de proteção da avenida, girando sobre si e pousando vinte metros adiante com as quatro rodas para cima. Ninguém se feriu, as crianças do ônibus escolar assistiram a tudo entusiasmadas e puderam ir para a escola, com uma história incrível para contar. Verinha correu apavorada ao encontro do ex-namorado, temendo pelo pior, mas tranquilizou-se quando viu que ele estava ileso. Este, mais calmo, depois do tremendo susto, abraçou-a pedindo desculpas. Se beijaram apaixonadamente sob os olhares incrédulos dos policiais que parabenizavam Anacleto pelo ato de bravura. Este olhava para o que sobrou da moto e concluiu que não sobrava mais nada.

Foi condecorado, homenageado e entrevistado. Sentiu seu sonho esfarelar-se e prometeu a si mesmo que na próxima seria mais competente.

CaMaSa

Anacleto e o Sequestro – Parte 3

Maria Letícia abriu os olhos muito lentamente, deixando entrar aos poucos a luz da realidade em suas retinas. Despertava de um sonho estranho e esquisito, como se a agulha da sua vitrolinha tivesse saltado seu curso normal e tivesse arranhado a face do vinil com um som garranchento e feio. Sentiu, antes mesmo de abrir os olhos completamente, um odor sujo de um colchão velho e puído, de pouco estofo e bolorento. Também sentiu nas delicadas narinas o cheiro de paredes sem reboco e de telhas de amianto vazadas pela chuva, pela luz do Sol e da Lua, vazadas pelos mosquitos e ruídos. Sentiu na verdade, antes de se dar conta de onde estava, o cheiro da miséria. Não da pobreza, que ela conhecia bem das ações beneficentes organizadas pela igreja e que só tinha a mão estendida e a boca aberta para agradecer. Inspirou profundamente a penúria raivosa da fome e da falta de oportunidades que o ambiente exalava e soube que aquilo era algo que jamais havia experimentado na vida. Parou as pálpebras pela metade do caminho, temendo ver o que a luz de uma vela tremeluzindo tinha para mostrar. Quando finalmente olhou, arrependeu-se e cerrou novamente os olhos, fazendo-se como quem está dormindo.

* * *

Anacleto, Colchonete e Panela, investidos nos papéis de Reco-Reco, Bolão e Azeitona, tentavam compreender onde estavam e o que fariam para sair vivos daquela situação. Pelo menos dois deles ansiavam por isso. Haviam seguido o tal Ditão por becos e vielas labirínticas sem fim, até chegarem ao que parecia ser uma espécie de ginásio de esportes bem pequeno, plantado diante de um terrão retangular, que parecia ser um campo de futebol. Havia uma lâmpada amarela pendurada num poste em cada canto do terreno, mostrando a terra vermelha riscada aqui e ali por tinta de cal. A um comando do Ditão as crianças todas emudeceram e acompanharam os quatro até a sede da comunidade sem emitirem um som sequer. Dentro do pequeno galpão havia uma mesa retangular enorme que, provavelmente, fazia as vezes de mesa de ping-pong. O líder do bando abriu um mapa sobre a mesa e nele apontou para os rapazes onde estavam e onde ficava a casa dos bandidos. Explicou de que maneiras poderiam invadir o local, todas muito arriscadas e perigosas. Seria necessário um plano muito bem arquitetado para levar a empreitada ao êxito. Ele havia conseguido uma série de informações através da sua rede de garotos. Cada um trazia um relato: quando alugaram o casebre, quantos eram, quando acordavam, quando dormiam, cada mínimo movimento era acompanhado pelos moleques maltrapilhos e descalços que passavam despercebidos pela paisagem barrenta e poeirenta. Desse modo sabiam que eram três sujeitos, usavam um Fusca bege sem estepe, tinham quatro revólveres, 8 caixas de munição e dois facões. FBI perde! Haviam chegado no sábado anterior e feito pouco movimento até o dia de hoje, quando dois comparsas saíram no meio da tarde e voltaram no início da noite. Um deles ficou na casa, de guarda, e só saiu quando os outros chegaram, retirando um corpo, desmaiado ou sem vida, de dentro do veículo. O comparsa jogou um grande cobertor sobre o corpo e entraram rapidamente, batendo a porta atrás de si.

Anacleto fez várias perguntas sobre a estrutura da casa, quantas portas e janelas? Perguntou se havia um cão para dar alarme ou qualquer outro mecanismo para dificultar uma possível invasão? Queria saber se eles possuíam armas de fogo, além dos estilingues? Nada. A coisa mais perigosa ali era um canivete para descascar laranja. Quanto mais perguntava, mais Colchonete e Panela concluíam que deviam ir embora e, no máximo, passar numa delegacia. Verdade seja dita, o posto policial mais próximo estava a mais de 15 quilômetros dali e seria muito egoísmo partir sem prestar socorro para a vítima, se é que existia realmente uma vítima. Decidiram averiguar enviando dois guris para pesquisar a situação. Dois Palmos e Meio Quilo foram caminhando lentamente até a casa, como quem está passando fome e necessidade e bate na porta para pedir comida. Faziam bem esse papel, que aliás era a própria realidade deles e dos demais garotos da comunidade. O objetivo da missão era xeretar o que acontecia lá dentro e, para isso, enquanto Dois Palmos batia na porta e conversava com quem abrisse, Meio Quilo esticaria o pescoço para ver o que se passava lá dentro. O menino nem chegou a terminar a primeira frase. Com um safanão brutal o sujeito afastou-o da porta entreaberta, fazendo-o rolar sobre o parceiro que estava agachado atrás. Depois de meia dúzia de xingamentos, a porta foi batida com um estrondo. Os dois moleques fugiram em disparada, tomando o cuidado de fazer um caminho que não desse pista da verdadeira direção que tomariam e chegaram bufando, sem fôlego no galpão. 

Dois Palmos começou o relato, deixando todos decepcionados, à medida que avançava, com o resultado da “missão”, até que Meio Quilo falou com a voz firme:

– Tem uma moça!

Contou o que sucedeu para confirmar o que viu. Quando chegaram na porta da casa, agachou-se atrás de Dois Palmos e ficou olhando fixamente para a junção da porta com o batente. Nos segundos que a porta ficou aberta, com o homem entre eles, viu um pequeno catre e nele deitada com a barriga pra cima, estava uma moça, muito branca, com os cabelos castanhos escorridos sobre os ombros. Pôde perceber que ela respirava, até que o amigo tinha rolado sobre ele e os dois saíram correndo em disparada.

Não havia dúvidas. Estavam diante de um sequestro e lidando com pessoas muito perigosas. Começaram uma discussão sobre o que podiam e deveriam fazer, chegando à conclusão que podiam muito pouco e deviam acima de tudo garantir a segurança da moça sequestrada. Anacleto sugeriu que os amigos saíssem de lá até um lugar mais movimentado e tentassem encontrar um táxi que os levasse até uma delegacia. Colchonete insistiu que Panela fosse sozinho e ele ficaria com Anacleto dando uma retaguarda. Ditão escalou dois rapazes mais encorpados para acompanhar Panela em segurança até que encontrasse um táxi, o que era considerado um milagre naquele lugar e àquela hora. Panela seguiu pelos becos escuros ladeado pelos “seguranças” e, antes de quebrar a primeira esquina, virou-se para trás e viu os amigos diante do galpão, com uma estranha sensação de que algo muito ruim estava para acontecer com eles.

Mais confiantes pela possibilidade de terem socorro policial em algum momento, Anacleto e Colchonete puseram em andamento, com as sugestões de Ditão, um plano de resgate. O casebre tinha duas portas e quatro janelas, duas maiores e duas menores. A única chance que tinham era atrair os bandidos para fora e invadir a casa para libertar a refém. A comunidade tinha uma boa quantidade de rojões de São João que podiam ser usados para confundir os marginais, fazendo-os pensar que eram tiros de revólver de uma batida policial. Na região havia muitas casas de marimbondos e eles jogariam duas ou três dessas casas, colhidas num saco, para dentro do casebre. Ditão falaria pelo megafone usado nos jogos de futebol, simulando uma ordem de prisão. A ação teria que ser relâmpago para surpreender e não dar tempo de entender o que realmente estava acontecendo. O problema é que para dar certo, seria necessário um movimento inicial para ganhar alguns minutos da atenção dos marginais, enquanto um grupo de garotos plantaria os rojões em volta da casa. Alguém teria que bater na porta de entrada, conseguir atrair a atenção dos marginais por algum tempo e sair de lá sem levar um tiro. Anacleto venceu a eleição sem concorrência e, depois de calcularem o tempo necessário para cada ação, seguiu calmamente para a casinha agourenta e escura.

Dentro da casa Maria Letícia começava a entender a situação. Pelo jeito aqueles três homens não eram nada bons e, a menos que seu corretor ortográfico mental estivesse enganado, ela estava numa situação bem ruinzinha. Tentou um diálogo, mas, sinceramente, começou a achar que eles falavam outra língua ou, pelo menos, um dialeto do português desconhecido na cidade de São Paulo. Para satisfazer sua curiosidade se pôs a fazer uma série de perguntas complexas, deixando os três homens, em pouco tempo, exaustos mentalmente. Ameaçaram, mandaram calar a boca, gritaram e até pediram com educação, mas nada parava aquela matraca, uma invasão sem fim de palavras complicadas, difíceis de entender. Em defesa dos três marginais, diga-se de passagem, ninguém entenderia o que aquela moça falava, mas naquela situação, era muito benéfico o processo de atrapalhação mental a que estavam submetidos. Benéfico para ela, claro, pois a essa altura os sequestradores já estavam arrependidos de ter se envolvido nessa desventura. Para complicar, bateram à porta:

– Boa noite, alguém na casa tem interesse em discutir as vantagens e desvantagens do suicídio?

Seja pela dor de cabeça de tanto ouvir Maria Letícia, seja pelo profundo e alucinado golpe mental da pergunta, ou ainda pela aparência cadavérica de Anacleto no meio daquela noite sem pé nem cabeça, o Bandido nº 1, ao invés de por o rapaz pra correr, puxou-o para dentro, inserindo um convidado no sequestro e pondo em risco o plano de resgate arquitetado. Colchonete era o encarregado de dar o sinal de partida para a ação, mas ficou todo confuso com o amigo entrando na casa. Na dúvida, aguardou alguns minutos e abaixou a bandeira amarela, o sinal combinado. Na confusão que se seguiu, impossível de relatar na totalidade, tiros de rojão pipocaram imitando uma metralhadora, maria-ritas ensandecidas voaram distribuindo ferroadas a torto e a direito, Anacleto pegou Maria Letícia pela mão e saiu correndo fechando a porta atrás de si; os bandidos nº 2 e nº 3 para abrir a porta de entrada, enquanto o nº 1 descobria que haviam colocado pesos atrás da porta dos fundos. Viram-se os três bandidos aprisionados naquela arapuca e não tiveram outra saída do que jogarem-se pelas janelas, estilhaçando vidros pelo chão. Quando enfim conseguiram se ver livres, rolaram pelo chão gemendo de dor por causa das picadas. Ditão retumbava sua voz de prisão pelo megafone, enquanto Panela chegava orgulhoso com três rádio-patrulhas preto e laranja, da cor da vitrolinha caída ao lado da cama do sequestro.

Os três amigos mais Maria Letícia chegaram no bairro pela manhã, levados por um cortejo de viaturas policiais. O prefeito desta vez ficou atrás do governador, que exaltou a coragem e o altruísmo dos rapazes, exemplo a ser seguido. Anacleto, decepcionado com o resultado da aventura, avaliava o que podia ter dado errado e nem percebeu quando o governador espetou uma medalha em seu peito. A picada trouxe-o para a realidade e nela o governante conversava com a mocinha:

– E você, minha linda jovem, gostaria de declarar algo?

– Sim. Quero saber quem ficou com a minha vitrolinha laranja?

CaMaSa

Anacleto e o Sequestro – Parte 2

Há situações na vida, arriscadas e perigosas, nas quais tudo que queremos é ter ao nosso lado a companhia ideal. Alguém seguro e experiente que saiba o caminho das pedras, o segredo do cadeado, voar sem asas ou pelo menos que diga as palavras certas na hora do aperto. Quando o calafrio na espinha atingiu o ponto mais baixo das colunas vertebrais de Colchonete e Panela, eles tinham certeza absoluta que Anacleto não era essa pessoa. Não só ele não estava tremendo de medo diante do estranho mal encarado olhando para eles, como também tinha no rosto um sorriso de paz e tranquilidade de quem havia encontrado seu finalmente. No silêncio tétrico que se seguiu à pergunta do sujeito nada amigável, só se ouvia os dentes do Panela batendo e a barriga do Colchonete se revirando, prenúncio de coisa muito ruim se materializando. Anacleto deu o tom da conversa respondendo com uma pergunta:

– E você, quem é?

Os dentes do Panela bateram uma última vez. Cerraram tão fortemente que pareciam ter nascidas grudadas as arcadas superior e inferior. Terror era pouco! De ambos os lados do homem surgiam pouco a pouco pares de olhos brilhantes, injetados de sangue. A matilha era enorme! Colchonete afrouxou a musculatura e emitiu um sonoro “Valha me Deus”, simulando o escapamento do DKW 3 cilindros que os largara naquela roubada. Pelo cheiro, podia-se dizer que ele já estava morto, fazendo jus à expressão: Morto de Medo. Anacleto, entre os dois, mantinha a atitude serena e desafiadora, braços cruzados na altura do peito, queixo erguido à frente, por sua vez corroborando a expressão: Morreu Feliz! O grupo foi saindo das sombras, aproximando-se da luz amarelada do poste, único aliás num raio de 200 metros. Eram crianças e adolescentes maltrapilhos que, pela aparência, não viam banho e sabão há algum tempo. O homem se chamava Ditão, era líder da comunidade próxima e, naquele momento, fazia a ronda noturna de segurança. Os três amigos, um pouco mais calmos, hesitaram um pouco mas acabaram revelando o motivo de estarem ali. O homem disse então que realmente havia percebido algo fora do comum naquela casinha mais adiante, mas achava que deveriam ser homens perigosos, que não era conveniente enfrentá-los de peito aberto. Os olhos de Anacleto brilharam de prazer…

* * *

Maria Letícia era um doce de menina. A pele clara, os cabelos escuros, como os olhos, duas jaboticabas. A adolescência a fizera mais bonita, encorpara um pouco, não muito, na medida certa que exige esse período de transição entre moleca e moça, não muito magra, nem gorda. A vivacidade estava um pouco mais contida, mas a curiosidade expandira grandemente. Não de modo inadequado. Ela carregava nas atitudes e comportamento as marcas claras de sua posição. Nascera em família abastada da emergente Mooca, não a tradicional, dos cortiços e fábricas poluentes, mas a nova, moderna, que se espalhava pela Avenida Paes de Barros pelos altos da Mooca, passando pelo ponto mais alto na caixa d’água, até atirar-se como água de uma cascata até a Vila Prudente e suas favelas miseráveis. No seu reino familiar ela era a princesa com direito a estudar no colégio Dante Alighieri e frequentar, aos domingos, às 11hs, as missas dos jovens da Igreja São Rafael. Ali teve contato com rapazes e moças diferentes, vindos de extratos diversos, com visões de mundo e aspirações muito mais simples, práticas e acessíveis que as suas. Ela desejava um Príncipe e, se entre as novas amizades seu coração escolheu alguém para o papel, manteve o segredo bem guardado em seu coração, sem que alguém soubesse ter ela dado um inocente beijo em alguém do bairro.

Os encontros dominicais serviam para criar um vínculo espiritual com a igreja e comentar os bailinhos do sábado e as domingueiras de logo mais à noite. Nesses momentos o brilho nos olhos de Maria Letícia diminuía um pouco. Queria saber dos encontros, das danças de rosto colado e dos beijos à meia luz. Os namoricos que pipocavam entre as meninas e meninos do grupo, a inocência que ia se perdendo lenta e gradualmente, irreversivelmente. Vivia através das histórias contadas em detalhes o que não podia viver por si mesma. As paqueras, os olhares, toques de mão, os abraços mais ou menos apertados, os beijos, na testa, no rosto, nos lábios, de língua… A temperatura só aumentava, em pleno inverno, e fazia nascer nela uma vontade, um desejo, uma sede que água alguma saciava. Era muito melhor que as fotonovelas…

Os pedidos aos pais para ir a um bailinho, uma domingueira, eram constantes, mas não insistentes. Não ao ponto de faltar com o respeito, incomodar ou interromper o fluxo harmonioso do lar. Mesmo assim, era bem evidente que a filha estava crescendo, deixando de ser menina, e seria necessário, além de um acompanhamento mais intenso e rigoroso, mostrar, através de símbolos próprios do status que pertenciam, a direção correta que ela deveria seguir. Num sábado à noite, Maria Letícia rabiscava queixas e lamentações em seu diário, imaginando o que faziam naquele momento seus amigos no bailinho da Mirtes, famosa, entre outras coisas, pelos bailinhos na garagem de sua casa. Todos foram convidados, ela também, mas desta vez nem chegou a pedir para sua mãe deixar ela ir. Trancou-se no quarto e ficou pensando como seria chegar ali e ser tirada para dançar. Ele estaria lá. Diria não a todos os outros até que ele chegasse nela. E se abraçariam, quem sabe um beijo. De repente seu devaneio foi interrompido por batidas na porta. Pulou da cama e abriu a porta correndo. Viu seus pais sorridentes, ela não entendeu nada até reparar que seu pai tinha algo em suas mãos. Ela quase caiu de costas quando viu o que era. Uma vitrolinha laranja portátil!

Transferência é o ato ou efeito de transferir. Transferem-se direitos, propriedades, valores ou dados. Transferem-se objetos e ensinamentos, talvez o amor e carinho de alguém para outro. Na infância e juventude talvez seja possível transferir desejo e vontade para um objeto. Pelo menos por algum tempo. Maria Letícia transferiu toda frustração por sonhos juvenis não realizados para aquele objeto altamente tecnológico e inovador. Esqueceu bailinhos, amizades e príncipes. Ligou animada a vitrolinha na tomada e pôs-se a tocar um long play atrás do outro, dançando sem parar ao ritmo das músicas que eram sucesso na época. Era mágico observar o vinil preto girando sobre aquele objeto brilhante, laranja, a agulha flutuando sobre os sulcos, tirando os acordes dos instrumentos, as vozes dos cantores e o chiado inconfundível de uma época que seria enterrada pelo rio do tempo, que viveria somente na memória daqueles que ouviram.

Para interromper o idílio musical, seu irmão mais novo veio chamá-la para a janta. Muito a contragosto ela desceu e encontrou os pais impacientes sentados à mesa. Sábado à noite era tradição naquela casa a pizza da São Pedro, na época um local pequeno e familiar, que fazia uma redonda artesanal à mão. O próprio Seo Rafael vinha entregar a encomenda, eventualmente acompanhado do filho Cacau, para que este aprendesse quem eram as famílias respeitáveis do bairro. A de mussarela e a de calabresa já descansavam fumegantes acompanhadas de um tinto da casa. Nesses dias o pai deixava provar um golinho, para aprender o vinho e não se deixar fazer de boba. Ela comia rapidamente, ansiosa para voltar ao quarto e à sua vitrola de plástico cheirando à novidade. Mal podia esperar para contar a novidade a todos. Com certeza tinha quem iria morder o próprio cotovelo. Seus pensamentos foram interrompidos pelo anúncio do seu pai:

– Hoje à noite, depois de comer, iremos todos à casa do tio Benevides!

Não sei se porque ela estava com a boca cheia de pizza, ou por causa da alegria e gritaria que se seguiu, ou porque não valia à pena tentar argumentar com seu pai, mas Maria Letícia se viu como um autômato seguindo seus irmãos, mãe e pai na direção da garagem, onde o Aero Willys, o primeiro carro brasileiro de luxo, que só era utilizado nos passeios familiares, aguardava já de motor ligado. Portas fechadas, seu pai manobrou até a calçada e quando voltava para o assento do motorista após fechar o portão, ela lembrou que havia deixado a vitrolinha ligada, com um disco girando sobre ela. Pulou do carro e disse aos pais que iria desligar o aparelho e voltava voando. Ia num pé e voltava no outro. O pai, muito bravo, permitiu que ela fosse rapidamente. Ela atravessou a garagem e entrou pelo quintal lateral pela porta dos fundos, onde ficava a cozinha. Entrou, atravessou a sala, subiu as escadas e entrou no quarto. Olhou para o local onde até pouco tempo atrás a música girava de um disco e não viu nada. Olhou ao lado da cama, sobre o criado, imaginou que o irmão estava pregando alguma peça, quando sentiu atrás de si um corpo. Duas mãos a fizeram girar 180 graus bruscamente e uma voz dura e fria deu uma ordem: 

– Não dá um pio.

Não era necessário. Ela desmaiou antes do pio.

CaMaSa

Anacleto e o Sequestro – Parte 1

Para o bem ou para o mal, a fama de Anacleto crescia sem parar. Muitos o consideravam alguém especial, com dons e poderes superiores, uma espécie de enviado dos deuses. Já outros viam nele somente predicados negativos, portador do azar e más influências, o próprio filho do coisa ruim. Dona Tinha mesmo era uma que sempre se benzia três vezes quando passava na porta da casa “deles”, como agora se referia aos vizinhos, com uma aguda lembrança dolorida no estômago. Os três seguiam sua rotina, indiferentes aos comentários maliciosos. Cleto saia cedo para o trabalho, tomando um café apressado e dando o infalível beijo de despedida em sua amada Ana. Ela preparava o lanche do filho e, depois que ele ia para a escola, cuidava da casa ouvindo as notícias através da Rádio Nacional. Divertia-se com os shows de variedades e músicas, mas ficava muito preocupada com as ocorrências policiais, cada vez mais assustadoras. 

Anacleto por sua vez havia aceitado bem a transição para o colegial. Na realidade a maioria da classe eram seus velhos conhecidos, todos cientes das suas esquisitices. As novidades eram 2 ou 3 alunos vindos de outros colégios. Entre eles um rapazola magrelo, de cabelos compridos e cara de quem não dormia há alguns dias. Seu nome era José Ricardo, mas trouxe consigo o apelido de Colchonete, por motivos óbvios. Ele e Anacleto tornaram-se amigos de imediato, não por afinidade ou algum interesse comum, mas pela falta de entrosamento com os demais. Colchonete ficou admirado quando soube que Anacleto era nome, não apelido. Também ficou espantado com as tendências do novo amigo e contou que não conseguia dormir antes das 3 horas da manhã, e que por isso estava sempre com sono. Foram trocando informações como quem narra detalhes da vitória do seu time de futebol na última rodada e, de repente, eram amigos!

Juntou-se à dupla outro rapaz, Pedro de Assis, vulgo Panela. Sabe-se que quando ele tinha 5 anos de idade, meteu na cabeça uma panela de ferro para brincar de soldado. Colocou a danada depois de muito corre-corre e disparos imaginários, tiros pela boca e mortes de faz-de-conta. A cabeça suada e os cabelos escorridos grudados no crânio facilitaram o encaixe, mas depois, sabe-se lá se os cabelos secaram e engrossaram ou era mesmo o momento do crescimento, o que aconteceu foi que a caçarola se prendeu de tal maneira naquela cachola que parecia ter nascido ali. De nada adiantou o choro, os gritos, as pragas e lamentos. Passou-se sabão, sabonete, óleo de cozinha e de caminhão. Tentou-se com manteiga, banha de porco, sebo, pasta de dente, shampoo e condicionador. Sugeriram estrume de vaca, mais choro e grito. Alguém conhecia um ótimo ferreiro que poderia cortar o metal, mas o risco de ferir a criança era muito grande. Exaustos, foram todos dormir, na esperança que o amanhecer trouxesse uma solução. Pedrinho deitou na cama sem travesseiro, mal acomodado, a cabeça doendo pelas tentativas de puxar a vasilha. Adormeceu vencido pelo cansaço e sonhou que cavalgava um cavalo branco por pastos verdejantes, com um céu totalmente azul manchado pela bola amarela do Sol. 

Acordou com uma baita dor de cabeça! Resolveram levá-lo ao hospital. Passou por uma junta de recepcionistas, depois por uma junta de enfermeiras e, finalmente, por uma junta médica. Todos eram unânimes: era urgente tirar a panela da cabeça do menino para que a dor cessasse. Comunicaram aos pais que a situação era muito grave, pois o crescimento da criança causaria uma pressão cada vez maior, podendo até levar a óbito. Teriam que fazer uma operação delicadíssima, cortando todo o perímetro do crânio logo abaixo da boca da panela; ergueriam a mesma com a tampa da cabeça dentro dela enquanto manteriam o cérebro exposto protegido por uma concha acrílica especial; com sorte tirariam a parte do crânio de dentro do recipiente de metal e a grampeariam na cabeça do menino. Os pais se entreolharam e na mesma hora decidiram que até que não era tão ruim assim o filho ter essa proteção extra na cabeça. Voltaram para casa firmes e decididos a usar outra panela para cozinhar o feijão. Se preciso fosse, até comprariam uma nova. Pedro ficou ainda mais três semanas com o artefato colado ao cocuruto, até que numa tarde fria de julho, sem mais nem menos a panela pulou para fora de sua cabeça. Mas o mal já estava feito, ele seria irremediavelmente o Panela para o resto de sua vida. 

Assim chegou Anacleto, com dois amigos, àquela fase da vida onde as coisas deixam de ser completamente inocentes, quando há dúvidas na hora de escolher calças curtas ou longas, quando a saudade das curtas se intensifica mas o instinto pelas longas é mais forte. Nesse período as meninas deixam de ser amigos, não jogam mais bola ou queimada, delas vem uma fragrância, um perfume tão especial que inebria e entontece, a língua tropeça nas palavras e os pés no chão. Sem saber o que se quer encontrar, os meninos experimentam coisas novas, algumas proibidas, para criar coragem e crescer alguns centímetros no conceito, na avaliação das garotas. Anacleto, Colchonete e Panela tomaram uma dose cada um de um conhaque barato no boteco do Seo Ferreira e foram gargalhando e cambaleando para o bailinho da Mirtes, famosa pelas festas que dava na garagem da sua casa. Chegaram com cara de quem tinha aprontado alguma, os dois empurrando Anacleto à frente, sem saber o que fazer. Johnny Rivers cantava suave na vitrola e, para surpresa dos três amigos, só tinha meninas no salão improvisado. Puderam escolher quem tirar para dançar e, depois de algumas tábuas, ocuparam o centro a meia luz da garagem numa tão obstinada quanto desastrada tentativa de dança.

Alguns pisões e pedidos de desculpas depois, mais rapazes foram chegando, a concorrência aumentando e, de uma hora pra outra, estavam os três jogados num canto da garagem/salão de baile. Se viram os mais novos ali. Os outros eram rapazes do 2º e 3º anos, além de muitos outros bem mais avançados, barba e bigode grosso. Uns eram reconhecíveis mas muitos outros eram forasteiros, de bairros ou até mesmo cidades distantes. Havia passado o efeito do álcool e com ele o sonho de um bailinho só para eles. Sem saber o que fazer, zanzaram pelo salão como quem não quer nada. Separaram-se para diminuir a humilhação e pescaram aqui e acolá conversas muito importantes que não faziam parte de suas realidades. “…Ingressos para o show da Nara Leão…”, “…Comprei um Opala vermelho…”, “…Então ela ficou nuazinha na minha frente…”, “…Agora é só receber o resgate…”! Anacleto sentiu um sobressalto no peito. Será que entendeu bem? Buscou os amigos com os olhos aflitos. Juntou os dois e cochichou:

– Ouvi dois caras falando sobre um sequestro!

– Eram dois caras altos, um de camisa verde e outro de camisa listrada, cinza e rosa? Perguntou o Panela.

– Esses mesmo, por que? Você também percebeu alguma coisa?

– Passei por eles e o camisa verde disse, “Ela já está com a gente, bem trancada”.

– Nossa, e agora? O que vamos fazer? Perguntou Colchonete. Vamos falar pra polícia?

– Não, respondeu Anacleto. Ninguém vai acreditar na gente. Vamos conseguir provas, ver se descobrimos alguma coisa. Vamos ficar de olho até a hora que eles saírem e daí vamos atrás deles.

– Mas Anacleto, eles provavelmente estão de carro, como vamos fazer? Perguntou Colchonete.

– Quanto vocês têm nos bolsos? Vamos juntar tudo. Pagamos o taxi até onde o dinheiro alcançar, depois voltamos de ônibus. Disse Anacleto, já antevendo na aventura riscos e flertes com a morte.

E assim fizeram. Anacleto ficou vigiando dentro da garagem, Colchonete ficou na porta e Panela na calçada. Quando os dois sujeitos deram sinais que sairiam, Anacleto avisou o amigo que assobiou para o outro no meio fio. Deram sorte! O DKW vinha batendo os cilindros lentamente em sua direção. Subiram rapidamente e pediram para o motorista seguir o Fusca bege do seu primo que arrancava logo ali adiante. O condutor seguiu o outro carro com má vontade, subindo a Rua Dom Bosco e virando à direita na Barão de Jaguara. Atravessaram a ponte e viraram na Avenida do Estado à esquerda, sem sair dela por um longo tempo. Dobraram com o rio à direita, em direção a São Caetano, Santo André, até a divisa com Mauá. O dinheiro já estava no limite e o pavor dos três era visível. O Fusca saiu da avenida e enveredou por ruelas escuras até que parou diante de uma pequena casa. Eles saltaram do táxi uma quadra antes e fingiram ser moradores do local entrando em sua casa. Viram quando a porta da casinha se abriu, deixando vazar a luz para a calçada e a sombra de um homem muito grande. Nisso, uma voz trovejante explodiu atrás dos amigos:

– Quem são vocês?

CaMaSa