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Anacleto
04/09/21
CaMaSa

Anacleto e a Viúva Negra

A cada nova aventura a fama de Anacleto aumentava e, como de bobo ele não tinha nada, começou a tirar proveito da situação. No começo eram os agrados da vizinhança, com presentes de todos os tipos e sabores. O Seo Minorú da quitanda trazia um cacho de bananas, o Pestana do açougue um quilo de coxão mole, o Senhor Alcebíades da papelaria um caderno espiral de 100 folhas, que só tinha 96. Pouco a pouco, no entanto, a coisa foi tomando outra proporção, criando uma rede de interesses entre fabricantes e comerciantes diversos de roupas e panelas, eletrônicos e materiais de construção, anunciantes em geral e os meios de comunicação. Agora ele dava entrevistas vestindo roupas da Ducal e sapatos Samello, segurando um liquidificador Walitta ou ouvindo um rádio Philco de pilha Eveready. Ele agora era o garoto mais popular da escola, do bairro e da cidade, quem sabe até do país. Assim que numa tarde modorrenta de fevereiro, com o Sol castigando os desprevenidos e fazendo a alegria dos endinheirados à beira das piscinas nas mansões dos Jardins, tocaram à sua porta representantes de uma fabricante de motocicletas japonesa, a Yamaha, oferecendo uma proposta de parceria. Ele seria o garoto propaganda da RD 350 e como cachê receberia um modelo novo em folha!

A Yamaha lançou no ano de 1973 uma moto que marcaria de vez a história do motociclismo mundial, a RD 350. Sua produção aconteceu entre 1973 e 1993, duas décadas que marcaram a época e que a deu o cruel apelido de Viúva Negra. Este apelido se deve à grande ineficiência dos freios das RD´s 250/350 anos 70, que povoavam as ruas brasileiras, importadas entre 73 e 76. Seus enormes freios a tambor e posteriormente disco simples na dianteira eram ineficientes para frear uma moto que atingia com extrema facilidade, velocidades de 180 km/h. Naquela época não havia preocupação com a segurança de motoristas e passageiros, tanto em carros quanto em motocicletas. O uso de cinto de segurança em automóveis se tornou obrigatório somente em 1989, mas apenas nas rodovias. Já em 1998, ao entrar em vigor o atual Código de Trânsito Brasileiro, a utilização do cinto de segurança passou a ser compulsório em qualquer via pública e por todos os ocupantes do carro. O uso obrigatório do capacete tornou-se lei desde a edição do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em 1997. Ainda assim, sem qualquer fiscalização, essa não é a realidade para muitos motociclistas no Brasil. A publicidade vendia a masculinidade de Marlboro, a potência dos Mavericks e a liberdade do vento no rosto à cavalo de duas rodas e um motor de 350 cilindradas, joelhos de parachoques e olhos de parabrisa.

Ana e Cleto ficaram apavorados. Só de imaginar seu Cletinho pendurado numa máquina daquelas já dava pra ver a cor do caixão. Negaram e renegaram, a mãe chorou, o pai socou a mesa, mas a infinita persistência do rapaz foi minando pouco a pouco a resistência dos pais, até que depois de muitas juras e promessas que todos sabiam jamais seriam cumpridas, assinaram o contrato. Anacleto já conhecia a fama da moto, havia lido a respeito nas revistas especializadas e notícias de jornal. Sentia que era chegado seu momento e, melhor do que já havia sonhado, seria em grande estilo. Sim porque, para ele, alguém tirar a própria vida era um ato de covardia sem significado. Seu objetivo era outro. Queria cruzar a fronteira, descobrir a outra face da moeda da vida, conscientemente, deixando claro para todos que buscava marcar sua geração, deixar um legado. Para ele cortar os pulsos esvaindo-se da vida num rio vermelho, deixar-se pendurado por uma corda no pescoço, balançando tristemente pelo ar, expirado, eram fraquezas indignas e uma tremenda demonstração de ingratidão. Sempre perseguiu seu intento para saciar a sede de compreensão de toda raça humana sobre o maior de todos os mistérios. E, também, porque era meio patusquela!

Seja como for,  dez dias depois da assinatura do contrato assinado, lá estava ele fantasiado de motociclista, em cima de uma RD preta brilhante, a cara do Mal em forma de aço e borracha, com um sorriso enigmático de quem já sabe o final da história. A fábrica providenciara um instrutor para algumas aulas rápidas, o suficiente para saber onde se ligava e como se conduzia aquele bicho de metal. Insistiu muito sobre os freios, mas Anacleto pulou essa etapa e foi direto para o acelerador. Não que fosse fazer muita diferença. Pilotos profissionais, infinitamente mais experimentados, haviam sucumbido àquele conjunto inapropriado de frenagem. Para o bem ou para o mal, Anacleto saiu às ruas montado naquele pequeno foguete.

O bafo quente do asfalto derretendo em pleno verão, misturado à fumaça de óleo diesel dos ônibus e caminhões, batiam em seu rosto nu, deixando para trás de si o barulho duro, seco e metalizado daquele motor de 347 cm3 que desenvolvia 39 cv de potência a 7.500 rpm e torque máximo de 3,8 m.kgf a 7.000 rpm. Seu torque em baixa rotação era quase nulo, seu surto de potência ocorria a partir dos 5.000 rpm. Com apenas 143 kg de peso, atingia velocidade máxima de 166 km/h e acelerava de 0 a 100 km/h em cerca de 7s. A sigla RD, significa Road Developed, podendo ser traduzido para Feita para Disputas. Anacleto arrancava ao piscar a luz verde dos semáforos, deixando boquiabertos os demais motoristas, espantados com a velocidade. Sua primeira parada foi o colégio. Entrou no pátio do estacionamento rugindo potência, como um leão anunciando sua realeza. Desceu da moto, largou-a fumegando sob os olhares incrédulos e admirados de alunos, professores e funcionários, seguindo em direção à sua classe displicentemente, como se chegar daquela maneira era a coisa mais comum num mundo em que ter uma Cinquentinha fazia de você um príncipe!

Colchonete e Panela não podiam acreditar. Se postaram ao seu lado durante o recreio, como guarda-costas, para impedir o assédio. Mantinham os pivetes inconvenientes afastados e filtravam as perguntas e manifestações de respeito e admiração. Deixavam passar somente os sorrisos e olhares, agora apaixonados, das garotas mais cobiçadas do colégio. Os invejosos cochichavam ao longe, sem resistir a dar uma olhadela de rabo de olhos naquela máquina imponente. Os dois amigos planejavam usufruir daquela maravilha o quanto antes, mas Anacleto tinha outros planos para aquela tarde. Deu todas as respostas e conteve a excitação e entusiasmo dos dois para, ao final das aulas, dirigir-se à RD com toda a calma e tranquilidade. Passou a perna sobre o banco encaixando-se naturalmente. Girou a chave no contato e bateu o pedal com força. O motor gritou atingindo duramente os ouvidos despreparados. Antes de forçar a alavanca do câmbio para baixo, sentiu um toque suave em seu ombro. Dois olhos castanhos flutuantes miravam em sua direção. Da boca carmim, logo abaixo de um narizinho elegantemente arrebitado posicionado entre maçãs do rosto rosadas, saiu uma frase em forma de música:

– Me tira daqui…

Verinha Furacão era bem conhecida na escola. Por meio segundo Anacleto pensou se aquilo realmente estava acontecendo, era muita areia pro seu caminhãozinho! Então lembrou-se que não estava de caminhão, mas  sentado em cima de sua moto. Na outra metade do segundo, fez que sim com a cabeça e viu a garota sentar-se atrás de si, abraçando-o fortemente. Ele sentiu-se invadido por uma sensação de poder e realização, formigando de prazer dos pés à cabeça, e saiu em disparada, sentido o abraço cada vez mais apertado, à medida que a velocidade aumentava. Ela gritava “Corre, corre”, e ele respondia prontamente. Quanto mais corria, mais ela o apertava, e mais ele corria e mais ela gritava. O mundo, o tempo e o espaço, tudo entrou numa dimensão especialíssima de ação, emoção e prazer intensos. Tudo à sua volta parecia mover-se num outro ritmo, em câmera lenta, como se ele pudesse antecipar-se aos outros, prevendo seus movimentos. 

De repente, um leve toque de parachoques tirou-o do devaneio. “Corre, corre…”, Verinha gritava. E ele viu em seu retrovisor um Ford Galaxie 500 vermelho rugindo atrás de si. Era o ex-namorado, loucamente ciumento, que a havia procurado na escola com intenção de convencê-la a reatar o namoro. Um choque de adrenalina pura percorreu seus corpo e milhares de células explodiram de consciência. Seu fim sobre a moto era aceitável, mas sua obrigação era salvar a menina, já que estava claro que as intenções de alguém com um tanque de 1.780 quilos voando sobre você são bem claras. O cara perdeu a cabeça quando os viu saindo juntos na moto e, no momento, não seria possível tentar conversar. Estavam na Radial Leste, já haviam passado o Tatuapé, e a agilidade da moto era compensada pelo motor de 164 cv de potência e velocidade de mais de 155 km/hora. Passaram alguns faróis vermelhos e logo uma legião de carros da polícia perseguiam os dois com as sirenes a todo volume. Anacleto viu adiante um ônibus escolar atravessando lentamente a avenida, parado diante de outros carros à frente. Avaliou a possibilidade de passar entre o pequeno espaço entre o ônibus e o carro à frente, mas imaginou que o Galaxie não frearia a tempo e atingiria fortemente as crianças, causando uma enorme tragédia. Num ato puramente instintivo, apertou os freios sabendo que eram insuficientes para brecar a moto, mas o suficiente para diminuir a velocidade e passar para a pista lateral trazendo o carro atrás de si. 

Um silêncio sepulcral entrecortado por guinchos de pneus arrastados no asfalto e metal chocando-se num muro espalhou-se pela avenida. A moto bateu no meio fio da calçada arremessando Anacleto e Verinha pelos ares, que voaram sobre a parede e aterrissaram sobre um monte de areia fofa usada na construção próxima. O Galaxie subiu sobre o guard rail de proteção da avenida, girando sobre si e pousando vinte metros adiante com as quatro rodas para cima. Ninguém se feriu, as crianças do ônibus escolar assistiram a tudo entusiasmadas e puderam ir para a escola, com uma história incrível para contar. Verinha correu apavorada ao encontro do ex-namorado, temendo pelo pior, mas tranquilizou-se quando viu que ele estava ileso. Este, mais calmo, depois do tremendo susto, abraçou-a pedindo desculpas. Se beijaram apaixonadamente sob os olhares incrédulos dos policiais que parabenizavam Anacleto pelo ato de bravura. Este olhava para o que sobrou da moto e concluiu que não sobrava mais nada.

Foi condecorado, homenageado e entrevistado. Sentiu seu sonho esfarelar-se e prometeu a si mesmo que na próxima seria mais competente.

CaMaSa

1 Comentário

  1. Paulo Fernandes Silva

    O Nino traz estórias marcantes de nossa adolescência. Tudo isto acontecia mesmo na Mooca dos anos 60 e 70. Os detalhes, os lugares, os carros e motos e, até alguns nomes e apelidos trazem a doce lembrança daqueles dias … Meu amigo é um escritor brilhante !!

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