Maria Letícia abriu os olhos muito lentamente, deixando entrar aos poucos a luz da realidade em suas retinas. Despertava de um sonho estranho e esquisito, como se a agulha da sua vitrolinha tivesse saltado seu curso normal e tivesse arranhado a face do vinil com um som garranchento e feio. Sentiu, antes mesmo de abrir os olhos completamente, um odor sujo de um colchão velho e puído, de pouco estofo e bolorento. Também sentiu nas delicadas narinas o cheiro de paredes sem reboco e de telhas de amianto vazadas pela chuva, pela luz do Sol e da Lua, vazadas pelos mosquitos e ruídos. Sentiu na verdade, antes de se dar conta de onde estava, o cheiro da miséria. Não da pobreza, que ela conhecia bem das ações beneficentes organizadas pela igreja e que só tinha a mão estendida e a boca aberta para agradecer. Inspirou profundamente a penúria raivosa da fome e da falta de oportunidades que o ambiente exalava e soube que aquilo era algo que jamais havia experimentado na vida. Parou as pálpebras pela metade do caminho, temendo ver o que a luz de uma vela tremeluzindo tinha para mostrar. Quando finalmente olhou, arrependeu-se e cerrou novamente os olhos, fazendo-se como quem está dormindo.
* * *
Anacleto, Colchonete e Panela, investidos nos papéis de Reco-Reco, Bolão e Azeitona, tentavam compreender onde estavam e o que fariam para sair vivos daquela situação. Pelo menos dois deles ansiavam por isso. Haviam seguido o tal Ditão por becos e vielas labirínticas sem fim, até chegarem ao que parecia ser uma espécie de ginásio de esportes bem pequeno, plantado diante de um terrão retangular, que parecia ser um campo de futebol. Havia uma lâmpada amarela pendurada num poste em cada canto do terreno, mostrando a terra vermelha riscada aqui e ali por tinta de cal. A um comando do Ditão as crianças todas emudeceram e acompanharam os quatro até a sede da comunidade sem emitirem um som sequer. Dentro do pequeno galpão havia uma mesa retangular enorme que, provavelmente, fazia as vezes de mesa de ping-pong. O líder do bando abriu um mapa sobre a mesa e nele apontou para os rapazes onde estavam e onde ficava a casa dos bandidos. Explicou de que maneiras poderiam invadir o local, todas muito arriscadas e perigosas. Seria necessário um plano muito bem arquitetado para levar a empreitada ao êxito. Ele havia conseguido uma série de informações através da sua rede de garotos. Cada um trazia um relato: quando alugaram o casebre, quantos eram, quando acordavam, quando dormiam, cada mínimo movimento era acompanhado pelos moleques maltrapilhos e descalços que passavam despercebidos pela paisagem barrenta e poeirenta. Desse modo sabiam que eram três sujeitos, usavam um Fusca bege sem estepe, tinham quatro revólveres, 8 caixas de munição e dois facões. FBI perde! Haviam chegado no sábado anterior e feito pouco movimento até o dia de hoje, quando dois comparsas saíram no meio da tarde e voltaram no início da noite. Um deles ficou na casa, de guarda, e só saiu quando os outros chegaram, retirando um corpo, desmaiado ou sem vida, de dentro do veículo. O comparsa jogou um grande cobertor sobre o corpo e entraram rapidamente, batendo a porta atrás de si.
Anacleto fez várias perguntas sobre a estrutura da casa, quantas portas e janelas? Perguntou se havia um cão para dar alarme ou qualquer outro mecanismo para dificultar uma possível invasão? Queria saber se eles possuíam armas de fogo, além dos estilingues? Nada. A coisa mais perigosa ali era um canivete para descascar laranja. Quanto mais perguntava, mais Colchonete e Panela concluíam que deviam ir embora e, no máximo, passar numa delegacia. Verdade seja dita, o posto policial mais próximo estava a mais de 15 quilômetros dali e seria muito egoísmo partir sem prestar socorro para a vítima, se é que existia realmente uma vítima. Decidiram averiguar enviando dois guris para pesquisar a situação. Dois Palmos e Meio Quilo foram caminhando lentamente até a casa, como quem está passando fome e necessidade e bate na porta para pedir comida. Faziam bem esse papel, que aliás era a própria realidade deles e dos demais garotos da comunidade. O objetivo da missão era xeretar o que acontecia lá dentro e, para isso, enquanto Dois Palmos batia na porta e conversava com quem abrisse, Meio Quilo esticaria o pescoço para ver o que se passava lá dentro. O menino nem chegou a terminar a primeira frase. Com um safanão brutal o sujeito afastou-o da porta entreaberta, fazendo-o rolar sobre o parceiro que estava agachado atrás. Depois de meia dúzia de xingamentos, a porta foi batida com um estrondo. Os dois moleques fugiram em disparada, tomando o cuidado de fazer um caminho que não desse pista da verdadeira direção que tomariam e chegaram bufando, sem fôlego no galpão.
Dois Palmos começou o relato, deixando todos decepcionados, à medida que avançava, com o resultado da “missão”, até que Meio Quilo falou com a voz firme:
– Tem uma moça!
Contou o que sucedeu para confirmar o que viu. Quando chegaram na porta da casa, agachou-se atrás de Dois Palmos e ficou olhando fixamente para a junção da porta com o batente. Nos segundos que a porta ficou aberta, com o homem entre eles, viu um pequeno catre e nele deitada com a barriga pra cima, estava uma moça, muito branca, com os cabelos castanhos escorridos sobre os ombros. Pôde perceber que ela respirava, até que o amigo tinha rolado sobre ele e os dois saíram correndo em disparada.
Não havia dúvidas. Estavam diante de um sequestro e lidando com pessoas muito perigosas. Começaram uma discussão sobre o que podiam e deveriam fazer, chegando à conclusão que podiam muito pouco e deviam acima de tudo garantir a segurança da moça sequestrada. Anacleto sugeriu que os amigos saíssem de lá até um lugar mais movimentado e tentassem encontrar um táxi que os levasse até uma delegacia. Colchonete insistiu que Panela fosse sozinho e ele ficaria com Anacleto dando uma retaguarda. Ditão escalou dois rapazes mais encorpados para acompanhar Panela em segurança até que encontrasse um táxi, o que era considerado um milagre naquele lugar e àquela hora. Panela seguiu pelos becos escuros ladeado pelos “seguranças” e, antes de quebrar a primeira esquina, virou-se para trás e viu os amigos diante do galpão, com uma estranha sensação de que algo muito ruim estava para acontecer com eles.
Mais confiantes pela possibilidade de terem socorro policial em algum momento, Anacleto e Colchonete puseram em andamento, com as sugestões de Ditão, um plano de resgate. O casebre tinha duas portas e quatro janelas, duas maiores e duas menores. A única chance que tinham era atrair os bandidos para fora e invadir a casa para libertar a refém. A comunidade tinha uma boa quantidade de rojões de São João que podiam ser usados para confundir os marginais, fazendo-os pensar que eram tiros de revólver de uma batida policial. Na região havia muitas casas de marimbondos e eles jogariam duas ou três dessas casas, colhidas num saco, para dentro do casebre. Ditão falaria pelo megafone usado nos jogos de futebol, simulando uma ordem de prisão. A ação teria que ser relâmpago para surpreender e não dar tempo de entender o que realmente estava acontecendo. O problema é que para dar certo, seria necessário um movimento inicial para ganhar alguns minutos da atenção dos marginais, enquanto um grupo de garotos plantaria os rojões em volta da casa. Alguém teria que bater na porta de entrada, conseguir atrair a atenção dos marginais por algum tempo e sair de lá sem levar um tiro. Anacleto venceu a eleição sem concorrência e, depois de calcularem o tempo necessário para cada ação, seguiu calmamente para a casinha agourenta e escura.
Dentro da casa Maria Letícia começava a entender a situação. Pelo jeito aqueles três homens não eram nada bons e, a menos que seu corretor ortográfico mental estivesse enganado, ela estava numa situação bem ruinzinha. Tentou um diálogo, mas, sinceramente, começou a achar que eles falavam outra língua ou, pelo menos, um dialeto do português desconhecido na cidade de São Paulo. Para satisfazer sua curiosidade se pôs a fazer uma série de perguntas complexas, deixando os três homens, em pouco tempo, exaustos mentalmente. Ameaçaram, mandaram calar a boca, gritaram e até pediram com educação, mas nada parava aquela matraca, uma invasão sem fim de palavras complicadas, difíceis de entender. Em defesa dos três marginais, diga-se de passagem, ninguém entenderia o que aquela moça falava, mas naquela situação, era muito benéfico o processo de atrapalhação mental a que estavam submetidos. Benéfico para ela, claro, pois a essa altura os sequestradores já estavam arrependidos de ter se envolvido nessa desventura. Para complicar, bateram à porta:
– Boa noite, alguém na casa tem interesse em discutir as vantagens e desvantagens do suicídio?
Seja pela dor de cabeça de tanto ouvir Maria Letícia, seja pelo profundo e alucinado golpe mental da pergunta, ou ainda pela aparência cadavérica de Anacleto no meio daquela noite sem pé nem cabeça, o Bandido nº 1, ao invés de por o rapaz pra correr, puxou-o para dentro, inserindo um convidado no sequestro e pondo em risco o plano de resgate arquitetado. Colchonete era o encarregado de dar o sinal de partida para a ação, mas ficou todo confuso com o amigo entrando na casa. Na dúvida, aguardou alguns minutos e abaixou a bandeira amarela, o sinal combinado. Na confusão que se seguiu, impossível de relatar na totalidade, tiros de rojão pipocaram imitando uma metralhadora, maria-ritas ensandecidas voaram distribuindo ferroadas a torto e a direito, Anacleto pegou Maria Letícia pela mão e saiu correndo fechando a porta atrás de si; os bandidos nº 2 e nº 3 para abrir a porta de entrada, enquanto o nº 1 descobria que haviam colocado pesos atrás da porta dos fundos. Viram-se os três bandidos aprisionados naquela arapuca e não tiveram outra saída do que jogarem-se pelas janelas, estilhaçando vidros pelo chão. Quando enfim conseguiram se ver livres, rolaram pelo chão gemendo de dor por causa das picadas. Ditão retumbava sua voz de prisão pelo megafone, enquanto Panela chegava orgulhoso com três rádio-patrulhas preto e laranja, da cor da vitrolinha caída ao lado da cama do sequestro.
Os três amigos mais Maria Letícia chegaram no bairro pela manhã, levados por um cortejo de viaturas policiais. O prefeito desta vez ficou atrás do governador, que exaltou a coragem e o altruísmo dos rapazes, exemplo a ser seguido. Anacleto, decepcionado com o resultado da aventura, avaliava o que podia ter dado errado e nem percebeu quando o governador espetou uma medalha em seu peito. A picada trouxe-o para a realidade e nela o governante conversava com a mocinha:
– E você, minha linda jovem, gostaria de declarar algo?
– Sim. Quero saber quem ficou com a minha vitrolinha laranja?
CaMaSa
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