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Anacleto e o Sequestro – Parte 2

Há situações na vida, arriscadas e perigosas, nas quais tudo que queremos é ter ao nosso lado a companhia ideal. Alguém seguro e experiente que saiba o caminho das pedras, o segredo do cadeado, voar sem asas ou pelo menos que diga as palavras certas na hora do aperto. Quando o calafrio na espinha atingiu o ponto mais baixo das colunas vertebrais de Colchonete e Panela, eles tinham certeza absoluta que Anacleto não era essa pessoa. Não só ele não estava tremendo de medo diante do estranho mal encarado olhando para eles, como também tinha no rosto um sorriso de paz e tranquilidade de quem havia encontrado seu finalmente. No silêncio tétrico que se seguiu à pergunta do sujeito nada amigável, só se ouvia os dentes do Panela batendo e a barriga do Colchonete se revirando, prenúncio de coisa muito ruim se materializando. Anacleto deu o tom da conversa respondendo com uma pergunta:

– E você, quem é?

Os dentes do Panela bateram uma última vez. Cerraram tão fortemente que pareciam ter nascidas grudadas as arcadas superior e inferior. Terror era pouco! De ambos os lados do homem surgiam pouco a pouco pares de olhos brilhantes, injetados de sangue. A matilha era enorme! Colchonete afrouxou a musculatura e emitiu um sonoro “Valha me Deus”, simulando o escapamento do DKW 3 cilindros que os largara naquela roubada. Pelo cheiro, podia-se dizer que ele já estava morto, fazendo jus à expressão: Morto de Medo. Anacleto, entre os dois, mantinha a atitude serena e desafiadora, braços cruzados na altura do peito, queixo erguido à frente, por sua vez corroborando a expressão: Morreu Feliz! O grupo foi saindo das sombras, aproximando-se da luz amarelada do poste, único aliás num raio de 200 metros. Eram crianças e adolescentes maltrapilhos que, pela aparência, não viam banho e sabão há algum tempo. O homem se chamava Ditão, era líder da comunidade próxima e, naquele momento, fazia a ronda noturna de segurança. Os três amigos, um pouco mais calmos, hesitaram um pouco mas acabaram revelando o motivo de estarem ali. O homem disse então que realmente havia percebido algo fora do comum naquela casinha mais adiante, mas achava que deveriam ser homens perigosos, que não era conveniente enfrentá-los de peito aberto. Os olhos de Anacleto brilharam de prazer…

* * *

Maria Letícia era um doce de menina. A pele clara, os cabelos escuros, como os olhos, duas jaboticabas. A adolescência a fizera mais bonita, encorpara um pouco, não muito, na medida certa que exige esse período de transição entre moleca e moça, não muito magra, nem gorda. A vivacidade estava um pouco mais contida, mas a curiosidade expandira grandemente. Não de modo inadequado. Ela carregava nas atitudes e comportamento as marcas claras de sua posição. Nascera em família abastada da emergente Mooca, não a tradicional, dos cortiços e fábricas poluentes, mas a nova, moderna, que se espalhava pela Avenida Paes de Barros pelos altos da Mooca, passando pelo ponto mais alto na caixa d’água, até atirar-se como água de uma cascata até a Vila Prudente e suas favelas miseráveis. No seu reino familiar ela era a princesa com direito a estudar no colégio Dante Alighieri e frequentar, aos domingos, às 11hs, as missas dos jovens da Igreja São Rafael. Ali teve contato com rapazes e moças diferentes, vindos de extratos diversos, com visões de mundo e aspirações muito mais simples, práticas e acessíveis que as suas. Ela desejava um Príncipe e, se entre as novas amizades seu coração escolheu alguém para o papel, manteve o segredo bem guardado em seu coração, sem que alguém soubesse ter ela dado um inocente beijo em alguém do bairro.

Os encontros dominicais serviam para criar um vínculo espiritual com a igreja e comentar os bailinhos do sábado e as domingueiras de logo mais à noite. Nesses momentos o brilho nos olhos de Maria Letícia diminuía um pouco. Queria saber dos encontros, das danças de rosto colado e dos beijos à meia luz. Os namoricos que pipocavam entre as meninas e meninos do grupo, a inocência que ia se perdendo lenta e gradualmente, irreversivelmente. Vivia através das histórias contadas em detalhes o que não podia viver por si mesma. As paqueras, os olhares, toques de mão, os abraços mais ou menos apertados, os beijos, na testa, no rosto, nos lábios, de língua… A temperatura só aumentava, em pleno inverno, e fazia nascer nela uma vontade, um desejo, uma sede que água alguma saciava. Era muito melhor que as fotonovelas…

Os pedidos aos pais para ir a um bailinho, uma domingueira, eram constantes, mas não insistentes. Não ao ponto de faltar com o respeito, incomodar ou interromper o fluxo harmonioso do lar. Mesmo assim, era bem evidente que a filha estava crescendo, deixando de ser menina, e seria necessário, além de um acompanhamento mais intenso e rigoroso, mostrar, através de símbolos próprios do status que pertenciam, a direção correta que ela deveria seguir. Num sábado à noite, Maria Letícia rabiscava queixas e lamentações em seu diário, imaginando o que faziam naquele momento seus amigos no bailinho da Mirtes, famosa, entre outras coisas, pelos bailinhos na garagem de sua casa. Todos foram convidados, ela também, mas desta vez nem chegou a pedir para sua mãe deixar ela ir. Trancou-se no quarto e ficou pensando como seria chegar ali e ser tirada para dançar. Ele estaria lá. Diria não a todos os outros até que ele chegasse nela. E se abraçariam, quem sabe um beijo. De repente seu devaneio foi interrompido por batidas na porta. Pulou da cama e abriu a porta correndo. Viu seus pais sorridentes, ela não entendeu nada até reparar que seu pai tinha algo em suas mãos. Ela quase caiu de costas quando viu o que era. Uma vitrolinha laranja portátil!

Transferência é o ato ou efeito de transferir. Transferem-se direitos, propriedades, valores ou dados. Transferem-se objetos e ensinamentos, talvez o amor e carinho de alguém para outro. Na infância e juventude talvez seja possível transferir desejo e vontade para um objeto. Pelo menos por algum tempo. Maria Letícia transferiu toda frustração por sonhos juvenis não realizados para aquele objeto altamente tecnológico e inovador. Esqueceu bailinhos, amizades e príncipes. Ligou animada a vitrolinha na tomada e pôs-se a tocar um long play atrás do outro, dançando sem parar ao ritmo das músicas que eram sucesso na época. Era mágico observar o vinil preto girando sobre aquele objeto brilhante, laranja, a agulha flutuando sobre os sulcos, tirando os acordes dos instrumentos, as vozes dos cantores e o chiado inconfundível de uma época que seria enterrada pelo rio do tempo, que viveria somente na memória daqueles que ouviram.

Para interromper o idílio musical, seu irmão mais novo veio chamá-la para a janta. Muito a contragosto ela desceu e encontrou os pais impacientes sentados à mesa. Sábado à noite era tradição naquela casa a pizza da São Pedro, na época um local pequeno e familiar, que fazia uma redonda artesanal à mão. O próprio Seo Rafael vinha entregar a encomenda, eventualmente acompanhado do filho Cacau, para que este aprendesse quem eram as famílias respeitáveis do bairro. A de mussarela e a de calabresa já descansavam fumegantes acompanhadas de um tinto da casa. Nesses dias o pai deixava provar um golinho, para aprender o vinho e não se deixar fazer de boba. Ela comia rapidamente, ansiosa para voltar ao quarto e à sua vitrola de plástico cheirando à novidade. Mal podia esperar para contar a novidade a todos. Com certeza tinha quem iria morder o próprio cotovelo. Seus pensamentos foram interrompidos pelo anúncio do seu pai:

– Hoje à noite, depois de comer, iremos todos à casa do tio Benevides!

Não sei se porque ela estava com a boca cheia de pizza, ou por causa da alegria e gritaria que se seguiu, ou porque não valia à pena tentar argumentar com seu pai, mas Maria Letícia se viu como um autômato seguindo seus irmãos, mãe e pai na direção da garagem, onde o Aero Willys, o primeiro carro brasileiro de luxo, que só era utilizado nos passeios familiares, aguardava já de motor ligado. Portas fechadas, seu pai manobrou até a calçada e quando voltava para o assento do motorista após fechar o portão, ela lembrou que havia deixado a vitrolinha ligada, com um disco girando sobre ela. Pulou do carro e disse aos pais que iria desligar o aparelho e voltava voando. Ia num pé e voltava no outro. O pai, muito bravo, permitiu que ela fosse rapidamente. Ela atravessou a garagem e entrou pelo quintal lateral pela porta dos fundos, onde ficava a cozinha. Entrou, atravessou a sala, subiu as escadas e entrou no quarto. Olhou para o local onde até pouco tempo atrás a música girava de um disco e não viu nada. Olhou ao lado da cama, sobre o criado, imaginou que o irmão estava pregando alguma peça, quando sentiu atrás de si um corpo. Duas mãos a fizeram girar 180 graus bruscamente e uma voz dura e fria deu uma ordem: 

– Não dá um pio.

Não era necessário. Ela desmaiou antes do pio.

CaMaSa

Anacleto e o Sequestro – Parte 1

Para o bem ou para o mal, a fama de Anacleto crescia sem parar. Muitos o consideravam alguém especial, com dons e poderes superiores, uma espécie de enviado dos deuses. Já outros viam nele somente predicados negativos, portador do azar e más influências, o próprio filho do coisa ruim. Dona Tinha mesmo era uma que sempre se benzia três vezes quando passava na porta da casa “deles”, como agora se referia aos vizinhos, com uma aguda lembrança dolorida no estômago. Os três seguiam sua rotina, indiferentes aos comentários maliciosos. Cleto saia cedo para o trabalho, tomando um café apressado e dando o infalível beijo de despedida em sua amada Ana. Ela preparava o lanche do filho e, depois que ele ia para a escola, cuidava da casa ouvindo as notícias através da Rádio Nacional. Divertia-se com os shows de variedades e músicas, mas ficava muito preocupada com as ocorrências policiais, cada vez mais assustadoras. 

Anacleto por sua vez havia aceitado bem a transição para o colegial. Na realidade a maioria da classe eram seus velhos conhecidos, todos cientes das suas esquisitices. As novidades eram 2 ou 3 alunos vindos de outros colégios. Entre eles um rapazola magrelo, de cabelos compridos e cara de quem não dormia há alguns dias. Seu nome era José Ricardo, mas trouxe consigo o apelido de Colchonete, por motivos óbvios. Ele e Anacleto tornaram-se amigos de imediato, não por afinidade ou algum interesse comum, mas pela falta de entrosamento com os demais. Colchonete ficou admirado quando soube que Anacleto era nome, não apelido. Também ficou espantado com as tendências do novo amigo e contou que não conseguia dormir antes das 3 horas da manhã, e que por isso estava sempre com sono. Foram trocando informações como quem narra detalhes da vitória do seu time de futebol na última rodada e, de repente, eram amigos!

Juntou-se à dupla outro rapaz, Pedro de Assis, vulgo Panela. Sabe-se que quando ele tinha 5 anos de idade, meteu na cabeça uma panela de ferro para brincar de soldado. Colocou a danada depois de muito corre-corre e disparos imaginários, tiros pela boca e mortes de faz-de-conta. A cabeça suada e os cabelos escorridos grudados no crânio facilitaram o encaixe, mas depois, sabe-se lá se os cabelos secaram e engrossaram ou era mesmo o momento do crescimento, o que aconteceu foi que a caçarola se prendeu de tal maneira naquela cachola que parecia ter nascido ali. De nada adiantou o choro, os gritos, as pragas e lamentos. Passou-se sabão, sabonete, óleo de cozinha e de caminhão. Tentou-se com manteiga, banha de porco, sebo, pasta de dente, shampoo e condicionador. Sugeriram estrume de vaca, mais choro e grito. Alguém conhecia um ótimo ferreiro que poderia cortar o metal, mas o risco de ferir a criança era muito grande. Exaustos, foram todos dormir, na esperança que o amanhecer trouxesse uma solução. Pedrinho deitou na cama sem travesseiro, mal acomodado, a cabeça doendo pelas tentativas de puxar a vasilha. Adormeceu vencido pelo cansaço e sonhou que cavalgava um cavalo branco por pastos verdejantes, com um céu totalmente azul manchado pela bola amarela do Sol. 

Acordou com uma baita dor de cabeça! Resolveram levá-lo ao hospital. Passou por uma junta de recepcionistas, depois por uma junta de enfermeiras e, finalmente, por uma junta médica. Todos eram unânimes: era urgente tirar a panela da cabeça do menino para que a dor cessasse. Comunicaram aos pais que a situação era muito grave, pois o crescimento da criança causaria uma pressão cada vez maior, podendo até levar a óbito. Teriam que fazer uma operação delicadíssima, cortando todo o perímetro do crânio logo abaixo da boca da panela; ergueriam a mesma com a tampa da cabeça dentro dela enquanto manteriam o cérebro exposto protegido por uma concha acrílica especial; com sorte tirariam a parte do crânio de dentro do recipiente de metal e a grampeariam na cabeça do menino. Os pais se entreolharam e na mesma hora decidiram que até que não era tão ruim assim o filho ter essa proteção extra na cabeça. Voltaram para casa firmes e decididos a usar outra panela para cozinhar o feijão. Se preciso fosse, até comprariam uma nova. Pedro ficou ainda mais três semanas com o artefato colado ao cocuruto, até que numa tarde fria de julho, sem mais nem menos a panela pulou para fora de sua cabeça. Mas o mal já estava feito, ele seria irremediavelmente o Panela para o resto de sua vida. 

Assim chegou Anacleto, com dois amigos, àquela fase da vida onde as coisas deixam de ser completamente inocentes, quando há dúvidas na hora de escolher calças curtas ou longas, quando a saudade das curtas se intensifica mas o instinto pelas longas é mais forte. Nesse período as meninas deixam de ser amigos, não jogam mais bola ou queimada, delas vem uma fragrância, um perfume tão especial que inebria e entontece, a língua tropeça nas palavras e os pés no chão. Sem saber o que se quer encontrar, os meninos experimentam coisas novas, algumas proibidas, para criar coragem e crescer alguns centímetros no conceito, na avaliação das garotas. Anacleto, Colchonete e Panela tomaram uma dose cada um de um conhaque barato no boteco do Seo Ferreira e foram gargalhando e cambaleando para o bailinho da Mirtes, famosa pelas festas que dava na garagem da sua casa. Chegaram com cara de quem tinha aprontado alguma, os dois empurrando Anacleto à frente, sem saber o que fazer. Johnny Rivers cantava suave na vitrola e, para surpresa dos três amigos, só tinha meninas no salão improvisado. Puderam escolher quem tirar para dançar e, depois de algumas tábuas, ocuparam o centro a meia luz da garagem numa tão obstinada quanto desastrada tentativa de dança.

Alguns pisões e pedidos de desculpas depois, mais rapazes foram chegando, a concorrência aumentando e, de uma hora pra outra, estavam os três jogados num canto da garagem/salão de baile. Se viram os mais novos ali. Os outros eram rapazes do 2º e 3º anos, além de muitos outros bem mais avançados, barba e bigode grosso. Uns eram reconhecíveis mas muitos outros eram forasteiros, de bairros ou até mesmo cidades distantes. Havia passado o efeito do álcool e com ele o sonho de um bailinho só para eles. Sem saber o que fazer, zanzaram pelo salão como quem não quer nada. Separaram-se para diminuir a humilhação e pescaram aqui e acolá conversas muito importantes que não faziam parte de suas realidades. “…Ingressos para o show da Nara Leão…”, “…Comprei um Opala vermelho…”, “…Então ela ficou nuazinha na minha frente…”, “…Agora é só receber o resgate…”! Anacleto sentiu um sobressalto no peito. Será que entendeu bem? Buscou os amigos com os olhos aflitos. Juntou os dois e cochichou:

– Ouvi dois caras falando sobre um sequestro!

– Eram dois caras altos, um de camisa verde e outro de camisa listrada, cinza e rosa? Perguntou o Panela.

– Esses mesmo, por que? Você também percebeu alguma coisa?

– Passei por eles e o camisa verde disse, “Ela já está com a gente, bem trancada”.

– Nossa, e agora? O que vamos fazer? Perguntou Colchonete. Vamos falar pra polícia?

– Não, respondeu Anacleto. Ninguém vai acreditar na gente. Vamos conseguir provas, ver se descobrimos alguma coisa. Vamos ficar de olho até a hora que eles saírem e daí vamos atrás deles.

– Mas Anacleto, eles provavelmente estão de carro, como vamos fazer? Perguntou Colchonete.

– Quanto vocês têm nos bolsos? Vamos juntar tudo. Pagamos o taxi até onde o dinheiro alcançar, depois voltamos de ônibus. Disse Anacleto, já antevendo na aventura riscos e flertes com a morte.

E assim fizeram. Anacleto ficou vigiando dentro da garagem, Colchonete ficou na porta e Panela na calçada. Quando os dois sujeitos deram sinais que sairiam, Anacleto avisou o amigo que assobiou para o outro no meio fio. Deram sorte! O DKW vinha batendo os cilindros lentamente em sua direção. Subiram rapidamente e pediram para o motorista seguir o Fusca bege do seu primo que arrancava logo ali adiante. O condutor seguiu o outro carro com má vontade, subindo a Rua Dom Bosco e virando à direita na Barão de Jaguara. Atravessaram a ponte e viraram na Avenida do Estado à esquerda, sem sair dela por um longo tempo. Dobraram com o rio à direita, em direção a São Caetano, Santo André, até a divisa com Mauá. O dinheiro já estava no limite e o pavor dos três era visível. O Fusca saiu da avenida e enveredou por ruelas escuras até que parou diante de uma pequena casa. Eles saltaram do táxi uma quadra antes e fingiram ser moradores do local entrando em sua casa. Viram quando a porta da casinha se abriu, deixando vazar a luz para a calçada e a sombra de um homem muito grande. Nisso, uma voz trovejante explodiu atrás dos amigos:

– Quem são vocês?

CaMaSa

Anacleto e o Purgatório

Numa palavra, Anacleto era suicida. Isso não se podia negar. Era, no entanto, um suicida bem peculiar, porque temia a dor tanto quanto desejava a morte. Injeção, nem pensar, gritava como um bezerro só de ouvir falar. Tomar vacina era um desespero, necessário 4 ou 5 pessoas para segurar. Cortes, com faca ou machado, qualquer instrumento cortante, estava fora de cogitação. Certa vez desmaiou ao ver o sangue de um corte em seu dedo, feito por uma folha de papel. Despencar das alturas não era possível, tinha vertigem! E medo também, não de morrer, mas da queda. Imaginava seu corpo batendo com força na superfície dura e áspera, os ossos partindo, mas continuando vivo, cheio de dores. Um atropelamento, frente a um ônibus ou trem, teria o mesmo efeito. Enfim, ele queria o salto mas não o tombo. 

Ana e Cleto, seus pais, viviam atormentados pela possibilidade que ele encontrasse alguma forma de realizar seu objetivo. Acompanhavam seus passos, sempre vigilantes, na esperança de se antecipar a algum movimento mais perigoso. Ele havia terminado o ginásio, iria para o colegial, novas tensões pairavam no horizonte e ele era extremamente sensível. Quando aquela coleguinha da escola mudou-se para longe foi um verdadeiro drama. Foram dias de jejum, nem pão nem água, que só eram interrompidos quando ele se dava conta que na verdade estava se fortalecendo física, mental e espiritualmente. Não que ele tivesse uma noção clara disso, já que seus pais não o forçavam a seguir uma ou outra religião, dando apenas noções básicas. Isso porque, como todos sabiam o caso de Anacleto desde que nasceu, viviam surgindo pessoas oferecendo serviços e soluções espirituais para curá-lo. Havia mais religiões no mundo do que se podia imaginar, cada uma com seu deus próprio, mais ou menos poderoso que os demais.

Ana não fechava as portas para nenhuma esperança, tinha um enorme coração de mãe batendo dentro do peito e acreditava um pouco em cada sugestão. Cleto já era mais cético, prático. Separava os bem-intencionados dos aproveitadores e mantinha estes últimos a uma boa distância. Uma das vizinhas, a Dona Tinha, vivia convidando-os para seu culto, onde ela tocava violão para os louvores. Dizia ela que o pastor era muito franco e poderoso, tendo dado inúmeras provas do seu poder sobre as forças do Mal expulsando, dos necessitados, demônios pavorosos que batiam em retirada para nunca mais molestarem aquelas pessoas. 

– Só vendo para acreditar! 

Os dois, descrentes em princípio, pouco a pouco foram avaliando a possibilidade de uma tentativa, em parte pela insistência de Dona Tinha, em parte pelo comportamento de Anacleto que ultimamente andava um pouco mais estranho, acima do normal. Na verdade estava bem acima do normal. Ele se trancava no quarto por horas e horas, pouco conversava e comia o mínimo necessário. O pouco que vinha comendo era chocolate em pó. Ana, percebendo o interesse alimentar do filho, comprava vários pacotes do Chocolate do Padre e ficava feliz ao ver que o pó de cacau acabava rapidamente. 

Anacleto fazia pouco uso nutritivo do chocolate. Ele estava naquela idade em que os hormônios e desejos estão incontroláveis e urgentes, o corpo vibra e pulsa em lugares inusitados e secretos. É preciso espaço e solidão, coisa que as mães não entendem. Some-se a isso as características pessoais pouco comuns dele, para resultados bem mais estranhos. Anacleto estava mergulhado até o pescoço na Alquimia, buscando e pesquisando sem parar métodos milenares para criação de poções venenosas que não causavam dor nem sofrimento. Chegara à conclusão que o cacau, usado nas cerimônias Incas e Astecas, das regiões mesoamericanas, tinha um papel muito importante para suavizar o sabor dos venenos. Usava nos testes quantidades volumosas do pó, ora com líquidos, ora com outros pós, entre os quais diversos comprimidos comuns macerados num pequeno pilão de pedra. A maioria desses comprimidos eram comprados para uma tia quase centenária do seu pai que sofria de uma terrível prisão de ventre há anos.

Diante do comportamento cada vez mais estranho do filho, Ana e Cleto resolveram aceitar o convite da vizinha Tinha para conhecer o pastor milagroso e seu culto. Ana pensou que não seria simpático chegar de mão abanando e resolveu preparar algum docinho para levar. Decidiu preparar brigadeiros e abriu as latas de leite condensado para misturar ao chocolate. Quando abriu o armário da despensa, viu-se sem nada do cacau. Pensou em comprar, mas não daria tempo, e lembrou do filho. Quem sabe ele teria algum? Anacleto havia saído com o pai para cortar o cabelo e chegar com boa aparência no culto. Ana entrou no quarto e ficou muito feliz quando viu dois potes enormes de vidro com pó de chocolate sobre a escrivaninha. Foi para a cozinha com os potes e preparou caprichosamente os brigadeiros. Quando Cleto tocou a buzina do carro, ela saiu com duas bandejas de doces, com pelo menos uma centena cada.

Chegaram ao local uns 15 minutos antes da hora marcada e foram recebidos com entusiasmo por Dona Tinha. Mais entusiasmado ficou o pastor quando viu as bandejas de brigadeiros. O sujeito, roliço e atarracado, serviu-se logo de 3, 4 bolotas, apresentando-se com a boca cheia da massa marrom escura. 

– Vocês vieram no lugar certo. Vamos dar um jeito nas maluquices desse garoto!

Anacleto baixou os olhos, sem graça, e sentiu no ar o desconforto dos pais. Pensou em sair correndo, mas uma força maior mantinha seus pés no chão, como se estivessem presos a uma bacia de concreto. Ana tentou incentivar pai e filho, mas o mal já estava irremediavelmente feito, ao menos para Anacleto. Cleto, por sua vez, havia colocado o homem no lado ruim da sua lista, mas por amor à mulher e ao seu filho, seguiu resignado para o assento reservado para eles. Calculou que havia umas 70 a 80 pessoas no recinto, e que Ana devia estar contente por ter feito uma quantidade suficiente de brigadeiros. Os doces foram colocados junto a outros petiscos e bebidas, bem na porta de entrada. Provavelmente eram para o final do encontro, mas o perfume dos brigadeiros era tão inebriante que terminaram antes do início da cerimônia. 

O início foi bem curto. Tocaram um hino introdutório, Dona Tinha com violão em punho, e rapidamente o pastor tomou a palavra e o microfone. Pôs-se a falar uma cantilena interminável de qualidades que ele possuía, muitas vezes comparadas às da Bíblia. Recitou todos os tipos de pecados e punições que existiam e como ele se mantinha distante do mal, vivendo uma vida casta e irretocável. Disse que por conta disso era capaz de expulsar satanás daqueles que ofendiam a Deus, de quem era muito amigo. Que os custos da manutenção desses serviços era muito alto e por isso os valorosos auxiliares corriam as sacolas de arrecadação. E, que para provar que tudo que falava era verdade, hoje expulsaria o inimigo do corpo de um jovem ali presente.

Num movimento sincronizado e rápido, dois brutamontes pegaram Anacleto pelos braços e, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, estava diante do pastor. O homem olhou para ele e gritou:

– Meu Deussssssssss…

O “S” saiu bem fininho, como gaz escapando de um furinho minúsculo do botijão. Seus olhos ficaram completamente esbugalhados, sem entender o que estava acontecendo. Pela primeira vez ele sentia que era possível tirar o diabo do corpo, mas desta vez era do corpo dele. Cada bolota de brigadeiro descia pela garganta até o estômago como ferro em brasa cortando manteiga. Quando chegava lá embaixo não tinha remédio, nem Deus segurava. O pior é que se corresse o bicho pegava, deixando atrás de si um rastro de gaz pastoso e, se ficasse, tinha que ser imóvel, concentrando todos os esforços na travação do anel e fazendo cara de quem está entrando no céu pelas portas dos fundos do purgatório. O local virou uma Pompeia moderna, com as pessoas petrificadas em suas posições. Todos, sem exceção, acometidos pela mais implacável dor de barriga. O local tinha três banheiros masculinos e três femininos. Três mulheres e três homens abençoados realizaram em vida o significado de “conhecer o céu na Terra”, sentados em seus tronos de louça branca. Dona Tinha foi uma das que tentou correr, mas acabou enchendo o violão. Era questão de tempo para que todos se aliviassem ali mesmo, expulsando pra valer todo mal que possuíam.

Ana, Cleto e Anacleto, que não haviam provado do brigadeiro por educação, chegaram à conclusão que aquele culto era realmente muito esquisito e deixaram o local, empesteado e malcheiroso, com um bruta má impressão. Ficaram sabendo depois, que levaram uma semana para limpar o local e que, nas investigações sobre o caso, descobriram que o pastor e seus asseclas eram na verdade um bando de facínoras procurados por todo país. Mas desta vez ninguém conseguiu relacionar Anacleto ao caso.

CaMaSa

Anacleto Descobre o Amor

Há um momento único na vida de cada menino, muito sútil e delicado, onde acontece o rito de passagem, a transformação na forma de ser e ver, para muitos imperceptível e irrelevante, mas para os mais sensíveis uma machadada brutal, lâmina grossa e cega, não amolada, bem no meio do peito. Anacleto, distraído com suas questões pós-vida, recebeu o golpe sem nem saber de onde veio. Abatido em pleno vôo, despencou com toda velocidade em direção ao chão duro e áspero da realidade. Quebrou dentes, ralou peles, partiu ossos e pintou de vermelho sangue o asfalto que o recebia. Seu nome era Eva, que significa cheia de vida, e seus caminhos se cruzaram como se cruzam os caminhos de todos: num determinado momento.

Anacleto era uma espécie de celebridade na escola. O salvamento do professor, o caso da falsa terapeuta e outros tantos pequenos casos envolvendo tramas e engenhocas criadas por ele mesmo para tirar a própria vida, faziam dele um assunto recorrente nas rodinhas de alunos e alunas, funcionários e professores. De certa forma quase todos o conheciam e muitos o cumprimentavam sem que ele soubesse quem eram. Então, era muito comum ele reconhecer quase todo mundo, já que todos, vez ou outra, se colocavam diante dele com algum gesto de amizade, uma pergunta despretensiosa ou um elogio. Assim que, quando o momento determinado de Eva e Anacleto ocorreu, não foi tátil, físico, nem mesmo sensorial, como uma troca de olhares. Nada de encontrão com livros e cadernos esparramados pelo chão ou aventais trocados na aula de ciências. Foi muito mais místico, muito mais zen. Foi um pensamento, ou melhor, dois pensamentos!

Ele pensou num lugar tranquilo e isolado para pôr em prática seu mais novo plano suicida. Ela pensou num lugar isolado e tranquilo para chorar suas dores e agonias. Chegaram ao mesmo tempo no galpão abandonado da rua Oscar Horta, abrigo de ratos e pombas, testemunhas do encontro inusitado entre os dois adolescentes. Examinaram-se surpresos, correndo os olhares de cima a baixo, reconhecendo os uniformes da escola um no outro. Ele de calça cinza, camisa branca com o distintivo do colégio bordado no bolso, meias brancas e sapatos pretos. Nela as calças eram trocadas por uma saia encurtada pela dobra do cós. No silêncio constrangido, ambos pensavam em formas de se safar daquela situação. Quando resolveram falar, foi ao mesmo tempo:

– Vim me matar!

Eva era uma menina normal, com a beleza que toda garota de 12 anos tem. Mas Anacleto, ao ouvir o que ela disse, viu diante de si uma deusa juvenil de beleza encantadora. Ele a percebeu loira, com os fios dos cabelos retos e brilhantes na altura dos ombros. O tom era dourado entremeado por mechas castanho claro. Um feixe de luz vazava de um dos muitos furos nas telhas de amianto da cobertura, refletindo sobre seus cabelos e criando uma aura flutuante pontilhada por pontos luminosos de poeira. Os olhos eram verdes, da cor da folha da bananeira, vítreos. O tom da pele aveludada era café com leite, bem clara, levemente avermelhada. Vermelha mesmo era sua boca, foco de atenção dele desde o primeiro segundo. Assim ele a via, não exatamente o que de fato diante de si havia.

Seja pelo inusitado da situação, seja pelo nervosismo e necessidade de descontração, seja porque leve e cheia de sonhos é para os jovens a vida, ambos caíram numa sonora gargalhada e quanto mais riam, mais riam, até que os músculos da barriga começaram a doer de tanto que gargalhavam. Pouco a pouco foram retomando o fôlego, mas a cumplicidade já havia tomado o lugar da desconfiança e a proximidade e intimidade se instalaram naturalmente. Começaram a conversar como se conhecessem há muito, os nomes encaixados no meio da conversa, como quem troca cartões de visita. Suas histórias, curtas até aqui mas borbulhantes de detalhes e vivacidade, eram narradas e absorvidas ansiosamente, ora por ele ora por ela. Eva tinha uma razão simples e objetiva para não mais apreciar a vida, ao contrário de Anacleto cujas razões eram estranhas e complexas, místicas e filosóficas.

Ela sentou ao lado dele e começou a contar sobre sua família e a harmonia que existia entre seu pai, sua mãe, ela e sua irmã mais nova, Ritinha, como eram felizes na rotina familiar e no dia a dia. O pai trabalhava numa loja de departamentos, a Mesbla, aquele prédio enorme de tijolos, do outro lado do rio, na Avenida do Estado. A mãe cuidava da casa e das filhas, preparava o almoço e a janta, fazia bolos e doces perfumosos para o lanche da tarde. Aos fins de semana, o pai sempre inventava um passeio surpresa, um parque, um cinema ou teatro infantil. Em datas especiais pegavam a estrada e iam passar o dia na praia, em Santos ou São Vicente, eventualmente uma aventura mais emocionante indo até a praia das Tartarugas, no Guarujá. Era um tempo simples, de fuscas e peruas kombis, rádio de pilha e televisão em preto e branco. A felicidade chovia aos borbotões e os problemas eram do tamanho do salário. Mas tudo estava por terminar. O pai havia recebido uma promoção que envolvia uma transferência para outro estado, no Nordeste, mas a mãe não queria se mudar. As discussões entre os pais começaram ponderadas e educadas, passaram a ser irritadas e agressivas, desembocando numa torrente de acusações e pedidos de separação.

Anacleto ouviu todo relato pacientemente, sem emitir um pio. Na verdade ficaria ali por dias e dias ouvindo aquela melodia suave e doce que saia daquela boca. Ele não via no relato dela motivo algum para se tirar a própria vida, antes era só um mal estar passageiro, chato mas de fácil solução. Assim que, para parecer adulto e compreensivo, pôs-se a explicar como via a situação, apontando aqui e ali os pontos positivos da situação e as diversas soluções para as partes complicadas. E de tal modo construiu uma narrativa de positividade e otimismo, que ambos sentiram que era real e verdadeira a possibilidade de tudo se acertar e as coisas não só voltarem a ser boas como eram mas muito melhor. E cheios de esperança e um sentimento não identificado no peito, saíram do galpão abandonado em direção à suas casas. Ele disse que ia acompanhá-la até sua casa. Ela morava do outro lado da Avenida Radial Leste, na Rua Wandenkolk. Andaram lado a lado, ela de vez em quando pegava em seu braço, falando de amenidades e coisas da escola. Quando chegaram na porta do prédio se despediram e, antes que ele se virasse, ela o beijou levemente nos lábios. Virou-se e correu rapidamente para dentro.

Anacleto nunca soube como chegou em casa, ou melhor, tinha certeza que chegou em casa flutuando, deitado em nuvens de algodão branquinhas e fofinhas. Lembrava vagamente de buzinadas, freadas e xingamentos durante algumas partes do percurso, mas sentia que não eram para ele. Eram rotinas terrenas distantes, coisas minúsculas e insignificantes, incapazes de atingi-lo. Seja como for, chegou em casa sem um arranhão e nem mesmo a porta de entrada que tentou atravessar sem abrir o incomodou ou foi suficiente para fazê-lo despertar do sonho. Sua mãe, acostumada com os devaneios malucos do filho, nem deu muita atenção, concentrada que estava preparando o jantar, mas o pai, esse não deixou passar despercebido o olhar abobalhado do garoto, vez que ele mesmo já havia experimentado esse sentimento de abestalhamento na juventude. Seu filho podia estar apaixonado e isso só poderia ser uma boa notícia. Não comentou nada, respeitou o espaço do menino e o deixou sonhando acordado em seu quarto, deitado na cama e olhando fixamente para o teto, vendo um futuro cor de rosa real e verdadeiro como promessa de político em campanha.

No dia seguinte Anacleto saiu de casa sem tomar o café, enquanto seus pais ainda dormiam. Foi o primeiro a chegar na escola, com os portões ainda fechados. Esperou pacientemente o dia preguiçoso assumir seus afazeres, desde as primeiras luzes do Sol quebrando a madrugada escura. Viu o leiteiro, o jornaleiro e todos trabalhadores madrugadores iniciarem suas lidas. O caseiro da escola abriu a porta e deu de cara com ele, mas não permitiu sua entrada. Chegaram as primeiras serventes e faxineiras, professores e diretores. Os alunos foram despencando às dúzias, os menores acompanhados de suas mães ou pais. A algazarra aumentava cada vez mais, mas nada de Eva. Ele começou a ficar ansioso, postado diante do portão e conferindo um a um para ter certeza que a veria. Pouco a pouco todos foram entrando, a gritaria foi silenciando, até que só restou ele e um silêncio fúnebre do lado de fora do colégio.

Mais tarde naquele dia, Anacleto soube, através de amigas das amigas de Eva, que ela havia partido com seus pais para uma nova vida em Fortaleza, no distante Ceará. Soube também que o motivo das brigas entre seus pais era ela, que não queria ir embora e deixar a escola para trás; que a mãe compreendia o sentimento da filha e por isso optava por ficar também, a ponto de discutir com o marido que era irredutível quanto a aceitar o novo emprego numa nova cidade. Era tão conflituosa a situação que estavam a ponto de se separar. Alguém muito próximo da família disse ainda que ontem havia acontecido um milagre. Ao voltar para casa, Eva estava alegre e radiante, dizendo que havia mudado de ideia e não via a hora de conhecer a nova casa, da nova cidade. Ninguém, nem ela mesma, conseguia explicar o que havia acontecido. Ele ouvia tudo como alguém que não escuta, vendo tudo como quem não enxerga, atento somente ao ribombar do vazio do seu coração.

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Anacleto e a Terapeuta

Anacleto não era uma criança normal, todos já haviam percebido. Seus interesses eram, digamos, sutilmente tortos e arriscados. Os pais que já são naturalmente preocupados com a segurança dos filhos, no caso dele eram alucinadamente aflitos e viviam angustiados. Verdade seja dita, fora essa tendência autocida, o menino era um doce, tranquilo e sossegado, estudioso e responsável, com notas muito acima da média. Se relacionava bem também com os colegas de escola e professores, ainda que invariavelmente os temas de suas conversas versavam sobre a morte em algum momento. Para ele a morte não tinha a conotação fúnebre e dolorosa que os mais adultos tinham, ele era uma criança caminhando para seus 10 anos de idade. Era muito mais uma aguçada curiosidade mórbida resultado de experiências sensoriais e emocionais vividas no período gestacional e do parto. Ou tinha um parafuso solto mesmo!

Pelo sim pelo não, a escola aconselhou Ana e Cleto a procurarem acompanhamento psicológico. Indicaram a Dra. Marta Gouveia, renomada profissional com mestrado na Stanford University (Estados Unidos), número 1 do ranking em psicologia, é considerada pela THE a 4ª melhor universidade do mundo. Localizada no coração do Vale do Silício, na Califórnia, a universidade tem um dos maiores campus dos Estados Unidos, com 18 institutos de pesquisa e 7 faculdades, onde estudam mais de 16 mil estudantes vindos dos 50 estados americanos e de mais de 90 países. Com a ajuda do colégio e uma vaquinha dos vizinhos, conseguiram marcar uma consulta para dentro de dois meses, numa tarde de quarta-feira, às 15hs. Os pais passaram essas oito semanas num misto de esperança e agonia que, pouco a pouco, foi se transformando em choro e ranger de dentes de tanta expectativa e ansiedade.

Na data marcada, os dois acordaram às 4 horas da manhã, apesar de terem ido dormir às 2 horas! Temiam a reação de Anacleto, temiam o veredito da terapeuta. Temiam o dia, temiam a noite. Temiam Deus e o Diabo. Ter um filho como o deles era padecer no inferno mesmo. Quanto maior era o amor por ele, maior era a preocupação que ele se fizesse algum mal. Chegaram ao consultório 50 minutos antes da hora marcada e foram atendidos 2 horas depois. Sentaram-se Ana e o menino, Cleto postou-se atrás dos dois, ofegante. A psicóloga, imponente, rodeada de diplomas, pôs-se a enumerar seus inúmeros cursos e mestrados, teses e livros lançados em diversos idiomas. Falou sobre a origem da psicanálise, Freud, Jung e outros tantos doutores dos meandros mentais, essa parte fundamental para compreensão humana. Cleto já não mais ofegava, adormecia em pé, embalado pela verborragia sem fim da mulher à sua frente. Ana virava-se para trás e discretamente cutucava o marido para que acordasse. Já o menino ouvia tudo atentamente interessado, quase sem piscar, quase sem respirar.

De repente, cessou o blá-blá-blá. A Doutora pediu que os pais se retirassem, pois teria que conversar a sós com o menino. Somente assim ela poderia exercer todo seu conhecimento e perícia para elucidar as razões primeiras que levavam essa criança tão bonita e dócil pensar em atos contra a própria vida. Saíram da sala entre aliviados e esperançosos, sendo recepcionados por uma funcionária ágil e eficiente na elaboração do recibo de pagamento. Cleto tirou sem jeito as notas amarfanhadas coletadas entre os parentes e amigos, espalhando tudo sobre o balcão de vidro limpíssimo, vendo a moça recolher tudo numa expressão de nojo e desaprovação. Certamente ela estava acostumada aos cheques bem preenchidos e perfumados dos clientes endinheirados que por ali passavam para desfilar suas insatisfações pessoais que só o luxo e a riqueza são capazes de proporcionar. Sentaram-se e esperaram e esperaram… Ana não se movia e tentava acalmar o marido que levantava e sentava sem parar. E esperaram… Muito! Até ela já estava agoniada. Que será que está acontecendo, meu Deus? Perguntaram para a recepcionista quando essa pegou suas coisas e saia para a porta sem nem mesmo se despedir:

– Moça, é normal ficar tanto tempo assim com alguém?

– Olha, respondeu emburrada, eu já vi de tudo aqui. Por isso quando dá meu horário pego minhas coisas e vou embora.

O obrigado de Ana morreu na garganta porque a moça bateu a porta atrás de si antes mesmo que ela falasse. Sentaram-se novamente e esperaram e esperaram. Cleto roncava como uma motocicleta quando Ana o chamou:

– Cleto, eu vou entrar lá.

Ele levou alguns instantes até entender que não estava sonhando com uma plantação de tomates que gerava morangos, e dirigiu-se com a esposa para a porta onde estava seu filho. Nem bateram, giraram a maçaneta dourada polida e invadiram o recinto. Surpresos, viram Anacleto sentando na cadeira da terapeuta, brincado de girar alegremente, com os pés suspensos no ar! Procuram por todo canto, no banheiro, nos armários, embaixo da escrivaninha, nem sinal da doutora. Notaram a janela aberta e uma leve brisa balançando a cortina de voal imaculadamente branco. Entreolharam-se preocupados, gelados e petrificados, e perguntaram ao filho o que tinha acontecido?

Anacleto disse que estavam conversando animadamente, a tia era muito legal, falava de pessoas que tinham esse ou aquele transtorno, que era algum tipo de dificuldade que a pessoa tinha para agir de uma certa maneira numa determinada situação e que tinha um velhinho que tinha entendido como a cabeça da gente funciona e tal. Depois que ela falou um monte de coisas imitando voz de criança, apesar de ser bem velha e não combinar nada nada aquela voz com ela, perguntou se eu tinha alguma dúvida muito profunda, quer dizer, escondida bem dentro da cabeça da gente, e se eu queria que ela me ajudasse a encontrar as respostas? Eu perguntei de onde eu vim, quem eu sou e para onde eu vou? E como ela começou a gaguejar e se enrolar sem saber se estava falando ou cacarejando, eu comecei a falar pra ela das coisas que eu lembrava, que eu sentia e sabia. Falei o que pode falar uma criança de 10 anos, com toda inocência e sinceridade, a mais pura veracidade, plena de certeza e honestidade. Num dado momento a mulher se pôs a chorar feito um bebê, dos olhos saiam lágrimas como de uma torneira. E quanto mais eu falava mais ela chorava e não havia em nenhum de nós o desejo que aquilo acabasse. E tanto falei que ficou claro que o meu desejo não era doença mas uma sina que todos nós um dia seremos, em verdade.

– Então, pai, mãe, a mulher, tão boazinha, coitada, se levantou da cadeira, me olhou e abriu a janela, dando uma bela cafungada no ar fresco que entrava. Deu um sorriso meio de lado e se jogou lá embaixo!

– Valha-me Deus! Gritaram os dois desesperados, sem lembrar que o consultório ficava numa casa térrea do Jardim Europa. Os dois correram para a janela e só então, ao verem a grama verdinha a um metro de distância, exalaram o ar preso nos pulmões. Pegaram o menino e saíram de lá sem olhar para trás.

Naquele domingo pela manhã, Cleto folheava o jornal calmamente enquanto saboreava o café quentinho passado pelo coador. Chamou sua atenção uma manchete em letras garrafais sobre uma falsária que havia se entregado espontaneamente à polícia. A matéria dizia que a tal se fazia passar por terapeuta nos Jardins, tendo entre sua clientela a fina nata da elite paulistana, entre empresários, políticos e até um bispo. Dizia-se que ela fora levada por uma crise muito grande de consciência depois de ter atendido um jovem cliente. Arrependeu-se do mal que havia feito a centenas de pessoas, iludindo-as com falsas ilusões.

Cleto olhou o filho brincando distraidamente no chão com carrinhos e bonequinhos, simulando uma via de trânsito. Sentiu uma alegria tão grande que quase agradeceu pela dádiva que a vida lhe dera, mas gelou quando viu Anacleto pegar um carrinho e atropelar um dos bonequinhos.

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Anacleto e a Coxinha

Anacleto crescia… melhor dizendo avançava no tempo ocupando o mínimo espaço. Os pais procuravam oferecer todo tipo de alimento, dos mais doces aos mais salgados, dos mais insossos aos mais amargos, coloridos, perfumados ou inodoros, quentes ou frios. A todos o menino reagia da mesma maneira, uma ou duas colheradas e só. Mamadeiras, mingaus, purês, bananas, maçãs, pêras, mamões e morangos, sucos de laranja, uva e pêssego. Iogurtes, queijos, dos mais caseiros aos mais malcheirosos. Feijão com arroz, macarrão com molho de tomate, com queijo, lavado com manteiga. Sorvetes, pudins, balas e chocolates. A tudo exclamava um: – Bléé!

Eventualmente inventava de só querer uma mistura esquisita de giló com tamarindo, limão com beterraba e lentilha, bacon com pipoca doce e baunilha… Mulher grávida perde de longe! Eram dias, semanas e meses na mesma toada, comendo só um tantinho da gororoba que era toda jogada fora. Quem ia comer aquilo? Se um dos ingredientes faltasse, fosse fora de estação, toca correr atrás por toda cidade, em toda feira, mercado, quitandinha ou sítio dos arredores da cidade. Não fazia por mal. Nada lhe apetecia e mesmo essas misturas esquisitas não lhe abriam o apetite verdadeiramente. Mas era o que lhe dava sustento, algum viço e força pra seguir a vida.

Assim que, aos barrancos e trancos, chuchus e abobrinhas, chegou Anacleto aos seis anos de idade, quase apto a ingressar na escola primária, para juntar as primeiras letras, somar os primeiros números, cantar as primeiras cantigas e hinos, brigar com os primeiros amigos e sonhar acordado com as primeiras paixões. Tudo isso estava reservado para ele, não fosse ele quem era. Arrancá-lo do lar foi uma verdadeira batalha, com uivos e gritos ouvidos a quilômetros de distância. O uniforme escolar de calçãozinho azul-marinho e cós rígido, com camisa branca engomadíssima e brilhante, enfeitada por uma gravatinha da cor do calção,  combinando com um par de meias três quartos brancas e botinas pretas lustrosas, desmantelou-se todo em poucos minutos. Olhando-se atentamente não se conseguiria distinguir entre uma ou outra peça do vestuário. Assim que saíram de casa, desvencilhou-se da mãe e saiu correndo em disparada dando de encontro a um poste. Ana o acudiu, levantando-o com uma só mão enquanto a outra vassourava a sujeira do chão presa em suas roupas. 

– Tá doido menino? Quer morrer?

Pronto! Uma luz acendeu no túnel escuro da cabeça do menino. Acalmou-se e deixou-se levar docilmente para a escola próxima. A mãe estranhou, chegou a pensar que o menino tivesse batido a cabeça com muita força, que ele estivesse grogue ou algo assim. Mas ela tinha visto o choque, bateu de ombro, nada de cabeça e também não havia marca aparente. Só estava calmo mesmo. Talvez o susto tivera um efeito benéfico. Seja como for, chegou ao portão da escola onde uma assistente aguardava as crianças. A moça abriu um sorriso para Anacleto que aceitou mansamente a mão estendida em sua direção. Foi para dentro tranquilamente andando ao lado da moça e sumiu das vistas da mãe quando subiram a larga escadaria do hall principal do antigo prédio amarelado. Antes de virar-se para voltar para casa, Ana leu no alto da fachada da escola: Antonio Firmino de Proença.

As palavras de sua mãe após o choque com o poste ainda ecoavam em sua cabeça. Menino… Quer… Morrer… Eram tão melodiosas, tão encantadoras. Canto doce e convidativo de sereias flutuantes num mar translúcido quente e aconchegante. Ele não sabia o que era a morte, mal havia saído das fraldas, mas uma força superior o empurrava para o maior dos mistérios. Acordou de seu devaneio sentado numa carteira escolar de ferro e madeira velha e rabiscada pelo tempo, acompanhado de várias crianças iguais a ele e uma professora rechonchuda e falante. Ela se chamava Neide, assim havia dito, e pedia a cada um dos alunos que se apresentassem dizendo seus nomes. Após uma sucessão de Pedrinhos, Rosinhas, Josés, Mariazinhas, Olavos e Ritas, chegou sua vez de dizer o nome.

– Ana…

– Hahahas…

– Como? Perguntou dona Neide.

– Ana… Cleto…

– Hahahas…

– Silêncio! Silêncio! Ralhou a professorinha. Anacleto é um nome bonito como outro qualquer.

Ele custou a entender do que riam as outras crianças. Primeiro pensou que era de sua voz e só depois percebeu que riam do seu nome. Achou estranho mas não ficou incomodado, já que estava decidido a descobrir ali como se chegava até a morte. Essas coisas pequenas não o tirariam do seu objetivo principal. Avaliou que entre os colegas de classe dificilmente encontraria alguém que pudesse ajudar, que tivesse alguma noção de como atingir sua meta. Mas teria que tentar. Se nenhum deles tivesse alguma ideia útil, teria que recorrer à professora. Acabou descobrindo, fazendo perguntas a respeito, que todos tinham muita informação para dar. Cada um tinha uma estória para contar sobre formigas, moscas, aranhas e baratas mortas; um contou sobre a morte de um gato e outro falou de um cachorro; pássaros, muitos pássaros; um falou até de um tio, morto em duelo, mas não tinha certeza se era verdade ou um filme antigo em preto e branco. Mas ninguém contou sobre a própria morte!

O sino cantou a hora do recreio e todos correram da sala em direção ao pátio interno do colégio. Ele permaneceu sentado, hesitando entre sair ou ficar para fazer perguntas para a professora, atarefada com listas de presença. Deu alguns passos em direção à mesa alta e permaneceu alguns segundos diante dela, olhando fixamente para a mulher sentada ali. Percebendo-se olhada, a mestra encarou o menino à sua frente e, entre assustada e surpresa, perguntou se ele queria alguma coisa?

MORRER… Anacleto pensou bem alto, como um grito. E saiu correndo para fora da sala, sem direção ou razão. Entendeu que não poderia contar com os adultos, que fariam tudo para impedi-lo. Era algo para se fazer sozinho, mas como? Imaginou que uma queda, uma grande queda, provavelmente poderia tirar a vida de alguém. Sua casa não tinha lugares altos, nem mesmo o telhado era suficiente. Mas ele estava agora nesse colégio que era um prédio alto, com dois andares, o suficiente para fazer um belo estrago. Pôs-se a perambular pelos corredores para encontrar um lugar adequado para seus intentos.

Naquele momento, na sala dos professores, o café com fofocas corria fartamente. Entre pedaços de bolos e tortas, coxinhas e empadinhas, a matemática, o português, a geografia e a história davam lugar aos comentários sobre as roupas inadequadas, o excesso de maquiagem ou o caso secreto entre a inspetora de corredor e o novo professor de educação física, casado! Eventualmente discutia-se a reclamação de uma mãe e a falta de modos e educação do filho da reclamante. De repente, ouviu-se um ganido medonho, um berro surdo asmático vindo da direção do professor de inglês, que do alto de seus 142 quilos, acabava de engasgar com o osso de uma coxinha, obstruindo sua garganta elegantemente envelopada por uma blusa de gola olímpica azul escuro.

Formou-se um bafafá tumultuado, todos correndo de um lado para o outro, tentando acudir o pobre sem saber o que fazer. Num ato de desespero o professor saiu em disparada para fora da sala de reunião, atropelando duas professoras e uma diretora pelo caminho, estatelando-se no chão, arfante, indo parar bem embaixo do vão da escada com o imenso barrigão para cima.

Nisso despenca lá do alto, como um pato abatido em pleno vôo ou um anjo querubim caído do céu, dependendo do ângulo que se olhasse, Anacleto, em carne e ossos, mais ossos que carne, de encontro ao seu planejado e triste destino, interrompido e salvo pela pança do professor estrebuchante. O menino caiu com os dois pés bem no umbigo do já quase moribundo, merecendo um 10 em saltos ornamentais pois não espirraria uma gota sequer. A pressão do golpe fez cuspir o osso de galinha da coxinha, feito jato de uma baleia, indo aboletar-se no alto da peruca da professora de música.

O professor sobreviveu graças ao ato heróico de Anacleto! Ele foi abraçado e festejado. Teve fanfarra, discurso e condecoração. Jornal, rádio e televisão, com direito a cumprimento do prefeito. A tudo ele assistiu impassível, à espreita da próxima oportunidade

CaMaSa

Anacleto

Ele era suicida, mas completamente incompetente para realizar sua intenção. Entre as inúmeras tentativas, uma mereceu até uma nota no jornal do bairro. Foi quando tomou 32 bolinhas de Aconitum napelus, 27 de Aesculus hippocastanum,  62 de Agnus castus, 24 de Barium carbonicum, 29 de Chamomilla, 36 de Cuprum metallicum, 29 de Hepar sulphuris, 23 de Histaminum, 58 de Iris versicolor, 31 de Lycopodium clavatum, 33 de Mercurius iodatus ruber, 45 de Morphinum, 16 de Phytolacca decandra, 35 de Scutellaria lateriflora, 67 de Tarantula hispanica e 19 de Zincum metallicum, todas homeopáticas! Quando os pais chegaram ao hospital, perguntaram ao médico:

— Ele vai sobreviver, doutor?

— Sobreviver vai, mas vai ao vaso como um cabrito por 3 meses!

Nascera normal, se é que podemos dizer normal um parto pelos pés e o cordão umbilical enrolado no pescoço. O médico tinha em suas mãos um bebê azul arroxeado que só sorveu a primeira golfada de ar depois da décima palmada! As enfermeiras entregaram para uma mãe ávida e curiosa, um recém-nascido com marcas de mãos claramente desenhadas na bunda. Ana era seu nome e ela não via a hora de poder mostrar esse pequeno anjo ao pai, Cleto. Passaram-se algumas horas até que finalmente os três puderam comemorar juntos o nascimento: Ana, Cleto e o pequeno Anacleto.

Perguntaram ao médico quando poderiam ir para casa? Quando o bebê mamar pela primeira vez, respondeu o doutor. Nove dias depois dispensaram os três, não sem antes obrigarem os pais assinarem um documento isentando o hospital de qualquer responsabilidade. Desceram do táxi com um pacotinho de pele e ossos com pouco mais de 1.600 kg, que havia nascido com 2.700 kg. Não demorou para que todas as tias e nonnas da vila viessem prestar socorro através de séculos de sabedoria acumulada na arte de criar e engordar pequerruchos. Padres e freiras, pais e mães de santo, curandeiros, místicos e céticos revezavam-se em procissão na tentativa de encontrar uma solução. Nutricionistas, químicos e físicos, advogados e juízes, militares de alta e baixa patente. Não tinha jeito! O moleque cerrava a boca como uma espada cravada em bigorna, a Espada era a Lei.

Claro que não passava pela cabeça dos pais, nem de ninguém, que um recém-nascido pudesse tentar contra a própria vida, até o dia em que ele começou a arrancar a mangueirinha do soro. Não na primeira nem na quinta vez, mas na décima bateu um baita desespero. O menino tentava se matar! O que já era assunto do dia virou um sururu danado! Camelôs, feirantes, donas de bordel, jogadores de futebol, diretores de escola, jornais, rádios e TVs. Tinha de tudo na pequena vila, todos querendo tirar uma casquinha da celebridade do momento. Uma semi-famosa, casada com um jogador de futebol semi-profissional, exigia uma posição melhor na fila. Uma equipe da TV Record havia conseguido uma exclusiva e filmou o menino no exato momento que arrancava o catéter do braço. Terminaram a reportagem com Anacleto de olhos esbugalhados, mãos e pés amarrados.

Numa quarta-feira de manhã, já com a audiência baixa e a desolação dos pais bem alta, bateu à porta um homenzinho baixo, por volta de 1,40 m de altura, magro, muito magro, com o rosto encovado, a pele macilenta grudada nos ossos. – Eu vou salvar a criança, anunciou timidamente.

Ana e Cleto sentiram um frio na espinha. Já haviam perdido a esperança, conformados que estavam com a sorte infeliz, preparados para o pior. Mas aquele homem revertera o quadro, acendera uma luz na escuridão, retesara os cabelos da nuca. A sensação durou pouco. Olhando novamente para o sujeitinho à sua frente, Cleto suspirou profundamente e deu-lhe as costas, indo sentar-se no sofá ao lado do berço. Já Ana, como todas as mães, acreditou mais um pouquinho e perguntou com alguma esperança:

– Como o senhor pode salvar o meu filho? Fazê-lo comer?

– Quero que seja preparada uma feijoada completa.

E passou para Ana a lista com os ingredientes:

  • 3,5 Kg de feijão preto (separados em 3K + 500g)
  • 500g de bacon
  • 500g de toucinho fresco laminado
  • 1 rabo de porco salgado
  • 1 pé de porco salgado
  • 1 orelha de porco salgada
  • 1 língua (nesse dia não encontrei pra comprar por isso não coloquei)
  • 1,5 Kg costelinha de porco salgada
  • 1Kg de pernil de porco salgado (pode ser lombo e pode ser metade de cada, mas prefiro o pernil por ser mais saboroso e suculento que o lombo)
  • 1,5 Kg de carne seca (eu prefiro o dianteiro que tem mais gordura e é mais saboroso, apesar do traseiro ser mais carnudo, mas pode ser meio a meio)
  • 4 paios
  • 2 linguiças portuguesas
  • 5 cabeças de alho brunoise (cubos mínimos)
  • 4 cebolas em cubos
  • 2 xícaras (chá) de talos de salsinha laminados finamente
  • 6 pimentas dedo de moça em lâminas
  • 4 folhas de louro
  • 1 laranja sem pele inteira
  • 3 cravos da Índia
  • 1 colher de café de semente de cominho
  • 2 doses de cachaça

Fez Ana anotar todos os detalhes minuciosos da preparação da feijoada, os cortes precisos das carnes, as quantidade exatas de cada condimento, os tempos cronometrados de cocção e fervura. Deveria acompanhar duas travessas grandes de arroz imaculadamente branco e uma dúzia de garrafas de cerveja a 3º C de temperatura.

Seja porque já haviam perdido a esperança, seja porque já não sabiam mais o que fazer mesmo, Ana e Cleto puseram-se atrás dos ingredientes, utensílios e tudo o que era preciso para atender a solicitação do estranho homem. Este sentou-se à cabeceira da mesa de jantar e aguardou em transe mediúnico o momento adequado à realização do seu prometido milagre. Não mexeu um dedo, não piscou um olho. Ficou petrificado durante aquela tarde e noite, assim amanheceu na quinta-feira, mantendo-se firme e resoluto durante toda sexta-feira, apesar do aroma que exalava a preparação de sua receita, já enlouquecendo toda vizinhança, já babando de vontade. Cleto teve que postar-se diante da porta, impedindo a entrada dos mais exaltados. Prometia a todos um bocado daquela gostosura, mas que a prioridade era salvar seu filho. Da sexta para o sábado teve que contratar um vigia, mas teve que despedi-lo pois este não aguentou e foi flagrado tentando provar um pouco daquele caldo de feijão dos deuses.

Ana e Cleto passaram a noite toda se revezando e sentiram os primeiros raios de Sol da manhã do sábado com os olhos vermelhos de sono e empedrados de cansaço. Faltavam poucas horas para o grande momento, o tal sábio determinara o almoço para meio dia em ponto. Este, aliás, estava lá, sentado na mesma posição. Cleto chegou a temer que o homem tivesse morrido, mas sossegou quando passou as costas da mão sob suas narinas. Ana preparou um café com leite e um pão com manteiga, mas a vontade de provar da feijoada era pavorosa. Resistiam por causa do Anacletinho, magrinho, quase um cadáver.

Passaram a manhã preparando e decorando os pratos conforme as instruções detalhadas, ajeitavam as louças e os talheres. Puseram à mesa o que de melhor possuíam, o que não era grande coisa, mas colocados da forma orientada e com os conteúdos tão perfumados e vistosos, pareciam ser porcelanas finas, cristais e pratarias do mais alto nível. Faltando um minuto para soar o relógio, Cleto dispôs as garrafas geladíssimas de cerveja, abrindo a primeira exatamente ao meio dia. Automaticamente o homem abriu os olhos. Inspirou o ar longa e profundamente e atacou a feijoada com uma ferocidade incomparável. Feijão, pés, orelhas, arroz e farofa, tudo era absorvido por aquele poço sem fundo de sua boca. Cleto fez menção de pegar uma colher de arroz mas recuou diante do rosnado assustador do homenzinho. Teve a impressão de ser um leão defendendo sua presa. Em pouco mais de meia hora o fato estava consumado. Não havia um grão de feijão, um pó de farofa ou uma gota de cerveja para provar que ali existiu uma feijoada.

De repente o comilão teve um espasmo, virou-se para a criança no berço e deu um fétido, sonoro e longo arroto de satisfação que empesteou toda a casa. Os pais correram a abrir portas e janelas, mal conseguindo respirar aquele ambiente poluído por aquele fedor infernal. Não havia um vizinho à porta. Fugiram todos, preocupados com a própria segurança. O homenzinho tomou o caminho da rua, passando por Ana e Cleto. Disse a ambos:

– O menino vai comer normalmente agora e nunca, nunca conseguirá tirar a própria vida.

Os dois se entreolharam incrédulos e correram para o berço. Ana ofereceu uma mamadeira, que foi devorada rapidamente.

CaMaSa

Eu li Sérgico

Roubil

Seu nome de batismo era Sérgio, mas como era baixo e magro, logo virou Serginho e depois Sérgico.  Era o final dos anos 70, o mundo passava por transformações (e quando não passou?), e os pós adolescentes ainda não adultos daquela época, também passavam por transformações. E que transformações! De alguma maneira, aqueles que já tinham atingido a maturidade quebraram algumas regras inquebráveis e deixaram portas abertas para os moleques que vinham na sequência. Sexo, drogas & rock’n’roll traziam possibilidades inéditas e inimagináveis para a geração dos seus pais, por exemplo. Mas o caminho dessas novas experiências traziam alertas tenebrosos intimidando os menos afoitos. Havia placas assustadoras indicando perigo, e o perigo era real.

O Rock era, inocentemente, uma das portas de entrada para sexo e drogas. Aqueles que sentiram as trincas estalando na casca do ovo, se atraiam e criavam irmandades secretas onde inicialmente tímidos e pequenos prazeres eram vivenciados. As novas regiões do corpo, saboreadas após os beijos infanto-juvenis, potencializando sensações e desejos profundos e ancestrais, propulsores da preservação e perpetuação da espécie. O verniz social que mantinha moços e, principalmente moças, limitados pelo pecado e pelos interesses financeiros relacionados ao patrimônio e status familiar, havia se espatifado irreversivelmente, como um jarro de cristal. 

Além da descoberta do “sexo sem culpa antes do casamento”, havia a contestação ao sistema político-social estabelecido pela força ou pela fuga da realidade. No fim, se descobria que ambas eram faces da mesma moeda. De uma forma ou outra, estamos presos a um período temporal que vai do nascimento à morte e, ninguém, mas ninguém mesmo, supera essa verdade. Para este relato, vamos pelo caminho das drogas.

Ao contrário do que diziam nossos pais e avós, ninguém te forçava a fumar maconha. Sérgico circulava por todas as rodas da época, das tardes ensolaradas de verão no recém inaugurado clube do Juventus no Parque da Mooca, às praias da Baixada Santista com seus biquínis recheados de corpos bronzeados pelo Sol e aromatizados pelo sal marinho. Ele havia sido expulso do grupo de jovens da São Rafael por ter feito uma guerra de refrigerantes no salão de festas da igreja, com alguns dos elementos que já não rezavam o Pai Nosso e a Ave Maria de acordo com as orientações do Padre Joaquim. Era um grupo de jovens que já tinham um pé na igreja e outro nas dependências pouco esportivas do clube, onde os limites entre o certo e o errado já eram zonas cinza da razão.

Festas, bailes, domingueiras, formaturas, pontos de encontro em botecos e portas de escola, tudo era motivo para fazer correr os cigarros de erva entre os jovens. Sérgico frequentava todos esses locais sem ser discriminado por isso. Pelo contrário, muitos gostavam de não ter que dividir a marijuana. Então, apesar de não usar, ele não era considerado um “careta” como aqueles que não faziam parte da turma. Presenciava o auge e a depressão de cada um como testemunha ocular da insensatez. Ria-se muito para logo depois entrar num período de incompreensão que só terminava quando os efeitos da cannabis terminavam. Sem dúvida era um uso pouco científico da coisa! Mas nunca, nunca mesmo, alguém fez, para usar um termo atual, bullying com ele por não fumar. Nunca foi forçado, até o dia que resolveu experimentar…

Era cético e, como sempre, não se deixou levar por falsas sensações ou pela necessidade de provar algo aos demais. Não sentiu nada. Mas, infelizmente, isso não pôs um ponto final na brincadeira perigosa, mas o estimulou a usar até sentir o que se dizia que era para experimentar. Tornou-se um expert em sentir o mesmo auge e a depressão que percebia nos outros quando não usava. E a necessidade desse falso bem-estar, que vai se tornando cada vez mais curto, nos faz usar cada vez mais. Nunca comprou, mas sempre teve um parceiro para dividir um baseado, ou deixar uma boa quantidade em seu quarto, bem escondido, em segurança. As viagens para Santos e Guarujá foram se tornando cada vez mais constantes. A areia branca, o céu azul, o balanço das ondas em câmera lenta combinavam perfeitamente com o barato da droga. O deslizar das pranchas dos surfistas tornou-se uma obsessão e, assim que foi possível, comprou a primeira tábua para desbravar esse mundo quase infinito depois da arrebentação.

Ele e seu amigo Bem-te-vi resolveram levar o surf a sério e, assim que o amigo conseguiu o primeiro carro, o Bobrão, que era um fuscão abóbora com vários anos de uso, rumaram para o paraíso das ondas, a cidade de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Na bagagem, duas pranchas, 300 gramas de maconha e três ácidos, pretos, em formato de triângulos. Com o entusiasmo nas alturas, pegaram a Dutra e bateram no carro da frente após ter percorrido não mais que 5 quilômetros. Já fumados e loucos para sair da encrenca, deram endereços falsos para os ocupantes do carro atingido e seguiram viagem com o capô do fusca amassado. Desceram a serra de Caraguatatuba e seguiram em direção norte.

Chegaram em Ubatuba à noite, tendo somente tempo de comer alguma coisa no Centro e se jogar no buraco chamado pensão para dormir exaustos. No dia seguinte, tomaram um pingado com pão com manteiga e racharam irmanamente os LSDs, um e meio para cada um. Diferentemente da primeira vez que Sérgico fumou maconha, o ácido bateu forte, muito forte, pra lá de forte! De repente estavam sentados na areia da Praia Grande de Ubatuba, lotada de gente num sábado ensolarado, gargalhando sem sentido um para o outro. Por sorte, surgiram do nada dois amigos, Nero e Carioca, que colocaram as mãos na cabeça quando os viram.

– Meu Deus, o que vocês estão fazendo aqui?

Tiraram os dois de lá imediatamente e os levaram para a praia Vermelha do Sul, isolada e deserta, ideal para aquele estado de doideira. No caminho, Nero desceu do fusca para pegar bananas de uma bananeira à beira da estrada. Ele usava uma bermuda amarela com estampas de folhas de cannabis verdes e, na época, usava uma barba bem cheia. Sérgico olhava para ele no meio das folhagens e via um santo, um Jesus moderno e surfista. Nero e Carioca deixaram os amigos lá em razoável segurança. Na praia, Sérgico fincou sua prancha roxa com parafina verde na areia e via as cores dançarem diante dos seus olhos num movimento psicodélico inebriante. Entrou na água refrescante para tentar voltar pra Terra mas a coisa ficava cada vez mais forte. Subiu com esforço a rampa de areia do mar cavado da praia e deitou no chão. O vento soprava cósmico nos seus ouvidos e ele sentia que estava apoiado no ponto extremo da curvatura do planeta. Atrás do seu corpo, toda a imensa bola azul chamada Terra, viajava pelo espaço sem fim a milhares de quilômetros por hora. Ele já não se comunicava com ninguém, só vivia com grande intensidade a força dos sentidos. Ver, ouvir, cheirar, sentir… intensa mente!

Naquela praia deserta, onde em cinco minutos todo um dia se passou, surgiram três figuras estranhas. Eram jovens, mas feios, muito feios. Eram tortos e desproporcionais de rosto e corpo, totalmente opostos aos padrões de beleza da juventude dourada que todos buscavam ser. Um era gordo, tinha olhos esbugalhados e andava se arrastando. O outro era magro, tinha o rosto marcado e envelhecido, os cabelos longos e quebradiços, mas era jovem. O terceiro era muito alto e muito magro, a tez escura, acinzentada. Mas eram gentis e amistosos. Eles se aproximaram curiosos, como quem chega mansamente perto de dois pássaros coloridos e raros, entorpecidos e impossibilitados de voar. Os três rapazes puseram-se a explicar a origem do tempo e do espaço, a ordem natural das coisas e os segredos que habitam o coração dos homens. O equilíbrio entre a bondade e a maldade e o Conhecimento de si mesmo como fonte da compreensão, gratidão e felicidade. Um deles mostrou uma placa de madeira onde estava esculpido um nome. A todos que perguntam o que estava escrito, Sérgico responde:

– Eu li Sérgico.

Chegaram tarde da noite na pensão e acordaram no dia seguinte sem saber o que havia sido sonho ou realidade no dia anterior. Sérgico viveu mais alguns anos nessa intensa busca de si mesmo até que teve a sorte de encontrar quem mostrou o caminho para dentro. Da forma mais simples e eficaz, ele pôde acessar a verdade que habita debaixo do nariz e se libertou de todo e qualquer tipo de dependência. Perdeu vários amigos, muito jovens, que não tiveram a mesma sorte e foram dominados ao invés de dominarem seus desejos. Isso não fez dele melhor do que ninguém, mas permaneceu vivo e em paz até os dias atuais. Como todo mundo, não se sabe por quanto tempo, mas vive um sentimento de gratidão sincero a cada despertar, a cada novo dia. Feliz daquele que se descobre aluno, nesta grande sala de aula da vida, com seu Mestre.

CaMaSa

Urrei Leão

Roubil

Você é a favor do terrorismo? Melhor dizendo, você acredita que há momentos históricos em que os fins justificam os meios, mesmo sendo esses meios, corpos despedaçados de crianças inocentes? Pelo menos consegue compreender que esses atos gerarão uma reação violenta, oposta e proporcional para voltar à normalidade? Algumas coisas são discutíveis e toleráveis no campo das ideias, mas indiscutíveis e intoleráveis no mundo real.

Recentemente, zapeando pelos shorts do Youtube, fui atraído pela linda imagem de um imponente leão africano deitado sobre a barriga, com suas enormes patas dianteiras esticadas à sua frente, como uma esfinge. Um macho adulto, provavelmente líder do harém, com uma juba volumosa agitada levemente pelo vento aquecido pelo Sol escaldante. Abaixo dele, brincando despreocupadamente, um lindo filhote de alguns meses pulava abaixo da cabeça enorme do seu pai, aparentemente adormecido.

De repente, num movimento extremamente rápido, certeiro e cruel, o leão abocanhou o pequeno filhote com uma mordida de 400 kg, matando-o instantaneamente. Ouviu-se apenas o KLANC dos ossos partidos e tudo voltou ao silêncio do vento e dos insetos novamente. Passar por este planeta não é para amadores…

Faço uma ideia de mim como uma boa pessoa. Eu cheguei num estágio da vida em que somente vivo e deixo viver. Me afasto das pequenas e grandes discussões. O assassinato, tirar a vida de alguém, está no nível mais alto do crime. Sinceramente, não gosto de matar nem uma formiga. Vejo nelas a mesma energia vital que me mantém vivo, e tudo mais. No entanto, já matei um gato.

Era um gatinho minúsculo, branquinho, que havia sido enterrado vivo num buraco de onde havia sido retirada uma estaca de madeira com mais ou menos 12 por 12 centímetros. Crianças de 7 a 9 anos, menores que eu e meu amigo na casa dos 11 a 12, haviam jogado o pequeno animal nessa mini cova de 30 centímetros de profundidade e coberto com alguma terra. 

Quando percebemos o que estava acontecendo, socorremos o infeliz gatinho desacordado e sujo de terra. Decidimos que ele estava mais morto que vivo e resolvemos dar um fim ao seu sofrimento da maneira mais rápida possível. Naquela época, formava-se sob uma das torres de transmissão de energia uma pequena lagoa, de uns 6 metros de diâmetro e meio metro de profundidade. Nenhuma criança se aproximava daquela água, perigosa e traiçoeira, segundo os mais velhos.

Tivemos a brilhante ideia de passar um pedaço de barbante pela barriga do gato e amarrá-lo a um pedaço de tijolo partido. Seguramos o tijolo um de cada lado, cúmplices de um ato que parecia ser normal e lógico então. Um, dois, três… e lançamos gato e tijolo ao meio da lagoa. 

O impacto com a água fria ressuscitou o gatinho que, agora desperto, lutava com todas as suas forças para se manter na superfície. Girava rapidamente as patas dianteiras enquanto o peso do tijolo o mantinha 2 centímetros abaixo da linha da água. Nós assistíamos desesperados aquela cena absurda, paralisados pelo terror e medo de entrar na água turva para salvar o bichano. “Entra você!” “Eu não, vai você…” Até que aos poucos, suas forças esvaíram, e ele afundou sem ar nos pulmões, com sua pelagem agora limpa e branca balançando ao sabor da água em câmera lenta.

Existem grandes e pequenos erros. A morte é irreparável.

Você é a favor do terrorismo de esquerda ou de direita?

CaMaSa

As duas mortes do Paulinho

Roubil

As duas mortes do Paulinho

Conheci o Paulinho poucos anos depois que nasci e, de cara a identificação foi muito grande. No colégio, na São Rafael, no clube, na vizinhança. Amizade mantida por quase 60 anos! Em parte porque seu bom senso, equilíbrio e inteligência estavam sempre evidentes e à disposição. Em parte porque essas qualidades passavam longe de mim e ele era minha fonte de inspiração. Eu aprendia a ser melhor em sua companhia. E eu precisava desesperadamente ser melhor…

Lembro de uma passagem incrível! Fazíamos o cursinho do Anglo, na Rua Tamandaré, no século passado. Eu tinha um incrível Chevette bege, com rodas, parachoques e retrovisores pintados de preto fosco. Ele pegava carona comigo e realmente prestava atenção às aulas, porque tinha um plano, um objetivo, uma meta. Tornar-se engenheiro, seguir uma carreira, um bom emprego, uma vida honesta e confortável. Já eu, indolente e displicente, ia para o curso somente para me divertir e paquerar. Eu carregava no coração uma rebeldia estéril e perigosa, que quase pôs um fim nos sonhos do Paulinho.

Certo dia, voltando do Anglo por volta da hora do almoço, num dia triste e frio, cinzento, atravessei o Viaduto São Carlos, à época calçado com paralelepípedos, em grande velocidade, tendo o Paulinho cada vez mais tenso ao meu lado, segurando-se onde fosse possível. Não existiam cintos de segurança, e se existissem, não usávamos. Virei à direita na Sarapuí e cruzei o farol da Rua Jumana a mais de 100 km/h, motor rugindo a bateção do cabeçote cada vez mais forte, rasgando a Rua Dom Joaquim de Melo cada vez mais rápido e se aproximando da curva que desemboca na Rua Celso de Azevedo Marques numa velocidade não permitida pela física.

O carro levantou as duas rodas do lado do passageiro e, lentamente, muito lentamente, foi girando sobre si mesmo num looping sem fim. Nos espatifamos num poste de concreto do outro lado da rua, dividindo o veículo e seus ocupantes em algumas partes. Meu amigo foi lançado pelo pára-brisas e, na sequência, atropelado algumas vezes pelo Chevette, tendo 18 ossos do corpo partidos, perfurações em vários órgãos e esmagamento craniano, provocando, em frações de segundos, dores e sofrimentos inenarráveis. Mas foi tudo tão rápido e tão eterno, que ele mal percebeu quando soltou a última exalada e caiu nos braços do Universo! Essa foi a primeira morte do Paulinho.

No entanto, porque não era chegada a hora e tínhamos um destino a cumprir, Deus, em sua infinita bondade, operou um pequeno milagre e, no exato momento em que os pneus  se levantaram a 30 centímetros do chão, pressionou levemente o teto do carro para baixo, como faz uma criança com seu carrinho de brinquedo, e o carro retomou sua trajetória apenas com algumas leves derrapadas. Nos deu uma segunda chance. O Paulo saiu da sua imensa calma e tranquilidade natural e explodiu num elogio:

– Nino, você é um grande filho da puta!!!!

E ele tinha razão, muita razão… A partir dali, procurei cada vez mais aprender com ele, adquirir a mesma responsabilidade e consciência que ele sempre teve. Seguimos nossos destinos, criamos nossas filhas e mantivemos contato sempre. Ele sempre admirou tudo que eu escrevo, sendo capaz de através da sua racionalidade e inteligência, interpretar as coisas que emergem do meu coração.

Sua segunda morte foi hoje, em sua casa, em seu leito, tranquilo e sossegado, sem dor e aflição, na santa paz de Deus. Cumpriu com louvor e dignidade sua missão aqui nesta Terra.

CaMaSa

Brigas

Roubil

Recentemente foi anunciada com grande estardalhaço a luta entre um ex-boxeador campeão mundial e um ex-big brother fanfarrão. A publicidade exaltava o caráter conflituoso do embate, muito mais uma briga de rua do que um combate pugilístico, definido por regras específicas. A tal luta do século terminou de forma vexaminosa em 36 segundos, com um dos oponentes estatelado no chão. Eu não vi, mas a enxurrada de vídeos e memes replicados nas redes sociais, me trouxe à lembrança brigas verdadeiras, dessas de partir narizes e corações. Uma em especial aconteceu debaixo do meu nariz, ou melhor, sobre mim, nos meus tenros e inocentes primeiros anos de vida. Havíamos recém mudado para um novo endereço, numa rua qualquer da Mooca, próximo ao centro da cidade de São Paulo. O imóvel alugado era um pequeno galpão no andar térreo de um prédio de 3 andares, o Edifício Marly, onde meu pai instalou sua marcenaria. Nossa moradia era nos fundos, um quarto, sala e cozinha, bem apertados.

Meu pai era um excelente artesão marceneiro. Ele não tinha, digamos, delicadeza, seus móveis eram maciços e pesados, feitos para “durar para sempre”. Aprendeu o ofício em sua terra natal, num pequeno vilarejo da Itália, no alto de uma montanha, na província de Salerno, ao sul de Nápoles. Teve como mestre um paisano que o arrastou para o Brasil anos mais tarde, em busca de sonhos de riqueza. Ou pelo menos de comida na barriga. Já era casado e deixou para trás minha mãe, grávida da segunda filha, e a minha irmã mais velha, então com 3 anos. O pós-guerra deixou a parte mais pobre da Europa sem esperanças e ele acabou embarcando numa aventura sem volta, atravessando o Atlântico num navio escuro e enferrujado em direção a uma terra distante e desconhecida.

Quando aqui chegou, fez o que qualquer jovem cheio de energia e mal orientado faria. Meteu-se em confusões cada vez mais complicadas, até que minha mãe, desesperada e muito mais consciente, veio em seu socorro com duas crianças a tiracolo, livrá-lo das malhas do destino das quais ele mesmo teceu e se enrolou. Evidentemente, depois de 3 anos e meio tinham muitas contas para acertar, muita mágoa enraizada difícil de arrancar do peito. Do silêncio raivoso e velado, passaram às cobranças dolorosas e às ofensas explícitas. A pouca cultura era facilmente suplantada pela necessidade de respostas a perguntas que jamais seriam completamente respondidas, e os bate-bocas iam tornando-se cada vez mais altos, à medida que o molho de tomates para o macarrão feito em casa subia na panela e borbulhava, preenchendo a pequena cozinha onde se almoçava e jantava, com um aroma suave e saboroso, saudoso de Itália.

Nesses momentos em que a gritaria ganhava cada vez mais volume, eu, aos 5 para 6 anos de idade, pegava meu caderno e me escondia debaixo da mesa para fazer a lição de casa. Essa é minha primeira lembrança do entendimento do que meu pai fazia para nos sustentar. A mesa tinha o tampo de fórmica verde-água, com minúsculos pontinhos dourados brilhantes. Era a novidade americana dos anos 50 que havia chegado ao Brasil dos anos 60. Os pés eram de madeira maciça com 90 centímetros de altura, cônicos, com cerca de 12 centímetros de diâmetro no topo e afinando para uns 5 centímetros na base. Pintados com alguma espécie de tinta preta, própria para a madeira. Estavam firmemente fixados ao tampo em sapatas de madeira com muita cola e parafusos, impossível de soltar.

Era embaixo dessa obra de arte robusta, marca registrada do meu pai, que eu resolvia as primeiras contas aritméticas aprendidas no primeiro ano primário, à meia luz difusa sob a mesa, enquanto do lado de fora da minha cabana improvisada os gritos e xingamentos atingiam decibéis muito acima do tolerável. Absorto nos meus cálculos de complexidade infinita, eu me apartava da confusão entre meus pais, sem absorver nada do que se diziam um ao outro. Nem percebi quando a certa altura, o molho cansado de ferver e gemer, agarrou-se ao fundo da panela, queimando um pouco. Seja porque os nervos estavam à flor da pele, ou porque os sonhos de riqueza haviam se transformado num pesadelo de desilusões, ou porque o cheiro de tomate queimado lembrou seu estômago de que a fome não seria justamente aplacada naquela noite, meu pai atirou a panela com violência contra a parede de azulejos brancos, amarelados pelo tempo.

O molho fervente espalhou-se pela parede como sangue borbulhante de raiva. O barulho do impacto, ao invés de arrefecer os ânimos, multiplicou o ódio dos corações ressentidos. Diante da situação desoladora e encurralado pelos gritos de minha mãe, meu pai fez exatamente o que lhe cabia naquele momento: arrancou um dos pesados pés da mesa e golpeou com ele várias vezes o tampo de fórmica. Eu, alheio a tudo que se passava, despertei do meu estado de torpor estudantil e saí às pressas do abrigo que desmoronava sobre minha cabeça. Surpresos e espantados com minha aparição em cena de modo tão estapafúrdio, meus pais pararam imediatamente a discussão. Corri para os braços de minha mãe, que me acolheu com seu manto de proteção, como só as mães sabem fazer. Um misto de alívio e paz invadiu o pequeno recinto e eu fiquei com a sensação que poderia ser um portador de paz a todos os conflitos, através da minha imparcialidade, distanciamento e calma.

Não que naquela época eu tivesse alguma ideia do que pudesse ser imparcialidade, distanciamento ou até mesmo calma. Conceitos que foram sendo absorvidos e compreendidos durante a jornada de toda uma vida. Mas são as primeiras lembranças e impressões fixadas na memória, mesmo 60 anos depois. Para minha sorte, não me lembro dos conflitos anteriores, que talvez tenham sido muito piores do que esse. Deus, em sua infinita bondade, poupa os pequeninos dos gritos, discussões e agressões verbais, tão doídos como tapas na face ou socos no estômago, para que não os carreguem pela vida como traumas sem explicação. Há o Bem e o Mal em nossos corações. Escolhamos o Bem. Falemos baixinho uns aos outros, como num sussurro de amor e compreensão. As crianças agradecem.

CaMaSa

O Crime da Irmã Amara

Roubil

Esta é uma estória do tempo em que as fofocas eram ditas a boca pequena, ainda não existia internet e redes sociais, e as pessoas, entre as quais padres e freiras, não podiam amar livremente. Ela é, como sempre, baseada em trechos de conversas interrompidas, sem conclusão, um ou outro nome meio esquecido, uma ou outra palavra perdida nos vãos da memória e da confusão. Ouvindo essas coisas entro numa espécie de transe, ouço atento nem pisco, olho a pessoa mas já não estou lá. Vejo-me entre os personagens descritos, vagueio entre eles sentindo seu cheiro, seu gosto e suas cores. Claro que trocarei os nomes dos envolvidos, nossa freira não se chamava Amara e, pelo contrário, ela era muito doce e gentil. 

O colégio, palco do nosso drama, também não se chamava Colégio Divino Coração em Chamas e para ser o mais verossímil possível, digo que se localizava em São Paulo, em bairro nobre e elegante. Pelos extensos corredores de ladrilhos hidráulicos absurdamente limpos, polidos e brilhantes, circulavam diariamente alunos, professores, serventes e funcionários da administração, todos e tudo regidos com mão de ferro pelas freiras Marianas. Cada setor da escola, da biblioteca ao jardim, tinha uma irmã responsável pelo gerenciamento das atividades de cada funcionário contratado e nada fugia desse controle. Lâmpadas, fechaduras, carteiras, bancos, lousas sempre limpas para as aulas do dia seguinte, com a quantidade exata de giz a ser usado de acordo com a matéria, exaustivamente preparada pelos professores e supervisionada pela freira encarregada da correspondente disciplina. Os fundamentos cristãos eram cuidadosamente inseridos nos conceitos científicos, permeando todas as disciplinas, da Matemática à Língua Portuguesa, da História à Geografia, da Física à Química, do Francês ao Latim. Isso não desmerece tais fundamentos, vez que são aplicados por seres humanos humanos sujeitos a erros como qualquer um, ainda que freiras. Errare humanum est, perseverare autem diabolicum!

Entre erros e acertos (milhares de acertos para pouquíssimos erros), dedicavam-se aos serviços na Secretaria do colégio, duas jovens irmãs recém-casadas, cujos filhos Laís, Pedro e Paulo, de Ana, e Rita e Lúcia, de Joana, puderam frequentar uma escola de tão alta qualidade, devido ao trabalho das mães. Ana deslocava-se com seu Fusquinha pela cidade aos primeiros raios do Sol, levando consigo as cinco crianças. Uma escadinha de 10, 9, 7, 6 e 5 anos. Começava o trabalho às seis horas da manhã e terminava o turno ao meio dia. Ana deixava o carro para Joana e voltava de condução. Sua irmã dava início então, indo até às seis da tarde e voltava para casa com as crianças que passavam o dia na escola, entre aulas, estudos, tarefas e períodos de inatividade. Num desses períodos ociosos, o pequeno Paulinho, arteiro da planta dos pés até a ponta dos cabelos loiríssimos, quase platinados, deixou irmãos e primas estudando na biblioteca com a desculpa que ia ao banheiro. Seguiu pelo corredor vazio, desceu as escadas e foi em direção ao imenso jardim interno, nos fundos do colégio. Gostava de vaguear entre as árvores frutíferas do pomar, caçando mangas maduras no pé. Avistou uma amarelinha no alto da copa e trepou rapidamente por entre os galhos. O fruto soltou fácil, com um leve puxãozinho. Deu a primeira dentada e puxou a casca com os dentes, sentido o perfume delicioso exalado. Nesse exato momento ouviu um barulho. Passos e vozes aproximaram-se afobados do tronco da mangueira. O menino ficou em silêncio, prendeu a respiração para não ser descoberto. Reconheceu a irmã Rosinha, seguida pelo motorista da escola, o Tobias. Os dois se abraçaram bem abaixo do garoto estupefato, agora de olhos arregalados. Quando os amantes se beijaram, suas mãos perderam as forças e a manga escorregou entre os seus dedos, indo se estatelar na cabeça do motorista!

Tobias nem teve tempo de levar a mão à cabeça. Paulinho perdeu o equilíbrio e caiu por cima do pobre, rolando os dois pelo chão. Não se sabia dizer qual dos três estava mais surpreso e assustado. O menino pela confusão, a freira pelo constrangimento ou o motorista que pensava estar sendo punido por Deus! O casal, refeito do susto, encontrou uma rápida solução. Ralharam com a criança, ameaçando-o com o castigo divino caso ele falasse com alguém sobre coisas que ele imaginava ter visto e, por trepar em árvores pondo a vida dos outros em perigo, seria trancado no barraco de ferramentas da irmã Amara, responsável pelo jardim. E lá ficou o garoto trancado no escuro, sozinho, com medo e arrependido de ter visto coisas que não compreendia e não deveria ter visto. 

Joana procurou o sobrinho por todo o colégio com o auxílio dos demais funcionários e freiras, até que finalmente chegaram ao pequeno depósito de ferramentas. Abriram a porta que estava trancada por fora com um simples trinco e encontraram Paulinho sentado no chão, o rosto entre as pernas, chorando baixinho. O menino não falava nada, estava completamente mudo, sem explicar como havia sido trancado lá. A tia concluiu que ele havia feito alguma traquinagem e a irmã Amara castigou seu sobrinho, trancando-o no pequeno galpão. Procurou a freira para saber o que havia se passado, mas soube que ela e a irmã Rosinha haviam sido levadas pelo motorista Tobias ao Mappin, no centro da cidade, para fazer algumas compras. Reuniu a criançada, embarcou todos no Fusquinha e voltou para casa ao encontro da irmã. Resumiu em poucas palavras o que havia ocorrido e entregou o garoto aos cuidados da mãe. 

Ana não conseguiu arrancar explicação alguma do filho e prometeu que no dia seguinte tiraria essa história a limpo. Não conseguia pregar os olhos. O que mais lhe doía era a traição. Amava a irmã Amara, sempre carinhosa com as crianças, sempre disposta a ajudar, amiga e verdadeira, uma grande inspiração. Como ela podia ter feito isso? Passou a noite acordada pensando no que diria à freira. Acusaria, ofenderia e ameaçaria ir à polícia. Não foi necessário. Ao acordar no dia seguinte, encontrou o marido imóvel, xícara de café suspensa no ar, diante da televisão. O jornal da manhã noticiava o caso da freira que na tarde anterior havia sido presa por furto no Mappin. Ela havia sido pega roubando uma calcinha, escondida em seu hábito. Era a irmã Amara!

* * *

Naquela tarde, depois de trancarem o menino no galpão de madeira, Tobias e a irmã Rosinha encontraram a irmã Amara em frente ao colégio. As duas foram encarregadas de comprar toalhas e guardanapos de linho para a mesa de jantar do restaurante oficial, reservado a visitantes ilustres. Irmã Amara sentou-se no banco da frente ao lado do motorista e não percebeu quando este e a noviça de vinte e poucos anos, metade de sua idade, trocavam olhares apaixonados e suspeitos. Eles haviam decidido, em parte pela tensão ocorrida horas antes, em parte porque a paixão já não cabia em seus corações, fugir para o Rio de Janeiro e dar início a uma nova vida juntos. Rosinha sentia vergonha de consumar seu amor pela primeira vez, usando calcinhas largas e puídas de linho grosso que compunham a vestimenta das freiras. Imaginou entregar-se desnuda, mas considerou isso um pecado. Circulando pela loja, ao passar pela seção de moda feminina, pegou uma calcinha vermelha de rendas e, temendo ser vista, enfiou rapidamente no bolso da companheira sem que essa percebesse.

Flagrada, assustada e absolutamente inocente, sem entender o que estava acontecendo, irmã Amara foi fichada e condenada, sendo preciso a intervenção de advogados da arquidiocese paulistana para liberá-la da prisão. Foi transferida para uma pequena e desconhecida diocese no interior do Estado, no meio de uma enorme fazenda, onde pôde cuidar de plantas e flores. Quanto a Rosinha e Tobias, tiveram seis filhos, seguindo fielmente o preceito cristão: “Crescei e multiplicai-vos”.

CaMaSa