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Brigas

Roubil

Recentemente foi anunciada com grande estardalhaço a luta entre um ex-boxeador campeão mundial e um ex-big brother fanfarrão. A publicidade exaltava o caráter conflituoso do embate, muito mais uma briga de rua do que um combate pugilístico, definido por regras específicas. A tal luta do século terminou de forma vexaminosa em 36 segundos, com um dos oponentes estatelado no chão. Eu não vi, mas a enxurrada de vídeos e memes replicados nas redes sociais, me trouxe à lembrança brigas verdadeiras, dessas de partir narizes e corações. Uma em especial aconteceu debaixo do meu nariz, ou melhor, sobre mim, nos meus tenros e inocentes primeiros anos de vida. Havíamos recém mudado para um novo endereço, numa rua qualquer da Mooca, próximo ao centro da cidade de São Paulo. O imóvel alugado era um pequeno galpão no andar térreo de um prédio de 3 andares, o Edifício Marly, onde meu pai instalou sua marcenaria. Nossa moradia era nos fundos, um quarto, sala e cozinha, bem apertados.

Meu pai era um excelente artesão marceneiro. Ele não tinha, digamos, delicadeza, seus móveis eram maciços e pesados, feitos para “durar para sempre”. Aprendeu o ofício em sua terra natal, num pequeno vilarejo da Itália, no alto de uma montanha, na província de Salerno, ao sul de Nápoles. Teve como mestre um paisano que o arrastou para o Brasil anos mais tarde, em busca de sonhos de riqueza. Ou pelo menos de comida na barriga. Já era casado e deixou para trás minha mãe, grávida da segunda filha, e a minha irmã mais velha, então com 3 anos. O pós-guerra deixou a parte mais pobre da Europa sem esperanças e ele acabou embarcando numa aventura sem volta, atravessando o Atlântico num navio escuro e enferrujado em direção a uma terra distante e desconhecida.

Quando aqui chegou, fez o que qualquer jovem cheio de energia e mal orientado faria. Meteu-se em confusões cada vez mais complicadas, até que minha mãe, desesperada e muito mais consciente, veio em seu socorro com duas crianças a tiracolo, livrá-lo das malhas do destino das quais ele mesmo teceu e se enrolou. Evidentemente, depois de 3 anos e meio tinham muitas contas para acertar, muita mágoa enraizada difícil de arrancar do peito. Do silêncio raivoso e velado, passaram às cobranças dolorosas e às ofensas explícitas. A pouca cultura era facilmente suplantada pela necessidade de respostas a perguntas que jamais seriam completamente respondidas, e os bate-bocas iam tornando-se cada vez mais altos, à medida que o molho de tomates para o macarrão feito em casa subia na panela e borbulhava, preenchendo a pequena cozinha onde se almoçava e jantava, com um aroma suave e saboroso, saudoso de Itália.

Nesses momentos em que a gritaria ganhava cada vez mais volume, eu, aos 5 para 6 anos de idade, pegava meu caderno e me escondia debaixo da mesa para fazer a lição de casa. Essa é minha primeira lembrança do entendimento do que meu pai fazia para nos sustentar. A mesa tinha o tampo de fórmica verde-água, com minúsculos pontinhos dourados brilhantes. Era a novidade americana dos anos 50 que havia chegado ao Brasil dos anos 60. Os pés eram de madeira maciça com 90 centímetros de altura, cônicos, com cerca de 12 centímetros de diâmetro no topo e afinando para uns 5 centímetros na base. Pintados com alguma espécie de tinta preta, própria para a madeira. Estavam firmemente fixados ao tampo em sapatas de madeira com muita cola e parafusos, impossível de soltar.

Era embaixo dessa obra de arte robusta, marca registrada do meu pai, que eu resolvia as primeiras contas aritméticas aprendidas no primeiro ano primário, à meia luz difusa sob a mesa, enquanto do lado de fora da minha cabana improvisada os gritos e xingamentos atingiam decibéis muito acima do tolerável. Absorto nos meus cálculos de complexidade infinita, eu me apartava da confusão entre meus pais, sem absorver nada do que se diziam um ao outro. Nem percebi quando a certa altura, o molho cansado de ferver e gemer, agarrou-se ao fundo da panela, queimando um pouco. Seja porque os nervos estavam à flor da pele, ou porque os sonhos de riqueza haviam se transformado num pesadelo de desilusões, ou porque o cheiro de tomate queimado lembrou seu estômago de que a fome não seria justamente aplacada naquela noite, meu pai atirou a panela com violência contra a parede de azulejos brancos, amarelados pelo tempo.

O molho fervente espalhou-se pela parede como sangue borbulhante de raiva. O barulho do impacto, ao invés de arrefecer os ânimos, multiplicou o ódio dos corações ressentidos. Diante da situação desoladora e encurralado pelos gritos de minha mãe, meu pai fez exatamente o que lhe cabia naquele momento: arrancou um dos pesados pés da mesa e golpeou com ele várias vezes o tampo de fórmica. Eu, alheio a tudo que se passava, despertei do meu estado de torpor estudantil e saí às pressas do abrigo que desmoronava sobre minha cabeça. Surpresos e espantados com minha aparição em cena de modo tão estapafúrdio, meus pais pararam imediatamente a discussão. Corri para os braços de minha mãe, que me acolheu com seu manto de proteção, como só as mães sabem fazer. Um misto de alívio e paz invadiu o pequeno recinto e eu fiquei com a sensação que poderia ser um portador de paz a todos os conflitos, através da minha imparcialidade, distanciamento e calma.

Não que naquela época eu tivesse alguma ideia do que pudesse ser imparcialidade, distanciamento ou até mesmo calma. Conceitos que foram sendo absorvidos e compreendidos durante a jornada de toda uma vida. Mas são as primeiras lembranças e impressões fixadas na memória, mesmo 60 anos depois. Para minha sorte, não me lembro dos conflitos anteriores, que talvez tenham sido muito piores do que esse. Deus, em sua infinita bondade, poupa os pequeninos dos gritos, discussões e agressões verbais, tão doídos como tapas na face ou socos no estômago, para que não os carreguem pela vida como traumas sem explicação. Há o Bem e o Mal em nossos corações. Escolhamos o Bem. Falemos baixinho uns aos outros, como num sussurro de amor e compreensão. As crianças agradecem.

CaMaSa

O Crime da Irmã Amara

Roubil

Esta é uma estória do tempo em que as fofocas eram ditas a boca pequena, ainda não existia internet e redes sociais, e as pessoas, entre as quais padres e freiras, não podiam amar livremente. Ela é, como sempre, baseada em trechos de conversas interrompidas, sem conclusão, um ou outro nome meio esquecido, uma ou outra palavra perdida nos vãos da memória e da confusão. Ouvindo essas coisas entro numa espécie de transe, ouço atento nem pisco, olho a pessoa mas já não estou lá. Vejo-me entre os personagens descritos, vagueio entre eles sentindo seu cheiro, seu gosto e suas cores. Claro que trocarei os nomes dos envolvidos, nossa freira não se chamava Amara e, pelo contrário, ela era muito doce e gentil. 

O colégio, palco do nosso drama, também não se chamava Colégio Divino Coração em Chamas e para ser o mais verossímil possível, digo que se localizava em São Paulo, em bairro nobre e elegante. Pelos extensos corredores de ladrilhos hidráulicos absurdamente limpos, polidos e brilhantes, circulavam diariamente alunos, professores, serventes e funcionários da administração, todos e tudo regidos com mão de ferro pelas freiras Marianas. Cada setor da escola, da biblioteca ao jardim, tinha uma irmã responsável pelo gerenciamento das atividades de cada funcionário contratado e nada fugia desse controle. Lâmpadas, fechaduras, carteiras, bancos, lousas sempre limpas para as aulas do dia seguinte, com a quantidade exata de giz a ser usado de acordo com a matéria, exaustivamente preparada pelos professores e supervisionada pela freira encarregada da correspondente disciplina. Os fundamentos cristãos eram cuidadosamente inseridos nos conceitos científicos, permeando todas as disciplinas, da Matemática à Língua Portuguesa, da História à Geografia, da Física à Química, do Francês ao Latim. Isso não desmerece tais fundamentos, vez que são aplicados por seres humanos humanos sujeitos a erros como qualquer um, ainda que freiras. Errare humanum est, perseverare autem diabolicum!

Entre erros e acertos (milhares de acertos para pouquíssimos erros), dedicavam-se aos serviços na Secretaria do colégio, duas jovens irmãs recém-casadas, cujos filhos Laís, Pedro e Paulo, de Ana, e Rita e Lúcia, de Joana, puderam frequentar uma escola de tão alta qualidade, devido ao trabalho das mães. Ana deslocava-se com seu Fusquinha pela cidade aos primeiros raios do Sol, levando consigo as cinco crianças. Uma escadinha de 10, 9, 7, 6 e 5 anos. Começava o trabalho às seis horas da manhã e terminava o turno ao meio dia. Ana deixava o carro para Joana e voltava de condução. Sua irmã dava início então, indo até às seis da tarde e voltava para casa com as crianças que passavam o dia na escola, entre aulas, estudos, tarefas e períodos de inatividade. Num desses períodos ociosos, o pequeno Paulinho, arteiro da planta dos pés até a ponta dos cabelos loiríssimos, quase platinados, deixou irmãos e primas estudando na biblioteca com a desculpa que ia ao banheiro. Seguiu pelo corredor vazio, desceu as escadas e foi em direção ao imenso jardim interno, nos fundos do colégio. Gostava de vaguear entre as árvores frutíferas do pomar, caçando mangas maduras no pé. Avistou uma amarelinha no alto da copa e trepou rapidamente por entre os galhos. O fruto soltou fácil, com um leve puxãozinho. Deu a primeira dentada e puxou a casca com os dentes, sentido o perfume delicioso exalado. Nesse exato momento ouviu um barulho. Passos e vozes aproximaram-se afobados do tronco da mangueira. O menino ficou em silêncio, prendeu a respiração para não ser descoberto. Reconheceu a irmã Rosinha, seguida pelo motorista da escola, o Tobias. Os dois se abraçaram bem abaixo do garoto estupefato, agora de olhos arregalados. Quando os amantes se beijaram, suas mãos perderam as forças e a manga escorregou entre os seus dedos, indo se estatelar na cabeça do motorista!

Tobias nem teve tempo de levar a mão à cabeça. Paulinho perdeu o equilíbrio e caiu por cima do pobre, rolando os dois pelo chão. Não se sabia dizer qual dos três estava mais surpreso e assustado. O menino pela confusão, a freira pelo constrangimento ou o motorista que pensava estar sendo punido por Deus! O casal, refeito do susto, encontrou uma rápida solução. Ralharam com a criança, ameaçando-o com o castigo divino caso ele falasse com alguém sobre coisas que ele imaginava ter visto e, por trepar em árvores pondo a vida dos outros em perigo, seria trancado no barraco de ferramentas da irmã Amara, responsável pelo jardim. E lá ficou o garoto trancado no escuro, sozinho, com medo e arrependido de ter visto coisas que não compreendia e não deveria ter visto. 

Joana procurou o sobrinho por todo o colégio com o auxílio dos demais funcionários e freiras, até que finalmente chegaram ao pequeno depósito de ferramentas. Abriram a porta que estava trancada por fora com um simples trinco e encontraram Paulinho sentado no chão, o rosto entre as pernas, chorando baixinho. O menino não falava nada, estava completamente mudo, sem explicar como havia sido trancado lá. A tia concluiu que ele havia feito alguma traquinagem e a irmã Amara castigou seu sobrinho, trancando-o no pequeno galpão. Procurou a freira para saber o que havia se passado, mas soube que ela e a irmã Rosinha haviam sido levadas pelo motorista Tobias ao Mappin, no centro da cidade, para fazer algumas compras. Reuniu a criançada, embarcou todos no Fusquinha e voltou para casa ao encontro da irmã. Resumiu em poucas palavras o que havia ocorrido e entregou o garoto aos cuidados da mãe. 

Ana não conseguiu arrancar explicação alguma do filho e prometeu que no dia seguinte tiraria essa história a limpo. Não conseguia pregar os olhos. O que mais lhe doía era a traição. Amava a irmã Amara, sempre carinhosa com as crianças, sempre disposta a ajudar, amiga e verdadeira, uma grande inspiração. Como ela podia ter feito isso? Passou a noite acordada pensando no que diria à freira. Acusaria, ofenderia e ameaçaria ir à polícia. Não foi necessário. Ao acordar no dia seguinte, encontrou o marido imóvel, xícara de café suspensa no ar, diante da televisão. O jornal da manhã noticiava o caso da freira que na tarde anterior havia sido presa por furto no Mappin. Ela havia sido pega roubando uma calcinha, escondida em seu hábito. Era a irmã Amara!

* * *

Naquela tarde, depois de trancarem o menino no galpão de madeira, Tobias e a irmã Rosinha encontraram a irmã Amara em frente ao colégio. As duas foram encarregadas de comprar toalhas e guardanapos de linho para a mesa de jantar do restaurante oficial, reservado a visitantes ilustres. Irmã Amara sentou-se no banco da frente ao lado do motorista e não percebeu quando este e a noviça de vinte e poucos anos, metade de sua idade, trocavam olhares apaixonados e suspeitos. Eles haviam decidido, em parte pela tensão ocorrida horas antes, em parte porque a paixão já não cabia em seus corações, fugir para o Rio de Janeiro e dar início a uma nova vida juntos. Rosinha sentia vergonha de consumar seu amor pela primeira vez, usando calcinhas largas e puídas de linho grosso que compunham a vestimenta das freiras. Imaginou entregar-se desnuda, mas considerou isso um pecado. Circulando pela loja, ao passar pela seção de moda feminina, pegou uma calcinha vermelha de rendas e, temendo ser vista, enfiou rapidamente no bolso da companheira sem que essa percebesse.

Flagrada, assustada e absolutamente inocente, sem entender o que estava acontecendo, irmã Amara foi fichada e condenada, sendo preciso a intervenção de advogados da arquidiocese paulistana para liberá-la da prisão. Foi transferida para uma pequena e desconhecida diocese no interior do Estado, no meio de uma enorme fazenda, onde pôde cuidar de plantas e flores. Quanto a Rosinha e Tobias, tiveram seis filhos, seguindo fielmente o preceito cristão: “Crescei e multiplicai-vos”.

CaMaSa

Ladrões

Roubil

A dor da fome é cruel. Não estou falando da inanição, que tira todo ânimo e te derruba no chão, sem forças para lutar. Falo da fome que ronca dolorida no estômago, amaldiçoa a existência e te faz um ladrão. Ele perambulava pela vida há pelo menos trinta e poucos anos, pisara terras roxas, secas, agrestes e espinhosas, os macacos de pedra, os cimentos e os asfaltos escuros de todo este país. Já não tinha mais laços, família e amigos, nem nome ou identidade. Era só um fantasma em forma de gente, um conjunto de ossos forrado por uma pele fina, queimada de Sol e lavada de chuva. Os vira-latas famintos das ruas, com os quais disputava os restos de comida nos lixos, tinham mais carne e gordura que ele.

Não cabe aqui sua história explicando os erros que o trouxeram até aqui. Talvez tenha sido somente um, grande o bastante para afogar-se na culpa sem fim, sem volta e sem perdão. Aqui estava, cumprindo seu destino, diante dessa casa bonita, de sonho, do outro lado da rua, com cerca pintada, gramado verdinho pincelado com flores coloridas, amores-perfeitos lindos de viver. De vez em quando, passando pelas vitrines das lojas, via nas telas das televisões casas como aquela, cheias de vida, felicidade e comida. Nessas horas sua boca aguava de vontade, babando a cada prato fumegante de sopa, macarrão com molho de tomate e queijo, arroz com feijão e bifes, grossos, macios e acebolados.

Notou um movimento na entrada da casa, a porta da frente se abriu e dela saíram o pai e a mãe, um casal de filhos pequenos loiros e rechonchudos e um cãozinho branquinho como a neve saltitando entre as crianças. Os pais carregavam malas, maletas e sacolas e colocavam tudo no porta-malas do carro. Acomodaram as crianças e o cachorro no banco traseiro, a mãe sentou-se no banco do passageiro enquanto o pai verificava as trancas das portas e janelas. Quando deu-se por satisfeito, assumiu o volante e partiu com a família sem olhar para trás.

Ele observou tudo à distância, longe, em seus pensamentos de tristeza e desolação. Aos poucos voltou ao seu mundo concreto e físico, com suas entranhas clamando por uma solução. A necessidade, mãe da invenção, lhe trouxe uma ideia esquisita e arriscada de pura tentação. Viu a casa vazia de gente, de vida e de donos, à sua disposição. Deu passos indecisos em sua direção, pulou a cerca baixinha, rodeou pelo corredor lateral até o quintal no fundo e quebrou o vidro da porta com um soco. Com a mão sangrando o sangue ralo abriu o trinco interno da porta e entrou pela cozinha ampla e perfumada de limpeza e frutas. Atacou ferozmente uma banana ainda verde, quase sem tirar-lhe a roupa. Chupou uma laranja e, na sequência, uma manga fiapenta. Mas a fome não aplacava. Acalmava mas não passava.

Olhou para a caixa branca enorme que ronronava baixinho. Puxou a alça da porta lentamente e sentiu o bafo frio de encontro ao seu rosto. Viu uma grande fartura de verduras e legumes, potes diversos e garrafas variadas. Estava cheia. Ele poderia passar um ano com o que tinha ali. Abriu o freezer e olhou para os potes de sorvete encantado. Percebeu um saco transparente envolvendo uma massa vermelha escura. Era carne. Retirou sem pensar o pacote da geladeira e colocou sob a água corrente da torneira da pia. Deixou-a ali até que aquele pedaço de carne, dura como uma pedra, amolecesse devagarinho e voltasse a ser macia. Pingava sangue! Ou ainda era de suas mãos que o fluido vital escorria? Não sabia. Só conseguia pensar no bife. E nas cebolas douradas que o acompanhariam. Procurou nos armários e gabinetes da cozinha alguma panela. Encontrou uma frigideira grande, bonita, marcada por milhares de frituras saborosas que alimentaram aquela família. Cortou duas cebolas em rodelas, picou dois dentes de alho, deitou fios de óleo sobre a frigideira vazia em cima de uma boca do fogão, deixou que esquentasse um pouco, jogou um bife enorme dentro. A carne gritou em contato com a chapa quente. Shhhh… Espalhou a cebola por cima da carne, salpicou sal branquinho e deixou-se invadir pelo aroma saboroso daquela combinação perfeita.

Apesar da urgência dessa fome implacável, teve tempo de raciocinar e concluir que aquilo era uma refeição e, como tal, merecia mesa posta, louças e talheres. Sacou um prato colorido e colocou sobre um guardanapo em cima da mesa ao lado de uma caneca de plástico. Encheu a caneca com um suco de uva encontrado na geladeira e despejou todo o conteúdo da frigideira, bem mal passado, no seu prato. Aspirou o perfume delicioso com imenso prazer, de olhos fechados, lembrando o tempo em que tinha um nome, amor e família. Cortou o primeiro naco de carne, espetou seu garfo e juntou pedaços de cebola, levando com cuidado até sua boca. Na primeira mordida, ouviu um barulho duro, metálico. Era a chave girando na fechadura da porta de entrada, logo depois o estalo da maçaneta e uma voz retumbante e assustadora gritando:

– Só um minuto querida! Vou confirmar se o fogão está apagado e retomamos a viagem.

Não condeno. Minha formação permite julgar, avaliar e pensar de maneira crítica, mas não condenar. Isso só pode ser feito quando calçamos os sapatos de alguém e vivenciamos sua experiência. Neste caso especificamente, tínhamos novíssimas botas de couro marrom com solas grossas de borracha de um lado, e um pé de sandália de tiras, muito gasta e ralada, do outro. Talvez porque no fundo no fundo, somos ainda animais selvagens cobertos por uma fina camada de verniz social, ou porque um pai de família, protetor dos seus, ao ver-se tomado de tamanha surpresa e atingido por uma forte descarga de adrenalina, parte para cima do inimigo perigosíssimo, franzino, esquelético e com a metade do seu peso, com tanta fúria ódio e descontrole que, ao arrastá-lo para fora de sua casa, coberto de socos e pontapés, não se dê conta, alguns momentos depois, que a multidão que acorreu ao local por causa dos gritos, batia sem parar naquele corpo inerte, já sem ar nos pulmões, com um estranho sorriso de felicidade na face encovada.

* * *

Naquele mesmo instante, saía para comemorar com a família e amigos, um ex-dirigente condenado por corrupção, libertado pelo saber jurídico e minúcias legais as quais somente os muito ricos e endinheirados têm acesso. Em um restaurante chique em Nova York, discutiam entre pratos caríssimos e vinhos de cinco dígitos, seu retorno triunfal à vida pública. Sentados à mesa com ternos bem cortados e camisas de linho brancas, de colarinhos sob medida, pavimentaram um futuro brilhante, com um discurso focado na defesa dos pobres e despossuídos, daqueles infelizes coitados que vagueiam pelas ruas do país sem ter o que comer e anseiam por um salvador que lhes dê o peixe, mas sem ensinar a pescar. Afinal, isso é muito perigoso, pois dessa forma eles podem sentir-se livres, com direito a escolher e pensar.

CaMaSa

Roubil

Roubil

Tão logo o mundo se curvou à nossa prodigiosa capacidade tecnológica de criar um sistema eleitoral de urnas infalíveis, demos um passo à frente de todos os sistemas jurídicos nunca antes elaborados na história humana, abolindo o crime de roubo. Esse superestimado sétimo mandamento, escrito a fogo em pedra por Deus, deixou de ser contravenção, da noite para o dia, por força do exemplo vindo de cima, em todo território nacional. O país passou a chamar-se Roubil, pátria de todos os roubileiros!

Graças a Alex, o Supremo, numa única canetada que uniu a elite jurídica, política, financeira, midiática, carcerária e zumbi de todo o país, roubar foi liberado, passando a ser ato tão corriqueiro e normal quanto comer. Irmão rouba de irmão, pai rouba do filho, patrão rouba do funcionário, cliente rouba do empresário, todo mundo rouba de todo mundo. De uma hora para outra milhares de ladrões inocentes, injustamente presos como bandidos, foram descondenados e postos em liberdade. A criminalidade diminui quase que totalmente, havendo até quem argumentasse sobre a inutilidade da polícia nesta nova era. No entanto, apesar de que alas mais radicais queriam inocentar também os assassinos, já que o ato de matar implica em retirar a vida de alguém, manteve-se a condenação pois ao roubar a existência do outro, não acrescia-se o infrator de objeto substancial e concreto. Sequestros eram casos especialíssimos pois ao tomar para si um ente querido, um filho por exemplo, de alguém, era sim o sequestrador beneficiado por um bem materialmente palpável, ainda que se tratasse de um simples ser humano. No entanto, eram raros os casos já que havia sido eliminada a necessidade de exigir resgate, uma vez que não era mais necessário dinheiro para se obter qualquer coisa. Bastava roubar!

Como se pode ver as mentes jurídicas divinamente privilegiadas tiveram muito trabalho para estabelecer essa nova ordem, esse novo Pacto Social. Evidentemente houve resistência. Alguns descontentes, homens e mulheres talhados no ferro e fogo da honestidade, incapazes de um leve furto, uma propina, uma mínima trambicagem, resistiram bravamente a essa onda de pilhagem e picaretagem, mas aos poucos, um a um, iam soçobrando no lodaçal de sacanagem, até que o último bravo, depois de centenas de vezes roubado e humilhado, faminto e sem perspectiva roubou uma maçã do amor de uma criança que a lambia.

O amor, sim o amor estava no ar. Esse período revolucionário era tão intensamente cheio de alegria e esperança, de norte a sul, leste a oeste, os desonestos cantavam e dançavam, pilhavam e saqueavam, destruindo tudo em seu caminho como uma ensandecida nuvem de gafanhotos humanos. Não era só a comida das quitandas, mercearias e supermercados, mas roupas de grife, joias e iPhones, 19, 20 e 21 Pro! Roubava-se gasolina nos postos e, quando não se tinha carro ou moto, roubava-se um veículo. Todos absolutamente felizes e empanturrados até a goela. O próprio Paraíso na Terra…

Mas em pouco tempo os estoques acabaram. O produtor não precisava produzir, mesmo porque se produzisse era roubado. O comerciante não precisava comprar e vender, só precisava ser roubado. Não havia mais energia elétrica, água e esgoto, serviços essenciais e hospitalares. Ninguém mais aprendia pois não havia escolas. Não havia salário! O país rumava a passos firmes para o colapso e, estranhamente, os países vizinhos antes alinhados com os rumos políticos e ideológicos, fecharam suas fronteiras por terra, por mar e por ar. Passaram a perceber o perigo que imigrantes roubileiros, habituados a esses conceitos extravagantemente libertários, representavam para suas populações e, principalmente, à ordem e passividade do povo, que os mantinha encastelados no poder. Por conta disso, um aliado histórico como Cuba reatou com os Estados Unidos, com quem estava rompido desde 1959, em busca de proteção!

Cada vez mais isolado e sem produção alguma, o Roubil em pouco tempo estava entregue às hordas de famintos liderados por facções armadas até os dentes. Os gestores da nova ordem foram sumariamente fuzilados e substituídos por novos líderes que eram imediatamente substituídos por novos líderes mais bem armados, numa sucessão de carnificina que fazia vergonha aos animais mais sanguinários da Terra. O país ficou retalhado em milhares de pequenos feudos em guerra permanente uns contra os outros. Não havia inocência, só dor, terror e morte. O sonho de uma humanidade livre da condenação pelo roubo, inspirada pela grandiosa verdade reveladora de que “roubar um celular para tomar uma cervejinha…” não era crime, precisava, para sobreviver, de sua expansão a todos os continentes, a cada país, cidade e vilarejo da Terra.

Os países vizinhos, apoiados pelas potências mundiais, invadiam avidamente o país, cientes das riquezas naturais disponíveis. Os roubileiros eram presa fácil, desorganizados, destruídos moralmente e abatidos. Argentina, Uruguai e Paraguai meteram-se numa guerra sangrenta, disputando o Sul. Mais uma vez o Paraguai não conseguiu levar suas fronteiras até o Atlântico. Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela partilharam o butim amazônico, enquanto a França tomava todo Norte e Nordeste através da Guiana Francesa. China e Estados Unidos dividiram entre si todo o resto.

Foi tudo muito, muito rápido. Em poucos meses o Roubil foi de um país do futuro ao ostracismo histórico. Porque as Constituições podem ser refeitas e reelaboradas, mal usadas e rasgadas, mas existem Leis naturais que definem a sobrevivência humana na Terra e no Universo, e estas não podem ser subvertidas. O homem não está separado da Natureza senão pelas suas ideias e pensamentos. É parte dela. É ela. 

CaMaSa

Escrita nas Estrelas

Sofrêncio

Ela veio de de Poá, desembarcando em São Paulo em plenos anos 70. Nasceu em um 3 de setembro clamando pela primavera próxima, com os chimarrões mais mornos estalando no céu da boca. Virginiana, atenta aos detalhes e à perfeição. Frequentou o Colégio Estadual Júlio de Castilhos na Avenida Piratini, bairro de Santana, na grande Porto Alegre, ali desfilou sua loirice e belezura de guria curiosa. Formou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma instituição pública a serviço da sociedade e comprometida com o futuro e com a consciência crítica, que respeita as diferenças, prioriza a experimentação e, principalmente, reafirma seu compromisso com a educação e a produção do conhecimento, inspirada nos ideais de liberdade e solidariedade, onde ela aprofundou sua visão humanista e igualitária do homem em sociedade. 

Terminado o curso, a cidade ficou pequena em sotaque e possibilidades. O espírito de aventura, próprio da juventude, falou mais alto e apontou mais para o norte ensolarado, mais precisamente Salvador, Bahia, e suas praias quentes e luminosas. Conheceu paixões alucinantes, dessas que viram a noite em conversas profundas e enamoradas, sob a luz da Lua, brilhante e amarelada. Num desses encontros ficou sabendo de uma novidade incrível, um Guru menino indiano, recém chegado ao Ocidente, capaz de revelar o verdadeiro sentido da vida e a verdadeira felicidade na Terra. Rejeitava essas ideias, claro, todas ficavam por ali, sem voltar para o sul, frio e gelado, vivendo somente em suas lembranças. Mas as diversas amizades formadas criavam um fluxo constante de visitas e hospedagens, do sul para o norte, do norte para o sul, numa miscigenação constante de ideias novas e revolucionárias, no sentido amplo. Era toda uma geração hippie querendo mudar o mundo além da própria perspectiva e compreensão, ciente que havia algo muito maior que a materialidade, mas que a barriga roncava de fome e o coração tinha sede de paixão.

Entre as muitas idas e vindas, entre o frio dos pampas e o Sol do Nordeste, rumou para o centro econômico do país, a capital do Estado de São Paulo. Não só as ofertas de trabalho seriam mais disponíveis, mas os relacionamentos, as experiências e, mais precisamente, o conhecimento seria mais amplo. Desembarcou do ônibus na antiga rodoviária Júlio Prestes, na Luz, assustada com o movimento e encantada com os painéis coloridos de acrílico, espalhafatosos e de gosto duvidoso. Tinha o endereço de uma amiga de Poá, instalada há alguns meses num apartamento compartilhado com mais duas colegas na Consolação. No papel tinha anotado as orientações para o transporte até o local, de ônibus, e dirigiu-se hesitante ao balcão de informações. Recebeu uma ajuda um pouco áspera para o seu gosto, mas que se mostrou ser bem eficiente. O ônibus indicado colocou-a na porta do número registrado no seu papel. No trajeto ficou impressionada com o gigantismo bruto da cidade e sua paleta de tons em cinza, do branco levemente sujo ao preto asfáltico das ruas. Pouco verde, raras cores e flores!

Instalada, viu-se imediatamente na obrigação de encontrar trabalho e pôs-se a bater pernas com o currículo nas mãos. Por indicação, encontrou uma porta aberta na Secretaria da Saúde que recém contratava estagiários para trabalhar no setor de estatísticas. Firmou-se rapidamente, extremamente focada em suas tarefas, sendo efetivada em pouco tempo. Passou a ter uma estabilidade econômica muito bem-vinda que lhe permitiu certos prazeres solitários, como frequentar as boas e variadas livrarias da época, fartas de material esotérico, em alta na época. Tarot, I-Ching, Cabala… Astrologia, com a qual criou um vínculo muito forte, fazendo dela seu hobby e, futuramente, sua segunda fonte de renda. Sua interpretação dos astros não era técno-científica, mas baseada numa intuição aguçada, quase nada mental, absolutamente coração. Passou a ser muito requisitada e indicada em todos os círculos descolados paulistanos e, numa dessas indicações reencontrou alguns amigos da turma de viajantes de alguns anos atrás. Perguntou sobre o tal Guru menino e a convidaram para uma reunião na Rua Coronel Oscar Porto, no Paraíso, onde haveria pessoas falando de suas experiências com o Conhecimento que ele revelava.

Desta vez foi tocada e logo recebeu seus ensinamentos. Já não era mais menino, mas um homem feito, casado e plenamente adaptado ao mundo ocidental, morando nos Estados Unidos com sua mulher e filhos. Não exigia nada, apenas compartilhava sua visão da Vida, tirando dos exemplos mais simples e cotidianos lições de inestimável valor. Ela passou a frequentar as reuniões e, sempre que podia, viajava para os locais onde Ele fazia eventos públicos. Dessa forma conheceu toda a América do Sul e do Norte, em eventos intimistas em teatros e centros de convenções, a Europa e o Leste Europeu, o sul da África, a Austrália e a Índia, onde participou de eventos com mais de 300.000 pessoas e os 2.000 ocidentais não passavam de uma pequena mancha, à esquerda do palco, em meio à multidão gigantesca. Em todas as viagens e eventos a mesma mensagem de Paz e autorrealização, afinando cada vez mais sua percepção das necessidades interiores humanas.

Essas experiências foram fundamentais na sua capacidade de interpretar as estrelas e a levaram a um feito extraordinário. Precisamente um ano antes do surgimento dos primeiros casos do Coronavírus, traçou um mapa astrológico identificando com precisão o local e a hora marcada do seu aparecimento e as terríveis consequências a que seríamos todos submetidos no planeta. Desacreditada e até acusada de charlatanismo pelos seus pares, manteve-se fiel à sua leitura até que finalmente o flagelo explodiu. À medida que a pandemia avançava e fazia seus estragos, sua popularidade aumentava e a colocava nos centros de discussão sobre a nova doença e o futuro da humanidade. Os líderes mundiais mostraram-se ineptos para enfrentar o problema, adotando medidas que aumentavam ainda mais os efeitos nocivos, dizimando, dia a dia, grande parte da população mundial. Todos queriam saber como ela havia previsto o problema e era convidada para dar entrevistas para jornais e revistas, programas de rádio e televisão.

Certa vez, durante um programa muito prestigioso e sério da maior rede do país, foi abordada por dois agentes do governo, devidamente identificados. Eles informaram que ela estava sendo convocada pelo Presidente para uma reunião extraordinária no Palácio do Governo, em Brasília. Ela tentou se desvencilhar de proposta tão absurda, mesmo porque sua simpatia pelo atual governante ultrapassava a antipatia, mas os policiais deixaram bem claro que não havia como recusar o convite. Viu-se conduzida por um carro oficial até o aeroporto de Congonhas e lá embarcar num pequeno jato em direção à capital do país. Contrariada, chegou ao Palácio do Planalto e foi devidamente “desinfetada” e mascarada da cabeça aos pés. Ao contrário do que a propagando oficial divulgava, a aproximação ao mandatário era cercada de segurança absoluta. Ela estava apreensiva e com cara de poucos amigos. Tinha preparado um discurso cheio de impropérios e xingamentos, afirmando sua posição em defesa das minorias, seu anti-racismo e anti-fascismo, mas estranhamente viu-se compreensiva diante daquele ser humano apavorado e desesperado suplicando algum tipo de ajuda.

Ela começou explicando que ele estava mais sensível ao Conhecimento. Era Mercúrio em ação. O planeta da razão e do intelecto, que também rege a ciência, fazia uma conjunção com Quíron, o asteroide ligado à cura, além de um sextil com Vênus. Isso indica, por um lado, medidas de contenção que todos nós já estamos vivendo, mas por outro, o esforço global pela busca de tratamentos e vacinas. E os agentes dessa conjuntura astral são os cientistas, merecedores de todo o nosso respeito, que estavam desenvolvendo mais de cem projetos contra a Covide-19. Que o encontro de Mercúrio e Quíron em conjunção nos deixa mais investigativos e ligados ao conhecimento intuitivo. Este trânsito estimula a abertura da mente, a ampliação de horizontes. Ficamos mais inclinados a novas maneiras de encarar os problemas ou a vida como um todo. Não deixe essa chance passar, já que a consciência repentina leva ao desenvolvimento pessoal. E prosseguiu por algumas horas até que os astros ficaram mudos e o Presidente pegou no sono e dormiu profundamente com a boca escancarada. Ela levantou-se, sacudiu os cabelos e deles se desprendeu uma semente de Dente de Leão flutuando pela sala e pousando na garganta do ilustre mandatário da nação. Saiu da sala e encontrou os dois agentes que a conduziram pelo trajeto de volta até sua residência, em São Paulo.

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Alguns minutos antes dela descer do carro oficial para subir ao 3º andar do Palácio do Planalto, um casal de namorados apaixonados passava pelos jardins ao lado do Espaço Cultural Niemeyer. Ele pegou sorridente um Dente de Leão e soprou suas sementes ao vento quente, contagiando cada uma delas com o hálito do COVID-19. Uma delas voou graciosamente até o outro lado da Via N1, pousando graciosamente nos cabelos sedosos da nossa astróloga gaúcha enquanto ela subia a rampa. Foi o suficiente para contaminar o Chefe de Estado do Brasil.

CaMaSa

Anjos

Sofrêncio

Todo mundo tem um anjo. Até os que não acreditam! O problema é que ninguém os vê. Quer dizer, ninguém não, seria muita pretensão afirmar que só eu vejo. Alguns poucos sabem sim da existência deles e mais ou menos como a coisa funciona. Eu mesmo descobri meio que por acaso, juntando algumas peças de entendimento aqui e acolá. O fato é que cada um tem o seu e cada um deles cumpre mais ou menos a função de anjo a que foi destinado. E eu vou explicar bem didaticamente todo processo de formação desses seres especialíssimos, desmistificando alguns conceitos milenares arraigados na cultura popular.

Pra começo de conversa anjo tem sexo sim. Tem anjo mulher, homem, lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e transgênero. Apesar desse esclarecimento, vou me referir sempre a esses seres iluminados como anjo, porque anja é realmente uma coisa meio esquisita que bate estranho no ouvido. Existem também anjos de todas as etnias possíveis e imagináveis, baseadas em detalhes específicos de cada anjo, como alguma das bilhões de trilhões de variações na forma física ou cor de pele, sendo que jamais, em tempo algum, existiu um anjo absolutamente igual ao outro. Essa é uma regra absolutamente divina, inquebrantável como qualquer outra Lei da Física, como a Lei da Gravidade ou “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço”. Pensando bem, esta última, como qualquer outra, tem sua exceção, já que por um breve período eu e minha mãe ocupamos o mesmo lugar no espaço!

Durante a gravidez, enquanto eu não respirava e era alimentado pelo cordão umbilical, usei o anjo da minha mãe, que aliás era muito forte e poderosa, sinceramente quase um Arcanjo de tanta vontade e determinação para enfrentar os obstáculos que vinham em sua direção. Esteve presente noite e dia durante os nove meses sem descansar um segundo sequer. Tinha sempre as melhores sugestões e conselhos para minha mãe, que sempre aceitava sem pestanejar, colhendo os melhores resultados menos para si própria e mais para mim. Não que eu entendesse o que falavam, mas conversavam muito entre si, a maior parte do tempo em forma de canções e orações. Até que de repente a água da minha banheira saiu pelo ralo e eu me vi consideravelmente desconfortável e incomodado lá dentro. Um instinto de sobrevivência me fez buscar uma saída e a única viável me pareceu ser bem estreita e justa! Para complicar o tal do cordão enrolou-se no meu pescoço, criando uma sensação inédita de que faltava alguma coisa bem importante para o jogo da vida continuar pra mim…

Seja pela pressão física que me fez sentir como três quilos de contra-filé passando pelo moedor de carne, ou o desgaste emocional pela expulsão da minha toca acolhedora, me percebi atordoado, exausto e sem forças neste mundo, cercado de mãos e olhos apreensivos, que aguardavam ansiosamente algum tipo de reação da minha parte. Passados alguns segundos, um sujeito grande e mal encarado me ergueu pelos pés, de ponta cabeça, dando um ardente tapa na minha bunda! O choque, a dor e a surpresa me fizeram explodir num grito de choro e revolta, fazendo passar por mim, através do nariz e da boca, um fluxo absurdamente congelante de ar em direção aos meus pulmões. Encantando e intoxicado pelo prazer da nova substância, tentei segurar dentro de mim o mais que pude mas explodiu num fluxo quente e contrário, para fora, deixando um enorme vazio em mim. 

Foi nesse momento, petrificado e sem saber o que fazer a seguir, que vi meu anjo pela primeira vez! Ele estava lá, parado, mais aturdido que eu. Não era aquela luminosidade branca brilhante das pinturas clássicas, nem tinha aquele par de asas que a gente sabe que todo anjo tem, mas algo me dizia que era um… e era o meu! Estava pelado e ensopado de uma gosma qualquer, tinha meu tamanho e a aparência de um bebê recém-nascido, com aquela típica carinha de joelho para não diferenciar alface de acelga. Então aconteceu! Ele falou comigo. Telepaticamente, como fazem os anjos, mas falou. Disse: – Ô burro! Inspira. E eu sorvi o ar novamente… e soltei… e inspirei novamente… sucessivamente. Foi bom. Muito bom!

Não nos separamos mais. Quero dizer, ele sempre esteve aí para mim nos momentos mais marcantes. Teve aquela vez que ele me disse pra não roubar aquela moeda da minha mãe pra tomar sorvete, mas eu roubei e tomei uma baita de uma surra! Ele rolava de rir enquanto eu rolava de dor de um lado pro outro. Teve também aquela outra vez, na aula de Educação Física do colégio Firmino de Proença, na Mooca, quando o professor Normando, um ex-militar aposentado, rígido e disciplinador, pediu aos alunos para correr até um colchão colocado no meio da quadra, girar sobre o corpo dando uma cambalhota e sair rapidamente pelo outro lado; na minha vez, imaginei fingir um tropeção ao chegar próximo do alvo e simular uma queda de cara no colchão. Meu anjo pediu aflito: Não faça isso, por favor! A classe explodiu em gritos e gargalhadas e o professor apoplético e vermelho como um pimentão me deu uma suspensão!

Mas teve momentos bem dramáticos em que a influência dele foi decisiva para minha salvação e sobrevivência. Quando o clube do Juventus foi construído no Alto da Mooca, no início dos anos 1960, seu entorno era de muito mato e área verde. Imobiliárias se instalaram na região para negociar terrenos para construção de casas onde ainda não haviam ruas e qualquer tipo de saneamento. Meus pais conseguiram comprar um pequeno lote na face oeste do clube, que na época era cercado por uma cerca de arame, com 2 metros de altura. Nessa cerca sempre faziam cortes que funcionavam como passagem para quem não era associado ao clube ou para quem não queria dar toda a volta para entrar pela portaria principal no lado leste. Esse era o meu caso. Eu tinha uns 12 anos na época e naquela manhã, tomei um café com leite e comi um pão com manteiga e fui para as piscinas do clube passando pelo buraco escondido pelo mato alto. Atravessei o campo oficial de futebol, contornei as piscinas pela arquibancada e fui para o vestiário. Me troquei rapidamente e entrei no parque aquático pela roleta, lavando os pés no tanque de água com cândida.

O dia era bem nublado, ameaçando uma chuva fraca e intermitente a qualquer momento. A semana toda havia feito um calor infernal e eu havia sonhado muito com a água fresca e azul durante as intermináveis aulas de geografia e matemática. Dei o primeiro salto de cabeça na água escurecida pelo céu cinzento e frio, nadei até a escada e corri para o segundo salto. Repeti o processo e pulei mais uma vez, agora sem entusiasmo. Subi a escada de tubos de metal polido e já me preparava para saltar novamente quando meu amigo anjo postou-se diante de mim dizendo: – Não pule! Hesitei. Olhei para meus pés, que pareciam estar roxos e enrugados, como se estivessem esvaídos de sangue e vida. Dobrei os joelhos e me deitei na borda da piscina olímpica, olhando para a água, o prédio de pastilhas brancas da administração do outro lado e os apartamentos fora do clube, mais atrás. Tudo à minha volta pareceu rodar como num carrossel, com os prédios altos girando a uma velocidade cada vez maior. Levantei zonzo e trôpego sai do conjunto, descendo as escadas em direção ao posto médico. Não tive tempo. Vomitei o café da manhã envergonhado. Não havia ninguém por perto, só meu anjo apoiando minha cabeça.

Me senti melhor e voltei para casa refletindo sobre o que havia ocorrido e o que teria acontecido se ele não tivesse me aconselhado a não saltar novamente. Certamente eu teria passado mal dentro da piscina, engoliria muita água e poderia ter passado muito tempo até que alguém percebesse que eu estava me afogando. Apesar de intenso, confesso que a lição não foi suficiente para que eu aprendesse e entrasse em muitas situações perigosas ao longo de toda juventude principalmente. Mas tive sorte, muita sorte. Ele sempre esteve ao meu lado, alertando, prevenindo, dando os conselhos certos. Nossa relação evoluiu,  amadureceu e hoje conversamos sempre, a qualquer momento, sempre que queremos.

Claro que a esta altura você deve estar questionando minha sanidade, dizendo que essa coisa de anjo não existe e coisa e tal, que só estou inventando. Mas eu vou te revelar o maior segredo da humanidade. Uma técnica para revelar seu próprio anjo! Siga corretamente minhas orientações. É infalível! Pegue uma superfície polida, não rugosa, pode ser o vidro de uma janela, um espelho, tem gente que consegue ver até na superfície de um lago, mas tem que estar bem tranquilo. Se você está lendo num computador ou celular, tente enxergar no vidro do monitor ou da tela… Isso, olhe bem… Você vai começar a perceber dois olhos olhando curiosamente para você, num rosto muito parecido com o seu… Esse é seu anjo!

CaMaSa

Sofrêncio

Sofrêncio

Ele nasceu José Alguma Coisa e, como toda criança que nasce, cheio de potencial para viver a plenitude da vida. No entanto, por uma série de circunstâncias ou escolha, tomou o caminho da dor e do sofrimento. Seus pais eram normais, nem ricos nem pobres, e tinham a mesma dose de atenção e carinho para cada um dos quatro filhos. Amadeu, Regina, José e Ernesto formavam a ninhada dos Alguma Coisa, vivendo a vida comum dos irmãos que têm uns aos outros para se apoiar e incomodar. Naquela casa os bens eram suficientes, as roupas eram suficientes, a comida era suficiente. Nada faltava, nada sobrava. Algum excesso acontecia nos dias santos, Páscoa e Natal, com um frango mais encorpado metido a besta ou um pudim de claras branquinho com calda de açúcar queimado.

Sofrêncio foi José e o caçula até o dia que chegou o Ernesto. Isso durou pouco tempo, 7 meses e meio, porque além de tudo o guri quis chegar ao mundo adiantado e fraquinho, pouco mais de 1 quilo e meio de gente! A partir daí José foi jogado pra escanteio. Não era primogênito como Amadeu, nem a princesinha como Regina, nem o caçulinha como Ernestinho, o Tinho. Virou um Coisa meio sem rumo e definição, esquecido num canto qualquer da casa, como um pano de chão semi novo, mas ainda assim pano de chão.

Até que um dia aconteceu um fato interessante que deu sentido e direção para sua vida, além de cravar seu verdadeiro nome, não o de batismo, mas aquele para o qual fomos criados. Existe uma identificação natural que muitos passam a vida sem descobrir, mas evidentemente Marias não poderiam deixar de ser Marias e Paulos só poderiam ser Paulos mesmo, ainda que se chamem Jennifers ou Washingtons. O nome Sofrêncio veio ao mundo quando, numa data especialmente especial, seus pais levaram os filhos para tomar sorvete numa padaria próxima de onde moravam. Paramentados todos com roupa de missa de domingo, acomodaram-se os seis em quatro cadeiras de madeira numa mesa redonda com pés de tubo de ferro e tampo de fórmica verde água com minúsculos pontinhos dourados brilhantes. O pai dirigiu-se ao balcão e voltou de lá com quatro sorvetes de morango e chocolate apoiados em casquinhas crocantes. Sabe-se lá porque a alma da gente gosta tanto de sorvete de casquinha, mas o fato é que os olhos daquelas crianças brilhavam mais que lua cheia de tanta vontade e prazer. Foi então que aconteceu…

O ainda Zezinho encarou aquela iguaria nunca vista antes como um leão faminto se aproxima de sua presa. Foco e concentração absolutos no objetivo principal de devorar aquela massa gelada, doce de prazer, o mais rapidamente possível. Ele sabia que se fosse lento e seus irmãos terminassem primeiro os sorvetes, teria que dividir o que sobrava com os demais, como era o costume em casa. Escancarou a boca, esticou toda língua pra fora como um raio de músculos e lambeu as bolas coloridas com toda vontade que tinha… A massa ergueu-se um pouquinho, pendeu para o outro lado e lançou-se para o chão sujo da padaria, numa trajetória reta e objetiva, em câmera lenta, manchando de rosa e marrom claro aquela imundície acumulada a décadas.

Eu gostaria de ter a capacidade de descrever, sério. De verdade, colocar em palavras aquele sentimento tão intenso e profundo de dor e frustração. A surpresa desconcertante, a raiva dos irmãos rindo e gritando com seus sorvetes intactos nas mãos, o olhar duro do pai dizendo com a boca cerrada, se pedir outro apanha. A sugestão vergonhosa da mãe, sugerindo que pegasse uma pazinha de madeira e comesse a parte de cima, ainda tá limpinha, dizia ela! Mas não dá, realmente não dá! Deixo para cada leitor buscar em si mesmo a própria experiência para comparar. Talvez encontre razões muito mais fortes, mas nada que se compare à reação do garoto. Ele sofreu, sofreu muito e intensamente, num nível de dor incomum a qualquer um, mas, estranhamente, gostou do que sentiu. De uma forma ou de outra, ele, que sempre fora ignorado, tornara-se o centro das atenções. Gostou de sofrer!

Daquele dia em diante, passou a perseguir todas as formas de sofrimento, físico e emocional, encontrando nisso prazer e satisfação. Privava-se de coisas simples e banais, de companhia e afeto, amizades e diversões. Isolava-se completamente e quando era obrigado a interagir, na escola ou em alguma atividade, adotava uma postura belicosa e hostil. Brigava constantemente com os colegas de escola, não para bater, para apanhar. Voltava pra casa invariavelmente rasgado e machucado. Em casa apanhava mais. Adorava!

Na adolescência descobriu a paixão e as dores da paixão. Não era correspondido, era rejeitado e quanto mais era desprezado mais se apaixonava. Algumas moças, mais maternais, afeiçoavam-se dele, tentando acolher aquela alma amargurada, fora do mundo como um passarinho caído do ninho. Desprezava-as, perdia-as para em seguida sofrer a dor do arrependimento. Sua vida tornou-se uma série de decisões erradas que progrediam e multiplicavam-se em dores e sofrimentos e confusões cada vez mais complexas. A certa altura, completamente desiludido e perdido, tentou dar fim à própria vida atirando-se do alto do Viaduto do Chá! Estatelou-se num caminhão de alface que passava em direção ao Mercado Municipal. Salvou-se!

Um amigo de seu irmão, vendo situação tão desesperadora e lamentável, convidou-o para assistir uma palestra de um sábio. Disse-lhe que se ele desse uma chance ao homem e ouvisse com o coração, ele seria capaz de se livrar de todo sofrimento. Chegaram a um salão na Rua Oscar Porto, perto da Avenida Paulista. A sala de uns 200 metros quadrados estava apinhada de gente, de todas as idades, de todas origens. O tal sábio não estava ali presente, mas era apresentado através de um vídeo filmado durante uma palestra dada a uma grande audiência num auditório elegante. Falou durante quase uma hora sobre as coisas mais simples, belas e importantes. Sobre consciência, verdade e felicidade. Que o homem era como aquele cervo que procura um perfume enebriante em todos os lugares do mundo, mas o perfume vem do próprio umbigo. Falou das coisas mais maravilhosas e que esta vida era a chance, talvez única, de realizá-las.

Quando saíram para a calçada o amigo, com o coração cheio da paz daquela sabedoria, perguntou-lhe: 

– E então, o que achou?

– Para mim não fez sentido algum, respondeu Sofrêncio sofridamente.

Seguiu seu caminho religioso da forma mais tortuosa possível. Para ele os grandes Mestres do passado eram exemplos de sofrimento que não haviam deixado marcas de frivolidades de paz, amor e autocontentamento em suas passagens pela Terra. Krishna e Arjuna em sua guerra contra os irmãos, Buda trocando o luxo e opulência pela miséria absoluta, Maomé e a humilhação e fuga de Meca em sua Hégira, e Jesus Cristo, símbolo máximo do martírio em seu calvário de dor e sangue. Sonhava ele mesmo em ser pregado numa cruz e encontrar sua redenção definitiva. Mas cansou-se de tanta teoria e virou ateu!

Enveredou por todo tipo de questionamentos, lutas e discussões sócio-políticas. Era a favor dos fracos, não porque simpatizava com eles, mas porque via nas causas motivos para sofrer mais e mais. Chegou aos 30 e poucos anos e deu de cara com o Covid-19. Já havia passado por caxumba, varíola, catapora, meningite e gripe H1N1. Viu nas recomendações de prevenção da doença mais um motivo de contestação e uma porta para mais sofrimento. Saiu para as ruas sem máscara, sem proteção, de peito aberto para mais essa gripezinha. Tossiu, teve calafrios, ardeu em febre e foi parar numa maca qualquer do SUS. Os atendentes, enfermeiros e médicos fizeram o possível com os parcos recursos. Conseguiram entubá-lo num respirador meia bomba. Sofreu a dor na garganta, a alimentação intravenosa, a flexão dos pulmões através da máquina… Sobreviveu por 2 meses em meio às próprias fezes e urina, num estado comatoso e sem esperança de retorno. Lutou, desta vez para perder, definitivamente. No seu último momento, lembrou-se das palavras do sábio do vídeo da Rua Oscar Porto e entendeu onde estava a felicidade. Mas levou para si o segredo.

CaMaSa

Mamma

Mamma

Mamãe, mamãe, mamãe…
o avental todo sujo de ovo…

Eu não lembro bem a música, tenho a impressão que era de um tipo meio brega, bem sentimental, feita para exaltar qualidades daquelas que são unanimidade no coração de todos, as Mães. Devia ser uma sexta-feira, o fim de semana era Dia das Mães, eu tinha sete ou oito anos, acho que estava no segundo ano do antigo primário e, seja pelos acordes emotivos ou pela saudade de casa, fui surpreendido por uma torrente de lágrimas e soluços tão intensos que foi necessário interromper a música e ser atendido carinhosamente pela professora. Minha emoção era muito maior que a vergonha de chorar diante dos colegas de classe que, entre assustados e surpresos, divertiam-se com a cena. 

Um deles, chamava-se Raul, um desses amigos que fazemos nos primeiros anos de colégio, simpatizamos mas somos separados pelas futuras divisões das classes e turnos escolares, acompanhando a trajetória um do outro até onde é possível. Acabam nos marcando de alguma forma e ele, neste caso, tornou-se inesquecível para mim com o seguinte comentário: – Mas você deve ter aprontado muito para estar arrependido assim!

Olhei para ele ainda com a visão turva, sem entender o significado de suas palavras. Eu nunca havia feito nada tão errado assim, nem poderia naquela altura da vida. Eu simplesmente a amava completamente, como todo filho ama sua mãe. E a amei por toda vida, como amo até hoje. Tivemos nossos altos e baixos, ambos taurinos, cheios de razão. Tive minha adolescência com suas dúvidas e inseguranças, uma pós-adolescência conturbada, típica da época, ávido por expandir os limites do que era formalmente estabelecido. Trabalhamos juntos, fomos sócios por grande parte de minha vida profissional e, muitas vezes, perdemos a paciência um com o outro. Mas esse vínculo inquebrantável que une duas pessoas que se amam sempre esteve aí. Por que?

Não sou melhor do que ninguém, não posso afirmar que amei mais ou menos. Cada um sabe o que sua mãe representa em sua vida, não é possível comparar. Ela é a porta de entrada para este mundo e isso já deveria ser suficiente para explicar tudo. Meu pai veio alguns anos antes para o Brasil, com o ofício de marceneiro e a cabeça inundada de sonhos. Minha mãe chegou depois, com duas filhas pequenas e os pés plantados na realidade. Dessa separação momentânea, cheia de queixas, mágoas e muita nostalgia, porque minha mãe ainda não conhecia a palavra saudade, eu vim ao mundo.

Era uma noite fria de julho, não tão fria quanto as noites rigorosas do inverno europeu, mas suficientemente fria para a necessidade da junção de corpos aquecidos pela paixão, ainda que reprimida. Biologicamente meu pai amou minha mãe, inundou-a com seu desejo e ela, receptiva, no momento certo do seu ciclo, me aguardava em seu único óvulo. Eu nasceria 9 meses depois. Há muitas teorias sobre o início da vida, católicos entendem que é a partir do momento da fecundação, os islâmicos entendem que é após algum tempo. Os judeus acreditam que não ocorrendo o nascimento o espírito do feto volta para Deus. Os espíritas entendem que o espírito vem ao corpo a mando de Deus e tem uma missão para com os futuros pais. Ciência e religião divergem sobre o momento em podemos ser considerados um ser humano, mas eu sou vida a bilhões e bilhões de anos, muito antes da existência do espaço, do tempo e de tudo. Sabia que essa era minha chance e tinha que aproveitá-la.

Consciência plena, pus-me a correr em direção a essa promessa de vida e segurança, deixando para trás companheiros da viagem intrauterina. Com muito esforço cheguei a essa massa enorme de alimento e guarida. Ao contrário do que alguns pensam, chegamos vários de nós mas somente eu fui aceito e acolhido. Em pouco tempo nos fundimos, nos dividimos e nos multiplicamos freneticamente, construindo um terceiro indivíduo a partir de nós mesmos. Ligado à minha mãe por um cordão, dela recebi tudo o que necessitava para evoluir, desenvolver minha humanidade física e crescer. Meu mundo ia ficando cada vez mais apertado à medida que o tempo passava e chegou um momento em que as leis da física foram imperativas e era necessário que dois corpos não ocupassem o mesmo lugar no espaço.

Fui expulso, expelido, daquele lugar quente e acolhedor, repleto de paz e amor. É necessário um esforço gigantesco, de ambas as partes, mãe e filho, para um bebê aterrissar neste mundo. O maior e mais potente foguete já construído é uma simples biribinha perto do nascimento. Há muito querer envolvido, muita força e paixão, absoluta confiança e total agradecimento. Em meio à dor, sangue, suor e lágrimas de alegria, o cordão que nos alimentava e sustentava é cortado, dando início à minha grande aventura. O primeiro gole de ar sorvido, é um enorme salto no escuro, tomado de incerteza e pavor, sem garantia alguma de que encontraremos terra firme e apoio. Por temor ou obrigação, esperança ou falta de opção, inspiramos desesperadamente o ar bendito, inflamos os alvéolos pulmonares cheios de vida e expiramos uma prece de agradecimento por tanto cuidado e bondade.

E assim seguimos, inspirar e expirar, confiar e agradecer, por toda a vida nesta Terra, por toda a existência, trazendo em nossos corações esse laço, essa lembrança da união, de uma vida compartilhada por alguns meses, de um período milagroso onde essa energia criadora se manifesta em toda sua compaixão. Se você está lendo isto é porque teve uma mãe, um ser de luz que possibilitou a sua experiência deste mundo. Ame sua presença, ame sua lembrança, simplesmente ame.

CaMaSa

Pascoal

Naquele fim de tarde de sexta-feira da paixão, quando minha mãe foi me buscar no colégio Dom Bosco, me encontrou de mãos dadas com aquele padre jovem e simpático. Eu estava com os olhos inchados de chorar e o padre explicou para ela o que havia se passado durante a exibição do vídeo da Paixão. Trocaram sorrisos cúmplices e despedidas, e voltamos calados para casa. Quando chegamos à comodidade e segurança do nosso lar simples e modesto, minha mãe me abraçou ternamente e perguntou porque eu havia chorado? Tentei explicar mas a emoção tomou novamente meu peito de assalto e as palavras começaram a rolar umas sobre as outras, engasgadas e confusas.

A Mãe, afagando carinhosamente meus cabelos, começou a me explicar o significado de todo aquele tormento, mas que eu não me preocupasse porque no domingo, de Páscoa, esse homem tão bom ressuscitaria, trazendo esperança para todos os homens! Que se eu acreditasse nisso de coração, no domingo pela manhã eu teria a prova, ganhando um grande e saboroso presente! 

Ouvi aquilo com ouvidos destampados e olhos arregalados… Como poderia alguém renascer dos mortos? Ela mesma, e todos que me cercavam, viviam gritando para mim: – Cuidado menino, sai de perto do balcão! Olha o carro! Cuidado pra atravessar a rua! Quer morrer? Se morrer, nunca mais vai jogar bola, chupar bala e sorvete! A verdade é que fiquei muito contente pelo Homem Bom, mas confuso como passarinho que caiu do ninho! Além disso, o tio do Alvinho, meu amiguinho da rua, tinha morrido de tanto tossir e nunca mais ninguém viu ele por estas bandas! Teve também o caso muito triste do cachorro da Dona Candinha, companheiro inseparável, cheio de truques de saltar, andar sobre duas patas, dar cambalhotas, tudo por causa de umas bolachinhas. Um dia, durante uma exibição rotineira diante de uma plateia de crianças sujas do pó da alegria da rua e olhos ansiosos para ver o mesmo truque sendo repetido pela enésima vez, o vira-lata preto e branco de rabo cortado fingiu-se de morto pela última vez.

Perguntei para a Irmã mais Nova que correu atrás de mim com a vassoura com a qual ela tinha acabado de varrer o piso da sala e eu estava sapateando com os sapatos sujos. Depois tentei a Irmã mais Velha que pacientemente me deu uma explicação longa e comprida, cheia de palavras difíceis que eu não entendia. Disse também para que eu não me preocupasse porque no dia seguinte, Sábado de Aleluia, a justiça seria feita pois seria “malhado o Judas”, o homem que havia traído o Homem Bom. Fui dormir com a esperança que nessa malhação eu pudesse encontrar algumas respostas e, principalmente, no domingo eu tivesse a prova do renascimento, ganhando o tal presente.

Acordei no sábado bem cedinho e corri pra rua engolindo rapidamente o leite com Toddy e o pão com manteiga Paulista. A rua estava tomada por um burburinho diferente, uma excitação em torno de um boneco engraçado, parecendo um espantalho. Haviam juntado roupas variadas, cada um trouxe uma peça, calça, camisa, paletó e chapéu, tinham arranjado até uma gravata de bolinhas vermelhas, dando ao boneco uma aparência muito distinta! Costuraram firmemente as barras das calças e os punhos da camisa, e enchiam o interior com palha e jornal picado até que a figura ficasse completamente gordo e estufado. A cabeça era improvisada por uma velha bola de plástico, tão velha que a pintura dos hexágonos pretos imitando bola de capotão já haviam desaparecido. No seu lugar haviam pintado olhos, nariz e boca, uma franja rala, dando ao rosto improvisado uma aparência boba, de quem não estava entendendo o que se passava.

Penduraram o boneco no poste de concreto dos fios da Light, recém plantado na rua, e o cercaram com tacos de madeira e ferro, num alarido crescente de excitação. Quando o Sol já estava quase a pino, com a sombra do poste escondida sob ele mesmo, o Seo Pafúncio, dono da fábrica canetas tipo Bic, da Rua Luiz Gama, subiu numa escada de madeira e despejou querosene sobre o boneco Judas, que ficou completamente encharcado. Com a turba de adolescentes e crianças afastada em segurança pelos mais adultos, ele ateou fogo no infeliz, lançando sobre ele um fósforo aceso.

Todos urravam de prazer vendo aquelas roupas cheias de palha e papel arderem numa enorme bola de fogo. Depois de um tempo o fogo diminuiu de intensidade e os mais valentes se aproximaram e se puseram a espancar o boneco queimado, até que ele caiu no chão inerte. A pancadaria aumentou, com pancadas e chutes vindos de todos os lados. Um desses golpes atingiu a cabeça bola de futebol que saiu rolando pela rua, atravessando-a, em minha direção. Parou bem diante dos meus pés, toda chamuscada e deformada, num sorriso triste de quem pede perdão com toda sinceridade e coração. Perdoei, na esperança de que no dia seguinte aconteceria o tal milagre da Ressurreição, como havia me repetido duas centenas de vezes minha Irmã.

No domingo pela manhã acordei com os gritos e palmas da Irmã mais Nova, que pulava em volta da mesa da cozinha, em cujo centro havia um enorme ovo de Páscoa embrulhado num brilhante papel celofane vermelho, preso por fitas coloridas num laço. O Pai havia comprado ou ganhado numa rifa, não sei, mas o seu sorriso de satisfação ao ver nossa alegria, tornou-se inesquecível para mim. Não faço a menor ideia do tamanho ou peso real daquele tesouro. Para mim, à época, era o maior ovo de chocolate que eu jamais havia visto! Tenho a impressão que eu poderia entrar dentro dele para comer as centenas de bombons ali guardados. Lembro que somente o rígido controle da Mãe pode mantê-lo afastado de nossas bocas vorazes por muitos meses, mas que na verdade como eu não tinha a menor noção de tempo naqueles tempos, podem ter sido só alguns dias. Naquele domingo comi mais chocolate do que havia comido em toda minha vida até então, e fui dormir com a barriga cheia de cacau e açúcar, completamente esquecido do Homem Bom e sua ressurreição.

Naquela noite tive um sonho fantástico! Eu era um jovem de 16 anos, quase adulto para o padrão da época em que o sonho aconteceu. Eu vivia numa região desértica e arenosa, cercado de pessoas que falavam uma língua estranha, mas que eu compreendia completamente. Minha família e os que nos eram próximos discutiam de modo sigiloso, quase sussurrando, os últimos acontecimentos e a morte por crucificação daquele que era tão amado e querido. Eu e o primo Efraim tínhamos subornado os guardas romanos na porta do túmulo e levado o corpo dali. Seria preparado com todo respeito e carinho e enterrado longe, num lugar secreto onde somente aqueles que o amavam saberiam onde era. Já era domingo, todos ainda choravam sua ausência quando uma pequena criança, nos seus 6 ou 7 anos, pôs-se a falar e consolar a todos. Explicou que aquele que se fora estava vivo e eternizado em nossos corações, que celebrássemos pois o Mestre estará sempre, em sua forma humana, junto aos seus discípulos, para todo o sempre.

Algumas das pessoas presentes acusaram o menino de blasfemo e lhe viraram as costas, mas outras reconheceram em suas palavras e em seu olhar a mesma sabedoria e doçura daquele que os deixara. Seguiram seus passos e ensinamentos, agora discretamente sem chamar a atenção dos inimigos, interessados somente na Verdade guardada em segredo no peito. E assim tem sido de geração em geração, ao longo dos séculos, o encontro do Mestre e seus discípulos para aqueles que pedem com o coração de uma criança e, sinceramente, desejam ter seu Conhecimento.

CaMaSa

Mazé na Disney

Os olhos do neto Pedrinho brilhavam de alegria diante daquela pessoa vestida de Mickey, com as calças vermelhas e dois grandes botões brancos, camisa branca, gravata amarela e fraque preto. As enormes orelhas e um sorriso permanente no rosto faziam desse personagem, cheirando a limpeza, simplesmente inesquecível. E era exatamente isso que ela queria proporcionar ao neto, momentos gravados na memória para sempre, definindo na galeria de experiências que ele teria por toda vida um lugar ao Sol para a avó. Exatamente o oposto do que ela mesma havia passado na infância pobre e miserável, sujeita desde o nascimento, e até mesmo antes, aos caprichos e maldades de pessoas que muitas vezes estavam ao seu lado para protegê-la. Piscou os olhos e por um instante voltou para Itacarambi, hoje São João das Missões, ao norte de Minas Gerais, numa das regiões mais pobres do Estado.

Maria José Sem Pai Declarado da Silva veio ao mundo como toda mulher negra e pobre, em grande desvantagem na corrida pelo sucesso da vida. Era a décima de uma prole de doze, chegando na família quando não havia mais leite disponível nas tetas, nas garrafas de vidro ou sacos de plástico. Havia no desabastecido posto de saúde local, vez ou outra, uma lata de leite em pó, economicamente diluído em latas de água barrenta. Ainda bem que no mato tem muitas folhas, plantas, raízes e frutos que passam despercebidos aos olhos sem prática, mas que podem alimentar um rebanho para quem já passou pelos ensinamentos da fome. E nisso sua mãe era catedrática, sabendo pela cor e pelo cheiro o que alimentava e o que matava. Os diversos e sucessivos maridos abandonavam a mulher e as crianças antes, ou tão logo, elas nasciam, deixando para sua mãe o encargo da sua própria sobrevivência e dos filhos. Perdeu alguns, vingou outros, entre os quais Mazé, que cresceu forte e saudável, cada vez mais preparada para o trabalho pesado e os infortúnios da vida.

São João das Missões fica a uma distância de 687 km de Belo Horizonte (capital) e a 247 km de Montes Claros, cidade pólo do norte de Minas, sendo o acesso realizado através da BR-135. Posiciona-se a 18 km do rio São Francisco e é marcado pelo Rio Itacarambi que banha quase todo o território do Município. A divisão administrativa do município constitui-se do Distrito da Sede, do Distrito de Rancharia, 32 Aldeias e a Terra Indígena Xacriabá. O Município ocupa uma área territorial de 679,89 km². Situa-se na micro-região do Vale do Peruaçu (Alto Médio São Francisco), norte do Estado. É a cidade mineira mais pobre, com o PIB mais baixo de toda Minas Gerais.

O município está sujeito a um clima tropical úmido de savanas, com inverno seco, em transição, no sentido nordeste, para um clima quente e seco, com chuvas de verão. A relativamente pequena variação da temperatura ao longo do ano, nestes climas, faz da variável precipitação, o principal parâmetro hidroclimatológico do Município, sob o ponto de vista de exploração agrícola. A variação mensal das precipitações e a existência de um período bastante seco, nos meses de maio, junho, julho, agosto e setembro. O tipo de vegetação predominante em São João das Missões, expressa-se por cerrado com áreas mescladas de caatinga ao centro-oeste. Ainda estão perenes, mas em visível agonia, os seguintes cursos de água: Rio Itacarambi, Riacho do Brejo de Mata Fome e Olhos D’Água. 

A principal atividade econômica desenvolvida no Município, é agricultura e a agropecuária. A agricultura é representada no cultivo irrigado e de sequeiro. Faz parte da cultura irrigada, o plantio de feijão, milho, cana-de-açúcar e tomate. No sequeiro, a cultura do milho, feijão catador, mamona e mandioca. A pecuária é desenvolvida com o objetivo de produzir bezerros para a venda, sendo, também, praticada a pecuária leiteira, despertando, também, a criação de caprinos, ovinos e peixe. O feijão, mamona e o tomate, são responsáveis por 70% de toda produção. Soma-se a estas atividades, as pequenas fabriquetas de farinha, rapadura, cachaça, queijo, etc. Demais produtos abastecem o mercado interno e o restante é comercializado na região. 

Mazé começou a trabalhar por volta dos 4 anos de idade, catando mamona, crente que estava brincando com os demais irmãos. A pequena estatura permitia o acesso à parte baixa dos troncos, protegida pela densa folhagem dos galhos dos arbustos. As mãos pequenas arrancavam as bolotas verdes e espinhosas que eram colocadas em sacos de lixo de plástico e despejadas, posteriormente, em latas vazias de 20 litros, de óleo ou azeitonas. Os irmãos mais velhos e maiores a colocavam nos ombros para que ela alcançasse os galhos mais altos. Desse modo ela passava a maior parte do tempo acima das folhagens, sem a proteção das sombras, tostando ao sol implacável pele e miolos. Passou a infância entre essas e outras atividades produtivas, tão ou mais cansativas, e os serviços domésticos normais de varrer o chão de barro da casa de pau a pique, pegar água no poço, cozinhar o quase nada que se tinha e fazer render para todos, matar aranhas e escorpiões e, de vez em quando, destroncar o pescoço de uma galinha.

Quando todas as crianças ainda são crianças, por volta de 10 a 11 anos, ela já era uma mocinha, despertando, com seus olhos matreiros e rasgados e a pele brilhante como noite de luar, o desejo dos homens. Numa noite, voltando da roça para casa sozinha, foi abordada por dois sujeitos mal intencionados que lhe disseram um oi com um forte soco no rosto. A menina rolou no chão cuspindo dentes e sangue, sem entender o que tais homens pretendiam! A machucaram, uma e outra vez, onde mais dói a dor de uma mulher violada e, por sorte ou azar, a abandonaram viva ao relento. Voltou para a mãe aos prantos e ferida, tentando explicar o que havia ocorrido. Levou uma surra para aprender a não ser tão oferecida, como já havia prevenido o atual namorado da mãe, sempre de olhos compridos e sedentos sobre a Mazé. Por segurança, garantia ou ciúmes, sua mãe resolveu que era melhor afastar a menina dali, colocá-la em casa de família para ajudar nos afazeres de alguma sinhá rica. Melhor fosse longe dali, em São Paulo, junto a alguma tia que por lá vivia.

Foi para São Paulo de carona num caminhão de sementes de mamona que seriam levadas para uma fábrica de óleo em Guaianases, perto de Ferraz de Vasconcelos, onde morava a tal parente distante, prima de seu pai. Se encontraram na porta da fábrica, sem beijo ou abraço, e foram para a casinha da favela onde a tia morava. Ela era empregada doméstica em casa de família que morava no bairro da Mooca, mas já estava com idade avançada, tinha 66 anos, e já não dava conta do serviço. A patroa concordou em colocar uma menina para ajudar e ela levou sobrinha a tiracolo para ensinar a rotina da casa e do trabalho. Mazé nunca tinha visto um piso de cerâmica, uma parede de azulejos, pias com torneiras ou vasos de louça “pra obrar”… Lhe pareceu tudo muito simples e leve, fácil de fazer e limpar. A cozinha tinha caixas de madeira onde se guardava louças e talheres, fogão que acendia a chama apertando um botão e geladeira cheia de bebida e comida.

A sinhá era moça e linda, boa de coração e se divertia a valer com o jeito caipira e engraçado da menina. Ela estava “prenhe”, com a barriga redondinha, pelo jeito vinha por aí uma menina. O marido trabalhava muito e quando chegava em casa ela e a tia já haviam se recolhido. Quando nasceu a criança, decidiram que seria melhor que a Mazé ficasse morando com eles na casa, instalada num quartinho. Pouco depois a tia, já muito cansada, deixou o trabalho, ficando a responsabilidade toda da casa nas mãos da sobrinha. Ela adorava sua vida e cuidava da menina como se fosse a princesa que seus pais diziam. Só a partir de então Mazé conheceu brinquedos, bonecas e esse rato de nome engraçado, “Miki”, que a menina nunca largava e só deixava a Mazézinha dar banho! Um dia os patrões viajaram para os Estados Unidos, levando a princesinha para conhecer a casa do tal ratinho simpático. Voltaram com muitos presentes e fotografias, contando com muita alegria o quanto era bom esse lugar chamado Disneylândia, uma terra de sonho e fantasia, onde o “Miki” vivia.

Mazé naquela noite prometeu a Deus e a si mesmo que um dia ela também iria viajar para esse lugar, economizando e juntando cada centavo que ganhasse do salário, das férias, do 13º, de qualquer extra que fizesse. Os anos foram passando, ela arrumou um namorado e um filho, outro namorado e mais três filhos, ganhou netos e muita experiência. Viu o Brasil deixar de ser governado por militares, ter eleições, presidentes destituídos, aborrecidos e ladrões. E a cada ciclo promessas grandiosas de progresso, justiça e felicidade para ricos e pobres, com planos econômicos mirabolantes onde ela era sempre convidada a colaborar sem participar da festa. Mas fez sua parte, não esqueceu a promessa e juntou os tostões sem saber quanto valia o dólar, até que teve o suficiente para conversar com os patrões e pedir conselhos. Estes ajudaram no que foi preciso, passagens, transportes e hospedagens, pediram ajuda da filha que a essa altura já morava em Miami, com o marido e dois filhos, e a levaram para o aeroporto, onde ela e o neto, pela primeira vez na vida tiraram os pés do chão num busão com asas.

Mazé abriu os olhos e viu o neto que agora a olhava com orgulho, certa que para ele a avó era um exemplo, um símbolo de sucesso como o tal do “Miki”. A avó era alguém que mostrou ser sim possível realizar um sonho, por mais simples que pareça, desde que seja buscado com fé, perseverança, honestidade, respeito e amor no coração.

CaMaSa

Reevolução

Reevolução

 

Há um forte movimento acontecendo,

envolvendo todas pessoas do planeta,

calmamente segue constante adiante,

feito rio subterrâneo de entendimento.

 

Poucos são os que sentem a corrente,

preocupados em vencer na superfície,

poucos tem quase tudo que é de todos,

quase todos só um pouco do restante.

 

Essa guerra milenar da humanidade,

o lixo social sujando a face da Terra,

mascarando toda beleza da verdade,

será arrastado pelo rio para o futuro.

 

Alguns cavam em si mesmos um poço,

chegam ao rio, recebem e agradecem,

bebem da água pura do conhecimento,

vivem na paz do amor e nele crescem.

CaMaSa

À Parte

À Parte

 

Sim, existe um mundo à parte 

onde não existe o mal e a dor

não há roubo nem corrupção

nem miséria ou fome ou sede

não há incômodo frio ou calor

a daninha cobiça não cresce

a inveja preguiçosa não reina 

não existe tristeza e injustiça

 

Sim, existe um mundo à parte

pleno de cor luz beleza e arte

melhor de mim a melhor parte

seu segredo não se comparte

é igual para todos sem aparte

pra quem chega e quem parte

não existe quem dele se farte

é amor infinito que se reparte

 

Sim, existe um mundo à parte

mesmo se você não o conhece

CaMaSa