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Tudo é uma questão de encaixe 

desde elétrons de um átomo mínimo 

aproximando-se de elétrons de outro 

formando moléculas e substâncias

 

Tão semelhante no espaço infinito

os planetas girando sobre si mesmos

circulando ao redor de sóis e estrelas

criam galáxias de grandes distâncias

 

Assim como se atraem os amantes

em passos lentos tímidos elegantes

na dança da atração tão envolvente

juntando sons sabores fragrâncias

 

Melhor é quem se acha e encaixa

alinhado em paz corpo mente e alma

tornando um ser finito e insignificante

a mais perfeita das exuberâncias

CaMaSa

Entender

Entender

 

Quando somos pequenos

pouco maior que um bebê 

e aos poucos as relações 

com o mundo fora de nós

vamos tentando entender 

percebemos só admirados

outras crianças ao redor e

sem julgamento e conceito

quão lindas são as formas 

e cores variadas e distintas 

que cada um deles é e tem 

sem existir divisão alguma

entre seres feitos de gotas

de água de pó de fogo e ar

juntos misturados e bentos

em doses infinitas de amor

 

querer conhecer entender

CaMaSa

A Lenda das Joaninhas

“Ladybug ladybug, fly away home / Your house is on fire, your children do roam”.

Houve um tempo em que os homens estavam mais próximos da natureza, por formação e necessidade. Nascia-se nas áreas cultiváveis e dali se tirava o sustento para sobreviver. As cidades eram refúgios de segurança e locais de troca de mercadorias e informações. Não havia registros nem livros, praticamente tudo era falado e contado, transmitido de geração a geração. A palavra de um homem era um documento firmado, dela vinha sua honra. Então para nós, que hoje temos toda a informação que queremos nas pontas dos dedos, em forma de telefone celular, pode parecer que a vida daquele tempo era monótona e sem graça, arrastada e difícil de preencher, mas, pelo contrário, era muito agitada e excitante!

Os animais eram parte integrante da existência, sendo uns mais próximos que outros dos homens, conforme a utilidade de cada um. Num intrincado método científico-filosófico, Deus, não o de barba branca, mas o Criador da coisa toda, vai criando e adaptando os bichos, de minúsculos insetos a mamíferos gigantes, de acordo com a necessidade de comer ou ser comido pelo homem. Então o Boss foi criando peixes e minhocas para pescá-los, passarinhos para comer minhocas e botar ovos nos ninhos. Alguns caíam do galho e ficavam pelo chão sem aprender a voar e viravam galinhas, patos, marrecos e gansos, que serviam para fazer travesseiros, com penas de ganso! Como nasciam muitas dessas aves domésticas, surgiram então as raposas que usavam todo tipo de artimanhas para invadir os galinheiros e sair de lá com uma penosa. Cansados dos furtos, os homens voltaram suas preces para o Manda-Chuva que imediatamente atendeu seus anseios enviando um lindo casal de cachorros. Esses tornaram-se excelentes guarda-costas das galinhas, dando alarme e perseguindo as raposas que delas se aproximavam. Também foram criados os Bulldogs, que só dormiam e peidavam, mas isso é uma outra estória. Seja como for, em reconhecimento à utilidade e dedicação, os homens ficaram muito amigos dos cães em geral, retribuindo com companhia e fidelidade os bons serviços prestados. Mas como estamos na Terra, não no Paraíso, os grãos plantados e colhidos em grande quantidade tinham que ser armazenados e, para isso, eram construídos locais apropriados para preservar os alimentos ensacados. Surgiram então os ratos e, na sua cola, os gatos, muito bons, muito bacanas, mas inimigos dos cães…

E assim seguiu Deus criando cobras e lagartos, elefantes e leões, bois e cavalos, escorpiões, mosquitos e hipopótamos, jacarés e borboletas, sempre atendendo os desejos e necessidades dos homens, até que chegou um ponto em que eles não o viam mais como O Criador, mas um empregado que estava ali para servi-los. Não era mais respeitado, nem temido e nem amado. Ele viu-se triste e deprimido com a situação, questionando-se sobre seu papel. Decidiu que devia abandonar os homens à sua própria sorte, refugiando-se em local secreto e seguro, onde não pudesse mais ser incomodado. Deixou atrás de si uma infinidade de obras não concluídas, muitas delas sem fazer sentido até nos dias atuais. Afinal, para que serve um ornitorrinco ou um peixe-gota? 

E assim, homens e mulheres viram-se de repente abandonados na face da Terra, tendo que enfrentar e resolver as questões que surgissem no dia a dia. E até que se deram bem por um tempo, criando sistemas engenhosos de habitação, transporte, captação e armazenamento de água e plantio de alimentos. Em tempos de paz e estabilidade mais e mais era necessário organizar as lavouras para gerar alimento suficiente para todos. Verduras, legumes e frutas eram plantados e colhidos em grandes quantidades, muito além das necessidades da população. 

Nesse clima de fartura e boa esperança jovens casais uniam-se em matrimônio na certeza da constituição de famílias ricas em felicidades e filhos, muitos filhos. Um desses casais era formado por um rapaz inteligente e bom, querido por todos, chamado Amado, e uma jovem bela e simpática que a todos cativava, chamada Amada. Uniram-se com a benção e o incentivo das famílias e deram início à construção do próprio patrimônio, plantando o futuro num pedaço de terra carente de cuidados e repleto de pedras. Acariciaram a terra castigada com as mãos, enxadas e arado, e com as pedras recolhidas construíram um lar seguro e sólido. Aos poucos, com muito esforço, dedicação e semeadura, a propriedade foi se transformando num jardim. Havia flores e frutos por todo canto e as lavouras de trigo e algodão cresciam abundantemente. Castanheiras e oliveiras vergavam os galhos de frutos, quase chegando ao chão. Estavam prontos para o próximo passo. O primeiro filho completaria a felicidade do casal.

Mas Deus havia deixado alguns seres tão insignificantes ao longo da história, que ninguém lhes dera a devida atenção. No entanto, em meio a tamanha abundância e desperdício, esses pequenos parasitas cresceram e multiplicaram numa proporção geométrica, alimentando-se vorazmente de tudo que era plantado e cultivado com tanto sacrifício. Em pouco tempo os alimentos passaram a escassear e logo a Terra, que era um imenso jardim, tornou-se ressequida e estéril, tendo substituídas suas belas cores por sombras de desolação.

Surgiram muitos especialistas, estudiosos de botânica, biologia, química e artes esotéricas conhecidas e desconhecidas, para interpretar e dar significado a tudo aquilo que não tinha explicação. Eram chamados de magos, fadas ou bruxas, conforme o humor e a região. Uns eram respeitados outros temidos e outros simplesmente ignorados. Alguns criaram poções venenosas que matavam os pulgões, como foram apelidados os parasitas, mas lamentavelmente matavam também as plantas. Muitos desses bruxos foram expulsos do convívio social e passaram a vida inteira isoladas no interior de densas e completamente inabitadas florestas.

Amada, em meio a tanta devastação e tristeza, viu seus planos de maternidade serem interrompidos, com seu ventre entristecido e árido, como a terra que os cercava. Ela e Amado lutavam desesperadamente para salvar o pouco que lhes restava mas, muito além de suas cercas, na densa floresta virgem, até onde a vista alcançava e a terra fazia sua curva, tudo estava morto e sem vida, com galhos secos sem uma folhinha verde sequer de esperança. Os rios estavam sujos e poluídos por carcaças de animais vencidos pela fome. Era preciso se embrenhar cada vez mais profundamente na mata para encontrar alguma água limpa para beber.

Certa manhã, Amada munida de dois grandes baldes pendurados num galho rijo de madeira apoiado em suas costas, embrenhou-se floresta adentro à procura do cada vez mais raro líquido. O sol já estava a pino quando parou para comer um pequeno pedaço de pão e deu-se conta que até o momento não havia encontrado uma única gota. Seguiu em sua jornada cada vez mais desorientada pelas sombras da mata fechada e do rápido entardecer, com o Sol mergulhando velozmente na noite escura. Viu-se completamente perdida, em todos os sentidos, caindo no chão esgotada e adormeceu banhada em lágrimas.

Quando acordou pela manhã, sentiu a grama fresca sob seu corpo revigorado e ouviu pássaros cantando alegremente. Abriu os olhos para uma realidade colorida e verdejante, com flores e frutos brilhantes de vida e orvalho. Pulou num sobressalto e viu mais adiante uma pequena choupana, limpa e bem cuidada, de onde fumegava um fio de fumaça branca de uma chaminé. Antes de dar o primeiro passo, viu a porta principal sendo aberta e dela sair uma senhora de cabelos e avental brancos escorridos sobre roupas cheias de remendos coloridos, como se fossem feitas de colchas de patchwork. Surpresa, a anciã veio em sua direção com um sorriso muito amável no rosto e lhe disse:

– Quem é você? Há muito tempo não recebo uma visita!

– Eu, eu, sou Amada… respondeu sem entender a jovem.

– Venha! Venha para dentro comer alguma coisa. Você me parece muito sedenta e faminta. Vamos experimentar minha nova receita de pão de canela que acabei de inventar.

O interior da casinha era tão surpreendentemente lindo como o exterior que a cercava, com móveis, cortinas, potes e utensílios variados, cuidadosamente limpos e organizados. No fogão a lenha o bule de café exalava um aroma maravilhoso e do forno vinha um perfume de maçã e canela inebriante. Amada, de olhos arregalados, observava a anfitriã mover-se com agilidade e leveza, enquanto seu estômago roncava com fúria. Resistiu bravamente enquanto as mais variadas delícias eram colocadas à sua frente, mas só as atacou quando a gentil senhora sentou-se diante dela e a incentivou a dar a primeira mordida.

Ela era aparentemente muito idosa, com o rosto totalmente envelhecido e marcado por infinitas rugas, mas seus olhos verdes tinham uma jovialidade contrastante com o restante do seu visual, como um oásis de frescor no meio do deserto. Enquanto Amada saciava sua sede e fome, ela foi contando sua história.

Chamava-se Bondade e vivia na floresta desde tempos imemoriais. Achava que tinha nascido ali, junto com as árvores e os animais. Havia dado nome e sentido a muitas plantas e bichos que por ali floresceram e deram os primeiros passos. Nunca sentiu necessidade de ir ao encontro de outras pessoas, pois sempre entendeu sua missão de manter viva a pureza da Terra, livre de contaminações. Amada, diante de uma narrativa tão bonita, contou envergonhada o que se passava com ela e com o mundo e como todos haviam perdido a esperança em alguma solução.

A anciã lhe sorriu bondosamente, pôs sua mão sobre a barriga de Amada num gesto de muito carinho e convidou a jovem para acompanhá-la até uma pequena saleta, repleta de pincéis e potes com tintas. Numa pequena mesa de madeira havia uma lente de vidro apoiada numa haste dobrável. Bondade pediu para que ela sentasse e olhasse através da lente. Ela viu uma intrigante fila bem organizada de pequenos insetos marrons, à primeira vista minúsculas baratinhas, com não mais de 8 milímetros. Pareciam aguardar algum comando para se movimentar e, de fato, quando a idosa senhora sentou-se no banquinho e bateu duas vezes com um pequeno pincel sobre a mesa, o primeiro bichinho da fila começou a andar e parou, de costas para elas, bem no centro da mesa. Amada viu sua anfitriã pintar habilmente de vermelho a carapaça arredondada do pequeno inseto e finalizar com pequenas manchas escuras. Os bichinhos sucediam-se respeitosamente para serem pintados de diversas cores e cada um tinha um padrão único de manchas. Após alguns segundos de secagem, erguiam a proteção, agora colorida, e exibiam abaixo delas asas transparentes que eram batidas numa velocidade espantosa, fazendo-os voar pelo aposento. 

Bondade contou que havia batizado esses seres minúsculos com o nome de Joaninha e que eles, em sua grande humildade, podiam ensinar aos homens uma bela lição. Principalmente, viver sem desperdiçar a energia e defender-se com suavidade. Somos pequenos diante do Infinito, mas nos abrindo a Ele, percebemos que a Eternidade nos habita. A carapaça é a nossa mente, onde vivem os pensamentos, mas abaixo dela estão os sentimentos, as asas do coração, que nos fazem sonhar e voar. 

Explicou também que as joaninhas se alimentam de parasitas menores que atacam as plantas e que por isso elas são símbolo de fertilidade, pois onde há joaninhas chega o novo, a transformação e o crescimento. Pôs sua mão sobre a barriga da jovem num gesto de muito carinho e sorriu esperançosamente. Pegou uma pequena caixa de vidro com milhares de joaninhas e presenteou Amada, dizendo para espalhá-las por suas terras para que elas fizessem seu trabalho. Despediu-se num abraço terno e convidou-a para voltar ao interior da floresta sempre que fosse necessário buscar mais joaninhas.

Quando Amada chegou em casa, encontrou seu Amado desesperado pela ausência dela. Ela contou o que havia acontecido e logo espalharam as joaninhas por toda plantação. Elas rapidamente comeram os parasitas e, fortalecidas, reproduziram-se rapidamente espalhando a boa nova por todo lugar. Em breve, toda a Terra estaria recuperada, salva pelos humildes insetos coloridos e pela Bondade.

CaMaSa

Real

Real

 

Na realidade pouco sei

e o que sei não veio de mim

veio de quem aprendi

 

Aprendi bem devagar

cada um tem seu momento

essa lição eu entendi

 

Entendi da forma certa

separando coração e mente

dessa forma amadureci

 

Amadureci sem notar

a vida no vai e vem do tempo

quando dei conta cresci

 

Cresci no conhecimento

presente do amor feito gente

toda sua graça eu vivi

CaMaSa

Sede

Sede

 

Vamos todos lutar em algum momento,

com uma sede terrível, seca e desesperada,

a necessidade de respostas para perguntas

ainda nem feitas, nem mesmo imaginadas.

 

Para saciá-la há uma fonte bem guardada,

em segurança, está no peito a sua morada,

nela só entra quem pede e ganha a chave,

que abre a porta para a real possibilidade.

 

No início estranhamos a luz da claridade,

mas pouco a pouco a vista fica à vontade,

no começo o chão é duro, seco e quente,

mas cavando vamos sentindo a umidade.

 

Gota a gota vai surgindo toda verdade,

formando um lago de águas cristalinas,

nelas se banham as criaturas inocentes,

e os loucos matam a sede mansamente.

CaMaSa

O Juiz

Ele chegou onde chegou por diversos motivos. Tinha inegável capacidade jurídica, mas também era excelente nas artes da política, admirador de Maquiavel e de seu Príncipe. No Supremo não lhe interessava a presidência da corte, apesar do cargo ser o quarto na sucessão da Presidência da República, mas impor sua vontade aos demais ministros. O Supremo Tribunal Federal é a mais alta instância do poder judiciário brasileiro, e acumula tanto competências típicas de uma suprema corte, ou seja, um tribunal de última instância, como de um tribunal constitucional, que seria aquele que julga questões de constitucionalidade independentemente de litígios concretos. Os membros da corte, referidos como ministros do Supremo Tribunal Federal, são escolhidos pelo presidente da República entre os cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, os indicados são nomeados ministros pelo presidente da República. O cargo é privativo de brasileiros natos e não tem mandato fixo: o limite máximo é a aposentadoria compulsória, quando o ministro atinge os setenta e cinco anos de idade.

A remuneração (no valor bruto de R$ 39.200 desde o início de 2019) é a mais alta do poder público, e serve de parâmetro para estabelecer a remuneração (menor) de altos funcionários públicos – fenômeno conhecido como escalonamento de subsídios, vez que os demais funcionários públicos têm sua remuneração atrelada a percentuais do subsídio de referidos ministros.

Nada disso era realmente importante, eram ninharias que não ocupavam suas preocupações. Seus interesses eram as grandes questões morais, jurídico-filosóficas, a constitucionalidade de alguns interesses e as negociatas que impulsionam o país para o futuro. Seja ele qual for. No momento seu foco eram as manobras para suspender a prisão em 2ª instância, ato jurídico que favorecia a Lava-jato e prejudicava amigos e autoridades importantes e muito próximas. 

Estava em Paris e a família o esperava no Mokonuts, pequeno e sofisticado café na Arrondissement, número 11. Os chefs proprietários preparavam amêijoas, filés de cavala e galinha de angola com maçãs e ervas. Assavam biscoitos de gergelim e preparavam a famosa Tarte Tatin com caramelo para a sobremesa. Tudo regado a Henri Jayer Richebourg Grand Cru, a 20.000 dólares a garrafa. Ele exigia tranquilidade e sossego, então o restaurante fechava as portas para o público às 17hs, reabrindo somente no dia seguinte. 

A mesa, além da família, recebia dois senadores, um governador, três ministros e um general, além de três dos maiores empresários brasileiros. Todos acompanhados de esposas ou companheiras da hora. Discutiam amenidades e frivolidades da vida parisiense, além dos rumos da política brasileira e as peças que deveriam ser mexidas no tabuleiro, para servir aos próprios interesses e manter o custeio dos gastos com passeios e jantares na Europa. Diziam entre si que esse era um dinheiro público muito bem gasto e gasto com muito gosto! Se você nunca participou de um jantar desses, talvez não entenda muito bem a piada. Na verdade você é a piada…

Além das duas filhas, o juiz trazia a tiracolo seu maior orgulho, a sua obra-prima, como costumava se referir ao filho caçula. Dotado de uma inteligência incomum e de uma beleza estratosférica, o rapaz era considerado o príncipe do high society tupiniquim. Seguia por instinto genético os passos do pai e sua carreira estava sendo estrategicamente planejada como uma sucessão imperial. Harvard, Oxford e Yale já haviam recebido a ilustre presença do filho do Brazilian Judge, como ele era conhecido nos meios jurídicos internacionais. Atlético, praticante de futebol, americano, tênis e ciclismo. Bebia apenas socialmente e das drogas sabia somente os nomes.

Como contraponto, o filho do empresário Tê Maior era um container de problemas. Boa pinta, malandro e mau caráter, meteu-se desde cedo em todo tipo de confusão. Valentão, rei do bullying na escola, foi expulso de quase todas pelas quais passou. Gostava de rinhas, mas achava os galos pouco violentos. Com 16 anos de idade criou a primeira rinha de cachorros pitbulls do Brasil. Concluiu o segundo grau comprado pelos pais e chegou à faculdade para beber mais e potencializar o uso de drogas. Químicas, somente químicas. Detestava desacelerar em todos os sentidos. Amante da velocidade, o pai montou escuderias de primeira linha para que ele competisse. Tinha até um certo talento, mas as condições etílicas e o mau caráter faziam dele um competidor medíocre e detestado por todos. Sempre usava de recursos ilícitos nas ultrapassagens, pondo em risco a própria vida e a dos demais pilotos. Causou acidentes graves, um deles resultando em lesão irreversível na coluna de um adversário e o fim da carreira. Para ambos.

Ele continuou correndo nas ruas, no entanto. Sem habilitação devido à grande quantidade de multas, seguia dirigindo impunemente, sempre pagando aos guardas de trânsito por sua liberdade. Atropelou uma senhora de 83 anos mas, apesar de se recusar a fazer o teste do bafômetro, os advogados conseguiram provar que a vítima havia sido imprudente ao atravessar a rua a 22 centímetros da faixa de pedestres… Mais recentemente, saindo de madrugada de uma balada nos Jardins, em São Paulo, atropelou e matou uma mãe, grávida de 6 meses, e sua filhinha de 2 anos que estava no seu colo. Foi preso e condenado, em primeira e segunda instância, apesar da tonelada de argumentos jurídicos fictícios apresentados pela defesa. 

Era sobre a situação do filho que Tê Maior e o Juiz conversavam. Como colocar o rapaz em liberdade? Dos olhos da esposa do empresário corria uma lágrima, suficiente para amolecer o coração de pedra do magistrado e excitar sua imaginação viril. Explicou aos pais que era um homem bondoso, sempre aberto a negociações e transferências de valores para suas contas na Suíça. O STF estava no momento em meio à solução dessa pendência jurídica da 2ª instância, com a votação para ser concluída. Havia os incorruptíveis, os comprados e os indecisos. Era necessária uma grande inversão de euros para que ele conseguisse vencer a intransigência e conseguir a liberdade de pessoas chaves do mecanismo de administração verdadeiro do país, entre elas, facínoras e corruptos da pior espécie. 

Na realidade a propina era só um detalhe, porque a decisão já estava tomada há muito. Usariam a libertação do ex-Presidente, destruído pelo álcool e sonhos de grandeza, como pano de fachada para por nas ruas aqueles que eles tinham interesse, e dinheiro, muito dinheiro para pagar pela liberdade. Contentavam assim boa parte da população enraivecida pela derrota nas eleições presidenciais. A outra parte da população estava atada a um Presidente da República que estava no bolso do colete, refém dos trambiques e tramoias dos filhos. Dariam uma pincelada de legalidade, prendendo-se a vírgulas insignificantes da Constituição, para fazer valer os próprios interesses.

O filho de Tê Maior saiu da cadeia junto à leva de condenados beneficiados pela extinção da prisão em 2ª instância. Foi direto para a balada mais cara da noite. Precisava comemorar a liberdade e não poupou dinheiro e champanhes Boërl & Kroff Brut, Krug Clos d’ Ambonnay e Moet & Chandon Dom Perignon Charles & Diana 1961 à vontade. Muito som, muita alegria, muita coca e muito êxtase em quantidades cavalares. O dia já começava a dar as caras quando ele acordou e viu alguns dos convidados, moços e moças de todas as tribos, espalhados pelo chão. Garçons andavam de um lado para outro arrumando a bagunça das mesas. Ele saiu para a rua e viu uma Porsche 911 preta, igual à dele, que ainda estava trancafiada num depósito da Polícia Federal como prova em seu processo. Não dirigia há muito tempo, estava louco para dar uma voltinha, e percebeu que o dono, provavelmente dormindo bêbado, tinha deixado a chave no contato. Subiu naquela máquina do demônio e saiu de lá voando, cantando os pneus.

Naquela manhã o filho do Juiz acordou com as galinhas, como sempre, para fazer seus exercícios matinais que incluíam uma corrida de 10K pelas ruas arborizadas e limpas da vizinhança. A manhã estava um pouco chuvosa, ideal para encher os pulmões de ar fresco e oxigenar o coração e as ideias. Colocou um calção surrado, camiseta larga e tênis de corrida. Deu um beijo rápido na mãe e um tapinha nas costas do pai que tomava o café na sala de almoço. Saiu para a rua cheio de disposição, ouvindo música no seu AirPod Pro de última geração. Distraído, nem percebeu quando a Porsche negra subiu a calçada em sua direção a mais de 200 km/hora. Voou para o alto como um fantoche de pano, num looping desengonçado. Caiu no chão batendo a cabeça na quina do meio fio, já sem vida.

O Juiz saiu correndo para a rua, assustado pelo barulho vindo de fora. Viu mais ao longe um automóvel preto abandonado com a porta aberta, sem motorista. Quando se aproximou do corpo estendido em sua calçada, viu que era o do seu filho amado, morto em 1ª instância.

CaMaSa

Em Paz

Em Paz

 

Quando o homem está em Paz 

faz coisas importantes e belas 

obras fantásticas casas pontes 

estradas e veículos de sonhos 

carros caminhões navios aviões 

equipamentos de precisão som 

imagem comunicação cria arte 

encontra soluções para a saúde 

a educação o respeito à religião 

cria sistemas sociais plausíveis 

para redistribuir bens e riquezas 

compreende e respeita o outro 

vê em todos e em todo universo 

manifestações de amor e criação 

 

Tudo de bom o homem em Paz

semeia colhe espalha pela Terra

 

Se não está em Paz faz Guerra

CaMaSa

Minto

Minto

 

Minto descaradamente,

conto mentiras como verdades

e verdades que parecem mentiras.

 

Represento um teatro 

de falsa farsa, comédia e drama,

fingindo muito nesta imensa trama.

 

Faço o papel de placa,

indico o caminho para quem ensina,

dele só aprendo, essa é minha sina.

 

Porque escrevo e sei,

a verdade somente pode ser dita

na voz calada do silêncio respirado.

 

E por bondade pura,

o maior segredo a mim foi revelado,

e a ele, pela eternidade, estou atado.

CaMaSa

Um conto de Natal

Lembro de um Natal, eu era muito pequeno, devia ter 7 ou 8 anos, e nossa família morava no primeiro andar do Edifício Marly, na Rua Dom Bosco. Naquela época, a Mesbla enfeitava o imenso prédio de tijolos e sua torre redonda, da Avenida do Estado, com os motivos natalinos, e fazia uma grande exposição das últimas novidades em artigos para o lar e, principalmente, de brinquedos. Eu, apesar da idade, já havia compreendido que não ganharia do Papai Noel, nem de perto nem de muito longe, aquilo que eu realmente queria ganhar. Assim que me contentava em passear pela imensa loja, morrendo de amor e paixão pelos autoramas, ferroramas e bolas de capotão, sabendo que, com muita sorte, ganharia dos meus pais meias, shorts e camiseta. Mas aquele Natal teria um componente que mudaria minha percepção das coisas pelo resto da vida.

Em 1966, o Brasil seguia sua rotina: em 5 de fevereiro era decretado o Ato Institucional Nº 3, que instituiu as eleições indiretas para governadores e vice-governadores e a nomeação de prefeitos; no dia 21 de fevereiro o jogador de futebol Pelé casava-se com Rosemari; em 5 de junho o governador de São Paulo, Ademar Pereira de Barros, era cassado pelo presidente Castelo Branco; no dia seguinte, Luís Carlos Prestes, líder do Partido Comunista Brasileiro, era condenado a 14 de anos de prisão; em 25 de julho um atentado a bomba contra o marechal Artur da Costa e Silva, candidato a presidente do Brasil, no aeroporto de Guararapes, em Recife, Pernambuco, deixando três mortos e vários feridos; no dia 13 de setembro o presidente Humberto de Alencar Castelo Branco sanciona a lei, que estabelece o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e, em 3 de outubro, o candidato da Aliança Renovadora Nacional, Artur da Costa e Silva, é eleito presidente do Brasil pelo Congresso Nacional com 295 votos na eleição presidencial indireta. Tudo muito normal e brasileiro.

Desse modo chegamos ao fim de 66 com a expectativa que era melhor não ter muitas expectativas. Evidentemente, um pirralho como eu não teria a menor ideia ou interesse sobre o significado desses acontecimentos. Meu único interesse era encontrar o tal do bom velhinho, de barba branca e vestido de vermelho, e que ele tirasse alguma coisa que valesse a pena do seu enorme saco. A rotina nas casas era alterada para uma frequência diferente, mais rápida e cheia de uma intensidade amorosa, com preparativos especiais de decoração e alimentação, como quem prepara uma festa para um convidado muito especial. Eu compreendia porque esse senhor Noel aparecia tão gordo em todas as imagens. Porque, se ele tinha que passar em todas as casas entregando presentes e experimentar, nem que fosse um cafezinho, só podia ficar gordo mesmo, como uma baleia! Os outros garotos, amigos inseparáveis da rua, também estavam concentrados em seus mundos particulares, dentro de suas casas, acompanhando cada detalhe dos preparativos. Eu ficava em meio à minha mãe e irmãs, atrapalhando e levando broncas. 

– Tira a mão daí, menino!

– Olha a farinha! Não vai sentar no ovo!

– Sai daqui, moleque. Vai caçar o que fazer!

Era trabalho de adultos… e isso só fazia aumentar cada vez mais a ansiedade. O que será que vai acontecer? Será que vem? Será que não vem? O ano passado ganhei um estojo de madeira, com tampa deslizante multicolorida… Para a escola… Oh céus! Será que a carta chega nas mãos certas este ano? Sim, porque esse homem deve ter uma legião de ajudantes, uns dizem anões, outros dizem gnomos ou duendes. Seja lá o que for, o que recebeu minha carta devia ser um analfabeto (tinha acabado de aprender essa palavra na escola, usava para qualquer situação). Eu soletrei muito claramente para a Irmã Mais Nova: – Bi…ci…cre…ta. Não tinha erro! Será que ela me pregou uma peça e trocou por Es…ton…jo? É possível. Irmãs e irmãos pregam-se peças por toda a vida, até a despedida final.

Mas aconteceu que no dia 24, às 19, 20, 21 e 22 horas, até então, o bom velhinho não apareceu. E, estranhamente, não só eu estava ansioso, mas o Pai, a Mãe, a irmã Mais Velha e até a Irmã Mais Nova, todos estavam ansiosos e tensos, como alguém que desconfia que o peru assando no forno é frango, que a azeitona da farofa é uva passa ou que o bolo recheado de creme e chocolate é de banana. Algo que tinha que acontecer não estava acontecendo e isso não era bom. Às 23 horas definitivamente não era nada bom mesmo e às 23h30 já era quase caso de polícia. Eu, barata tonta em meio a tanta expectativa, dividido entre a deles e a que realmente importava, a minha, andava de um lado pro outro em busca de respostas. O que estaria acontecendo?

Era uma noite chuvosa, como são chuvosas as noites de verão na cidade de São Paulo e, naquela época, pré luz de mercúrio, os postes sustentavam uma fraca luz amarelada, formando abóbadas de claridade riscadas por pingos prateados de água limpa. Ela não chegou num trenó puxado por renas majestosas, comandadas por um intrépido capitão de roupas escarlates. Veio num velho e abrutalhado caminhão baú FNM, cheio de caixas. De uma delas surgiu a maravilha das maravilhas. Um gigantesco carregador em mangas de camisa descarregou essa enorme caixa de papelão e a abriu, diante dos meus olhos reluzentes, tirando do seu interior uma bicicleta Falcon, verde, aro 20! Era tão linda! Diferente das bicicletas que os amigos tinham ganhado no ano anterior, essa era uma miniatura das bicicletas dos adultos, com todos os detalhes copiados à perfeição. Praticamente dormi com ela naquela noite, sem comer, sonhando com as pedaladas do dia seguinte e meus amigos babando de inveja de um presente tão especial.

Pulei da cama antes dos primeiros raios de sol e a primeira coisa que ouvi foi a Mãe dizendo: – Não vai andar de bicicleta enquanto a chuva não parar.

Caramba! Olhei pela janela e a chuva seguia firme e forte, com cara de que levaria uns 2 a 3 meses para parar! Entre resmungos e tentativas de argumentação, bater de pé e o primeiro tapa na bunda, cheguei à conclusão que o melhor seria esperar. Na cozinha a atividade seguia intensa, agora com os preparativos do almoço de Natal, agora sim com a presença de convidados, tios e primos, para confraternizar e comemorar, não sei bem o que, já que a única coisa realmente importante era meu presente. Eu descia e subia as escadas até o portão da rua, a cada 15 minutos, para avaliar as possibilidades climáticas. A cada puxão no avental da minha Mãe, recebia um: – Nó… Nó… Nó…

Até que finalmente, pouco antes da chegada das visitas, ganhei uma fatia de rocambole de queijo e presunto, com massa fina e corada de gema de ovos, desses que só as mães sabem fazer, porque vai na receita um ingrediente especial que só elas conhecem. Percebi que meu estômago roncava de fome e o perfume da cozinha tinha um sabor de Natal que ficaria gravado na memória para sempre. Peguei meu pedaço e desci a escada para saborear o salgado sentado no degrau do portão de entrada do prédio, esperando que a chuva sem fim terminasse. Quando eu ia dar a primeira dentada, percebi um homem diante de mim, me olhando com olhos escuros e tristes. Fiquei surpreso, mais porque não parecia ser um mendigo, mas suas roupas estavam bem surradas e ele parecia não ter tido acesso a um banho, comida ou qualquer outro tipo de conforto há um bom tempo. Ele balbuciou entre os dentes sujos da boca sem força do rosto encovado:

– Moço, me desculpe, estou há vários dias sem comer, venho do interior e tenho muita fome…

Eu olhei pra ele, olhei pro rocambole, olhei de novo para ele e fiz que não com a cabeça. Ele me retribuiu com uma tentativa de sorriso, virou-se e foi embora. Não refleti por mais de 3 segundos antes de dar uma mordida naquela iguaria, mas, estranhamente, formou-se um bolo em minha garganta e a massa não desceu. Fui invadido por uma tristeza profunda, percebi não sei como que aquele homem era eu e eu era ele. Levantei em pânico e subi para minha casa. Entrei na cozinha e sem que ninguém percebesse peguei um dos rocamboles inteiro, recém saído do forno. Desci correndo para a rua, buscando pelo homem. Pude vê-lo dobrando a esquina, à esquerda da Rua Luiz Gama, em direção à Avenida do Estado. 

Naquela época as ruas eram pouco movimentadas, mais seguras, e eu saí correndo em sua direção, sem nem mesmo saber o por quê. Virei em direção à avenida e, quando cheguei no meio fio, vi o homem no centro da pinguela de madeira usada para atravessar o Rio Tamanduateí, que separava a avenida em duas margens. O rio, normalmente calmo com suas águas sujas e escuras, estava furioso e perigoso, com a água barrenta trazida de longe. Me aproximei devagarinho, com o rosto escorrido de lágrimas misturadas com gotas de chuva. Pude de alguma forma entender sua dificuldade e aflição, olhando desoladamente para as águas perigosas do rio abaixo. Um mergulho ali seria fatal. Cheguei ao seu lado sem que ele percebesse, o toquei de leve e estendi o rocambole em sua direção.

O homem tomou a oferta sem cerimônia de minhas mãos e deu duas dentadas desesperadas. Protegeu o restante da água da chuva, repensou suas opções, virou-se e atravessou a pequena ponte, em direção ao seu destino.

CaMaSa

Conhecimento

Conhecimento

 

Olha meu irmão já é chegada a hora 

de declarar a guerra contra a guerra 

pois a paz está presente no coração 

de todos os seres viventes desta Terra

 

Sob uma embalagem visível de ilusão 

reside o vazio que infla e faz pressão 

expande sem razão o ar pelo pulmão 

um finito movimento cheio de paixão

 

E somos todos iguais nesse momento 

diferentes só em sonho e pensamento

mas ao ver que a divisão é só conceito

sabemos que essa confusão tem jeito

 

Prática e gratidão tornam acessível 

o infinito então impossível possível

faz crescer respeito e entendimento 

para viver com Paz e Conhecimento

CaMaSa

Tudo

Tudo

 

E por mais que eu conheça 

essa coisa tão simples dentro, 

a mente diz que não é nada.

 

Embora essa simplicidade 

mantenha todos e o universo,

questiono, critico e duvido.

 

Esse é um caminho solitário,

mais ninguém cabe ali comigo,

dentro é pleno de companhia.

 

Quanto mais nele se transita,

mais claro e compreensível fica,

sou grato por quem nele habita.

 

O coração diz que isso é tudo.

CaMaSa

Um conto de pré-Natal

Eteu não era ateu, acreditava em tudo, no Bem e no Mal. Foi assim desde que nasceu. Era praticamente um São Tomé às avessas. Ao contrário do santo, que de tudo duvidava, ele tinha Fé absoluta em tudo e todos. Acreditou quando sua mãe misturou água ao leite da mamadeira para que ele ficasse mais forte. Também acreditou quando ela cantarolava uma canção de ninar que contava como seu pai, um homem rico e poderoso, havia partido deixando-a à míngua, sem ter como se sustentar, nem ao filho. Não que ele tivesse escutado de sua mãe essas coisas. Isso quem lhe diziam eram as freiras do orfanato em que havia sido abandonado, com 4 dias de vida, dentro de uma lata de azeitonas de 20 litros, forrada com jornal. As freiras que o acolheram, acostumadas com a dureza e solidão do coração dos homens, souberam que somente um milagre faria vingar aquela fraca e minúscula plantinha neste mundo.

Mas vingou! Talvez porque ele cria em tudo que lhe diziam, talvez porque uma força maior assim o queria. Aceitava qualquer sobra de alimento que ali restasse, porque eram dezenas de bocas sempre famintas e subnutridas. Sobreviviam da caridade, que é sempre muito menor do que a necessidade. Mas Eteu cresceu aceitando o pouco, e aceitava os remédios também, pois lhe diziam que faria bem. Acreditava nas peças e brincadeiras que os mais velhos lhe pregavam, e nos contos de horror assustadores que lhe contavam antes de dormir. Ficava a noite toda de olhos arregalados, na vigília, pois haviam dito que dessa forma não seria atacado pelos monstros e assombrações. Assim, passou a infância na cama, entre doenças várias e muito, muito sono.

Ele acreditou em Papai Noel, no Coelho de Páscoa, no nascimento pela virgem, na cruz e na ressurreição. Mais tarde também acreditou em Krishna, Buda, Maomé, Olodumaré e todos os orixás. Foi devoto praticante de todas as correntes religiosas que lhe cruzaram o caminho. Mas também homem de ciência, fiel à exatidão dos cálculos e dos números, da comprobabilidade das leis físicas e químicas. Coexistiam dentro de si a fé religiosa e a razão científica, como esses sorvetes bicolores de casquinha, que misturam os dois sabores no céu da boca. A quem lhe questionasse sobre a falta de prática do seu modo de ser, respondia que ambas eram lados da mesma moeda, bastava crer.

Na escola primária acreditava em cada coisa que lhe ensinavam os professores, absorvendo tudo com grande interesse e alguma confusão. Misturava as matérias em sua cabeça e as respostas, na maior parte das vezes, não se encaixavam ao gabarito exigido. Ralhavam com ele e o chamavam de burro, o que ele cria plenamente, assim como havia momentos de intenso brilho, nos quais o elogiavam com nomes de sábio e gênio, que também aceitava naturalmente. Praticava esportes como quem defendia a própria vida, sempre com resultados muito aquém do esperado, mas acreditava piamente nos resultados das partidas de futebol, basquete ou vôlei, em que invariavelmente suas equipes eram derrotadas. Adquiriu paixões fanáticas por vários times de futebol, Palmeiras e Corinthians, Flamengo e Fluminense, Cruzeiro e Atlético, Inter e Grêmio. Todos eram fruto de sua intensa alegria e sofrimento. E quando lhe perguntavam como podia ele ser apaixonado por duas equipes adversárias, respondia que eram apenas dois lados da mesma moeda…

Para comprovar sua teoria, certa vez, numa ensolarada tarde de domingo, resolveu assistir a uma partida de futebol entre Corinthians e Palmeiras, no Pacaembú, homenageando os dois times vestindo uma camiseta, confeccionada por ele mesmo, metade verde e branca, metade preta e branca, com os escudos de cada agremiação bordados sobre a cor do adversário. Entrou no estádio com uma jaqueta azul, e quando estava bem  no meio da divisa entre as duas torcidas, tirou o abrigo revelando sua louca invenção. É um pouco difícil explicar o que aconteceu naquele dia. Pessoas de estômago fraco talvez não consigam acompanhar os detalhes. Então me limito a dizer que nunca antes na história deste país alguém apanhou tanto, de tanta gente! Até os guardas e seguranças aproveitaram para dar umas bordoadas. Era tanto safanão, tapa e pontapé, que nem a bola do jogo apanhou tanto naquele dia! Sobreviveu por milagre e saiu do hospital direto para a delegacia, onde depois de prestados todos os esclarecimentos, acreditou que era justa a prisão por 4 semanas que o delegado lhe condenava.

Na prisão, confiou em todos os prisioneiros, vendo-os completamente inocentes de suas acusações. Ninguém ali havia roubado, estuprado ou matado, sendo vítimas de uma estrutura social decadente e intolerante, que não respeitava os direitos básicos daqueles cidadãos. Organizou motins e greves, fez jejum em protesto, até que se cansaram dele e o puseram na rua. Não se deu por satisfeito e voltou para a delegacia exigindo explicações. O delegado de plantão pacientemente lhe explicou quem eram aquelas pessoas e porque estavam presos, e ele acreditou sem sombra de dúvida!

Teve namoradas, e sempre acreditou plenamente nelas. Amava-as com todo coração e confiava em tudo que lhe diziam. Uma vez, cheio de entusiasmo, resolveu fazer uma surpresa à namorada da vez, que passava férias na casa de uns tios no interior, indo ao seu encontro sem avisar. Saiu pela manhã, pegou o busão que seguiu pela estrada até o anoitecer. Lá chegando, encaminhou-se para o endereço informado e, no caminho,  passou pelo coreto da praça central. Viu a amada à beira do quiosque, com os braços enlaçados no pescoço de outro rapaz, olhando-o com os olhos apaixonados e os lábios entreabertos num sorriso convidativo. Eteu postou-se diante dos dois de braços cruzados, abalado mas crente de que havia uma explicação plausível.

Semi-abalado em sua fé amorosa, Eteu ouvia mudo as explicações da garota, muito justas porém! Aquilo era somente a demonstração do quanto ela o amava, sujeitando-se aos encantos de outro homem, mas resistindo, firme e fiel ao seu verdadeiro amor. Ele aceitou as explicações, e inclusive se recriminou por ter sido tão imprudente e desconfiado, coisa que não era de seu feitio. Casaram-se, estabeleceram-se ali mesmo na pequena cidade do interior, e viveram sempre às voltas com essas provas de amor que ela se impunha, sempre testando seu caráter e honra, envolvendo-se com diversos homens para conhecer seus limites, em respeito ao marido. Ele nunca duvidou da honestidade da esposa, apesar de que nenhum dos quatro filhos era levemente parecido com ele, sendo cada um, bem diferentes entre si. E ainda compreendeu quando ela lhe disse que estava indo embora com aquele outro homem, numa missão de caridade, pois este tinha poucos tempo de vida e precisava dela numa viagem ao redor do mundo em seu iate de 200 pés… 

Passado algum tempo, no entanto, sozinho, com um filho de um ano, um de dois, uma de três e outro de quatro, viu-se numa tremenda dificuldade para sobreviver e ganhar o sustento das crianças. Perdeu o emprego porque faltava muito cuidando dos filhos, e acreditou quando o patrão lhe disse que a empresa passava por um momento de crise e eram necessários ajustes e cortes. Não tinha parentes próximos e acreditou quando os amigos lhe disseram que estavam em situação muito pior que a dele. Os dias foram passando, as crianças foram emagrecendo até o ponto de não mais reclamar da fome, e ele tomou a decisão de voltar para a capital em busca de algum apoio. Aqui chegando, foi imediatamente para o antigo orfanato que, para sua surpresa, agora era um edifício alto e moderno, todo envidraçado. Lhe disseram que o orfanato fechara há muito tempo e ninguém tinha alguma referência das irmãs de caridade.

Era o ano de 1966. Eram tempos difíceis para todos e não havia oportunidades disponíveis para um pai com quatro filhos pequenos a tiracolo. As portas estavam fechadas e, quanto mais perambulava e o tempo passava, mais se aproximava do desespero. Havia saído de casa no início de janeiro, já estavam no fim de dezembro, e até o momento só havia conseguido restos e abrigos sob pontes. Eteu tinha trinta e poucos anos mas aparentava muito mais. Tinha o rosto encovado, a pele seca e enrugada de sofrimento, os cabelos desgrenhados tingiam-se precocemente de branco.  Naquele dia, no auge do desespero, deixou as crianças sob a guarda de uma colega de rua e saiu na busca insana por comida uma vez mais. Seguia crendo, firme em sua fé inabalável. Passou diante de uma casa e percebeu um pequeno garoto, não mais de 8 anos. Em suas mãos um imenso pedaço de torta ou o que fosse, cheirando o perfume de boa comida. Olhou com desejo, pensou em roubar, mas pediu. O menino olhou para ele surpreso e fez que não, balançando a cabeça.

Foi a gota d’água! De repente, viu-se sem fé. Em nada mais acreditava e não tinha mais o que fazer. Virou as costas e saiu andando sem rumo, até que viu-se sobre uma pequena ponte de madeira, sobre um rio de águas volumosas e raivosas. Chovia muito, e os pingos da chuva nas águas do rio o convidavam para um passeio sem volta pelo rio barrento adentro. Eteu estava decidido. 

Só um milagre poderia salvá-lo…

CaMaSa