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Anacleto
10/04/21
CaMaSa

Anacleto e a Terapeuta

Anacleto não era uma criança normal, todos já haviam percebido. Seus interesses eram, digamos, sutilmente tortos e arriscados. Os pais que já são naturalmente preocupados com a segurança dos filhos, no caso dele eram alucinadamente aflitos e viviam angustiados. Verdade seja dita, fora essa tendência autocida, o menino era um doce, tranquilo e sossegado, estudioso e responsável, com notas muito acima da média. Se relacionava bem também com os colegas de escola e professores, ainda que invariavelmente os temas de suas conversas versavam sobre a morte em algum momento. Para ele a morte não tinha a conotação fúnebre e dolorosa que os mais adultos tinham, ele era uma criança caminhando para seus 10 anos de idade. Era muito mais uma aguçada curiosidade mórbida resultado de experiências sensoriais e emocionais vividas no período gestacional e do parto. Ou tinha um parafuso solto mesmo!

Pelo sim pelo não, a escola aconselhou Ana e Cleto a procurarem acompanhamento psicológico. Indicaram a Dra. Marta Gouveia, renomada profissional com mestrado na Stanford University (Estados Unidos), número 1 do ranking em psicologia, é considerada pela THE a 4ª melhor universidade do mundo. Localizada no coração do Vale do Silício, na Califórnia, a universidade tem um dos maiores campus dos Estados Unidos, com 18 institutos de pesquisa e 7 faculdades, onde estudam mais de 16 mil estudantes vindos dos 50 estados americanos e de mais de 90 países. Com a ajuda do colégio e uma vaquinha dos vizinhos, conseguiram marcar uma consulta para dentro de dois meses, numa tarde de quarta-feira, às 15hs. Os pais passaram essas oito semanas num misto de esperança e agonia que, pouco a pouco, foi se transformando em choro e ranger de dentes de tanta expectativa e ansiedade.

Na data marcada, os dois acordaram às 4 horas da manhã, apesar de terem ido dormir às 2 horas! Temiam a reação de Anacleto, temiam o veredito da terapeuta. Temiam o dia, temiam a noite. Temiam Deus e o Diabo. Ter um filho como o deles era padecer no inferno mesmo. Quanto maior era o amor por ele, maior era a preocupação que ele se fizesse algum mal. Chegaram ao consultório 50 minutos antes da hora marcada e foram atendidos 2 horas depois. Sentaram-se Ana e o menino, Cleto postou-se atrás dos dois, ofegante. A psicóloga, imponente, rodeada de diplomas, pôs-se a enumerar seus inúmeros cursos e mestrados, teses e livros lançados em diversos idiomas. Falou sobre a origem da psicanálise, Freud, Jung e outros tantos doutores dos meandros mentais, essa parte fundamental para compreensão humana. Cleto já não mais ofegava, adormecia em pé, embalado pela verborragia sem fim da mulher à sua frente. Ana virava-se para trás e discretamente cutucava o marido para que acordasse. Já o menino ouvia tudo atentamente interessado, quase sem piscar, quase sem respirar.

De repente, cessou o blá-blá-blá. A Doutora pediu que os pais se retirassem, pois teria que conversar a sós com o menino. Somente assim ela poderia exercer todo seu conhecimento e perícia para elucidar as razões primeiras que levavam essa criança tão bonita e dócil pensar em atos contra a própria vida. Saíram da sala entre aliviados e esperançosos, sendo recepcionados por uma funcionária ágil e eficiente na elaboração do recibo de pagamento. Cleto tirou sem jeito as notas amarfanhadas coletadas entre os parentes e amigos, espalhando tudo sobre o balcão de vidro limpíssimo, vendo a moça recolher tudo numa expressão de nojo e desaprovação. Certamente ela estava acostumada aos cheques bem preenchidos e perfumados dos clientes endinheirados que por ali passavam para desfilar suas insatisfações pessoais que só o luxo e a riqueza são capazes de proporcionar. Sentaram-se e esperaram e esperaram… Ana não se movia e tentava acalmar o marido que levantava e sentava sem parar. E esperaram… Muito! Até ela já estava agoniada. Que será que está acontecendo, meu Deus? Perguntaram para a recepcionista quando essa pegou suas coisas e saia para a porta sem nem mesmo se despedir:

– Moça, é normal ficar tanto tempo assim com alguém?

– Olha, respondeu emburrada, eu já vi de tudo aqui. Por isso quando dá meu horário pego minhas coisas e vou embora.

O obrigado de Ana morreu na garganta porque a moça bateu a porta atrás de si antes mesmo que ela falasse. Sentaram-se novamente e esperaram e esperaram. Cleto roncava como uma motocicleta quando Ana o chamou:

– Cleto, eu vou entrar lá.

Ele levou alguns instantes até entender que não estava sonhando com uma plantação de tomates que gerava morangos, e dirigiu-se com a esposa para a porta onde estava seu filho. Nem bateram, giraram a maçaneta dourada polida e invadiram o recinto. Surpresos, viram Anacleto sentando na cadeira da terapeuta, brincado de girar alegremente, com os pés suspensos no ar! Procuram por todo canto, no banheiro, nos armários, embaixo da escrivaninha, nem sinal da doutora. Notaram a janela aberta e uma leve brisa balançando a cortina de voal imaculadamente branco. Entreolharam-se preocupados, gelados e petrificados, e perguntaram ao filho o que tinha acontecido?

Anacleto disse que estavam conversando animadamente, a tia era muito legal, falava de pessoas que tinham esse ou aquele transtorno, que era algum tipo de dificuldade que a pessoa tinha para agir de uma certa maneira numa determinada situação e que tinha um velhinho que tinha entendido como a cabeça da gente funciona e tal. Depois que ela falou um monte de coisas imitando voz de criança, apesar de ser bem velha e não combinar nada nada aquela voz com ela, perguntou se eu tinha alguma dúvida muito profunda, quer dizer, escondida bem dentro da cabeça da gente, e se eu queria que ela me ajudasse a encontrar as respostas? Eu perguntei de onde eu vim, quem eu sou e para onde eu vou? E como ela começou a gaguejar e se enrolar sem saber se estava falando ou cacarejando, eu comecei a falar pra ela das coisas que eu lembrava, que eu sentia e sabia. Falei o que pode falar uma criança de 10 anos, com toda inocência e sinceridade, a mais pura veracidade, plena de certeza e honestidade. Num dado momento a mulher se pôs a chorar feito um bebê, dos olhos saiam lágrimas como de uma torneira. E quanto mais eu falava mais ela chorava e não havia em nenhum de nós o desejo que aquilo acabasse. E tanto falei que ficou claro que o meu desejo não era doença mas uma sina que todos nós um dia seremos, em verdade.

– Então, pai, mãe, a mulher, tão boazinha, coitada, se levantou da cadeira, me olhou e abriu a janela, dando uma bela cafungada no ar fresco que entrava. Deu um sorriso meio de lado e se jogou lá embaixo!

– Valha-me Deus! Gritaram os dois desesperados, sem lembrar que o consultório ficava numa casa térrea do Jardim Europa. Os dois correram para a janela e só então, ao verem a grama verdinha a um metro de distância, exalaram o ar preso nos pulmões. Pegaram o menino e saíram de lá sem olhar para trás.

Naquele domingo pela manhã, Cleto folheava o jornal calmamente enquanto saboreava o café quentinho passado pelo coador. Chamou sua atenção uma manchete em letras garrafais sobre uma falsária que havia se entregado espontaneamente à polícia. A matéria dizia que a tal se fazia passar por terapeuta nos Jardins, tendo entre sua clientela a fina nata da elite paulistana, entre empresários, políticos e até um bispo. Dizia-se que ela fora levada por uma crise muito grande de consciência depois de ter atendido um jovem cliente. Arrependeu-se do mal que havia feito a centenas de pessoas, iludindo-as com falsas ilusões.

Cleto olhou o filho brincando distraidamente no chão com carrinhos e bonequinhos, simulando uma via de trânsito. Sentiu uma alegria tão grande que quase agradeceu pela dádiva que a vida lhe dera, mas gelou quando viu Anacleto pegar um carrinho e atropelar um dos bonequinhos.

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