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Anacleto
15/04/21
CaMaSa

Anacleto Descobre o Amor

Há um momento único na vida de cada menino, muito sútil e delicado, onde acontece o rito de passagem, a transformação na forma de ser e ver, para muitos imperceptível e irrelevante, mas para os mais sensíveis uma machadada brutal, lâmina grossa e cega, não amolada, bem no meio do peito. Anacleto, distraído com suas questões pós-vida, recebeu o golpe sem nem saber de onde veio. Abatido em pleno vôo, despencou com toda velocidade em direção ao chão duro e áspero da realidade. Quebrou dentes, ralou peles, partiu ossos e pintou de vermelho sangue o asfalto que o recebia. Seu nome era Eva, que significa cheia de vida, e seus caminhos se cruzaram como se cruzam os caminhos de todos: num determinado momento.

Anacleto era uma espécie de celebridade na escola. O salvamento do professor, o caso da falsa terapeuta e outros tantos pequenos casos envolvendo tramas e engenhocas criadas por ele mesmo para tirar a própria vida, faziam dele um assunto recorrente nas rodinhas de alunos e alunas, funcionários e professores. De certa forma quase todos o conheciam e muitos o cumprimentavam sem que ele soubesse quem eram. Então, era muito comum ele reconhecer quase todo mundo, já que todos, vez ou outra, se colocavam diante dele com algum gesto de amizade, uma pergunta despretensiosa ou um elogio. Assim que, quando o momento determinado de Eva e Anacleto ocorreu, não foi tátil, físico, nem mesmo sensorial, como uma troca de olhares. Nada de encontrão com livros e cadernos esparramados pelo chão ou aventais trocados na aula de ciências. Foi muito mais místico, muito mais zen. Foi um pensamento, ou melhor, dois pensamentos!

Ele pensou num lugar tranquilo e isolado para pôr em prática seu mais novo plano suicida. Ela pensou num lugar isolado e tranquilo para chorar suas dores e agonias. Chegaram ao mesmo tempo no galpão abandonado da rua Oscar Horta, abrigo de ratos e pombas, testemunhas do encontro inusitado entre os dois adolescentes. Examinaram-se surpresos, correndo os olhares de cima a baixo, reconhecendo os uniformes da escola um no outro. Ele de calça cinza, camisa branca com o distintivo do colégio bordado no bolso, meias brancas e sapatos pretos. Nela as calças eram trocadas por uma saia encurtada pela dobra do cós. No silêncio constrangido, ambos pensavam em formas de se safar daquela situação. Quando resolveram falar, foi ao mesmo tempo:

– Vim me matar!

Eva era uma menina normal, com a beleza que toda garota de 12 anos tem. Mas Anacleto, ao ouvir o que ela disse, viu diante de si uma deusa juvenil de beleza encantadora. Ele a percebeu loira, com os fios dos cabelos retos e brilhantes na altura dos ombros. O tom era dourado entremeado por mechas castanho claro. Um feixe de luz vazava de um dos muitos furos nas telhas de amianto da cobertura, refletindo sobre seus cabelos e criando uma aura flutuante pontilhada por pontos luminosos de poeira. Os olhos eram verdes, da cor da folha da bananeira, vítreos. O tom da pele aveludada era café com leite, bem clara, levemente avermelhada. Vermelha mesmo era sua boca, foco de atenção dele desde o primeiro segundo. Assim ele a via, não exatamente o que de fato diante de si havia.

Seja pelo inusitado da situação, seja pelo nervosismo e necessidade de descontração, seja porque leve e cheia de sonhos é para os jovens a vida, ambos caíram numa sonora gargalhada e quanto mais riam, mais riam, até que os músculos da barriga começaram a doer de tanto que gargalhavam. Pouco a pouco foram retomando o fôlego, mas a cumplicidade já havia tomado o lugar da desconfiança e a proximidade e intimidade se instalaram naturalmente. Começaram a conversar como se conhecessem há muito, os nomes encaixados no meio da conversa, como quem troca cartões de visita. Suas histórias, curtas até aqui mas borbulhantes de detalhes e vivacidade, eram narradas e absorvidas ansiosamente, ora por ele ora por ela. Eva tinha uma razão simples e objetiva para não mais apreciar a vida, ao contrário de Anacleto cujas razões eram estranhas e complexas, místicas e filosóficas.

Ela sentou ao lado dele e começou a contar sobre sua família e a harmonia que existia entre seu pai, sua mãe, ela e sua irmã mais nova, Ritinha, como eram felizes na rotina familiar e no dia a dia. O pai trabalhava numa loja de departamentos, a Mesbla, aquele prédio enorme de tijolos, do outro lado do rio, na Avenida do Estado. A mãe cuidava da casa e das filhas, preparava o almoço e a janta, fazia bolos e doces perfumosos para o lanche da tarde. Aos fins de semana, o pai sempre inventava um passeio surpresa, um parque, um cinema ou teatro infantil. Em datas especiais pegavam a estrada e iam passar o dia na praia, em Santos ou São Vicente, eventualmente uma aventura mais emocionante indo até a praia das Tartarugas, no Guarujá. Era um tempo simples, de fuscas e peruas kombis, rádio de pilha e televisão em preto e branco. A felicidade chovia aos borbotões e os problemas eram do tamanho do salário. Mas tudo estava por terminar. O pai havia recebido uma promoção que envolvia uma transferência para outro estado, no Nordeste, mas a mãe não queria se mudar. As discussões entre os pais começaram ponderadas e educadas, passaram a ser irritadas e agressivas, desembocando numa torrente de acusações e pedidos de separação.

Anacleto ouviu todo relato pacientemente, sem emitir um pio. Na verdade ficaria ali por dias e dias ouvindo aquela melodia suave e doce que saia daquela boca. Ele não via no relato dela motivo algum para se tirar a própria vida, antes era só um mal estar passageiro, chato mas de fácil solução. Assim que, para parecer adulto e compreensivo, pôs-se a explicar como via a situação, apontando aqui e ali os pontos positivos da situação e as diversas soluções para as partes complicadas. E de tal modo construiu uma narrativa de positividade e otimismo, que ambos sentiram que era real e verdadeira a possibilidade de tudo se acertar e as coisas não só voltarem a ser boas como eram mas muito melhor. E cheios de esperança e um sentimento não identificado no peito, saíram do galpão abandonado em direção à suas casas. Ele disse que ia acompanhá-la até sua casa. Ela morava do outro lado da Avenida Radial Leste, na Rua Wandenkolk. Andaram lado a lado, ela de vez em quando pegava em seu braço, falando de amenidades e coisas da escola. Quando chegaram na porta do prédio se despediram e, antes que ele se virasse, ela o beijou levemente nos lábios. Virou-se e correu rapidamente para dentro.

Anacleto nunca soube como chegou em casa, ou melhor, tinha certeza que chegou em casa flutuando, deitado em nuvens de algodão branquinhas e fofinhas. Lembrava vagamente de buzinadas, freadas e xingamentos durante algumas partes do percurso, mas sentia que não eram para ele. Eram rotinas terrenas distantes, coisas minúsculas e insignificantes, incapazes de atingi-lo. Seja como for, chegou em casa sem um arranhão e nem mesmo a porta de entrada que tentou atravessar sem abrir o incomodou ou foi suficiente para fazê-lo despertar do sonho. Sua mãe, acostumada com os devaneios malucos do filho, nem deu muita atenção, concentrada que estava preparando o jantar, mas o pai, esse não deixou passar despercebido o olhar abobalhado do garoto, vez que ele mesmo já havia experimentado esse sentimento de abestalhamento na juventude. Seu filho podia estar apaixonado e isso só poderia ser uma boa notícia. Não comentou nada, respeitou o espaço do menino e o deixou sonhando acordado em seu quarto, deitado na cama e olhando fixamente para o teto, vendo um futuro cor de rosa real e verdadeiro como promessa de político em campanha.

No dia seguinte Anacleto saiu de casa sem tomar o café, enquanto seus pais ainda dormiam. Foi o primeiro a chegar na escola, com os portões ainda fechados. Esperou pacientemente o dia preguiçoso assumir seus afazeres, desde as primeiras luzes do Sol quebrando a madrugada escura. Viu o leiteiro, o jornaleiro e todos trabalhadores madrugadores iniciarem suas lidas. O caseiro da escola abriu a porta e deu de cara com ele, mas não permitiu sua entrada. Chegaram as primeiras serventes e faxineiras, professores e diretores. Os alunos foram despencando às dúzias, os menores acompanhados de suas mães ou pais. A algazarra aumentava cada vez mais, mas nada de Eva. Ele começou a ficar ansioso, postado diante do portão e conferindo um a um para ter certeza que a veria. Pouco a pouco todos foram entrando, a gritaria foi silenciando, até que só restou ele e um silêncio fúnebre do lado de fora do colégio.

Mais tarde naquele dia, Anacleto soube, através de amigas das amigas de Eva, que ela havia partido com seus pais para uma nova vida em Fortaleza, no distante Ceará. Soube também que o motivo das brigas entre seus pais era ela, que não queria ir embora e deixar a escola para trás; que a mãe compreendia o sentimento da filha e por isso optava por ficar também, a ponto de discutir com o marido que era irredutível quanto a aceitar o novo emprego numa nova cidade. Era tão conflituosa a situação que estavam a ponto de se separar. Alguém muito próximo da família disse ainda que ontem havia acontecido um milagre. Ao voltar para casa, Eva estava alegre e radiante, dizendo que havia mudado de ideia e não via a hora de conhecer a nova casa, da nova cidade. Ninguém, nem ela mesma, conseguia explicar o que havia acontecido. Ele ouvia tudo como alguém que não escuta, vendo tudo como quem não enxerga, atento somente ao ribombar do vazio do seu coração.

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