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O Broche

Meu pai era um excelente marceneiro, muito requisitado. Trabalhava com instalações comerciais e residenciais, tendo uma clientela muito bem posicionada. Entre seus clientes havia muitos estrangeiros que aqui tinham chegado e constituído verdadeiras fortunas. Portugueses, italianos, espanhóis, árabes, judeus, alemães… Atendia a todos com grande respeito e qualidade, sempre deixando uma boa lembrança e sendo tratado com muito carinho. Muitas vezes ele era convidado para passar um fim de semana, junto com a família, numa casa de praia ou campo, e lá íamos nós, minha mãe, minhas duas irmãs, conhecer um pouco mais deste imensamente belo e natural país, do qual eu conhecia apenas alguns quarteirões do bairro da Mooca. É claro que meu pai não ia somente pra se divertir, aproveitava para fazer um ou outro pequeno serviço ou reparo e, desta forma uma mão lavava a outra.

Numa dessas vezes, fomos convidados por um senhor alemão, chamado Fritz, que possuía uma bela propriedade às margens da represa Billings. Não me lembro como chegávamos nos locais nessas pequenas viagens, que para mim pareciam ser infinitas. Mas lá estava eu, cercado de mato, água limpa e luz solar, espantado como um passarinho recém saído da gaiola. Havia uma bela e ampla casa, muito grande mesmo para um garoto de 8 anos que morava num quarto, sala e cozinha. A propriedade era muito bem cuidada, parecia uma pintura de folhas e frutos, intensamente brilhante e absurdamente colorida. Havia uma sinfonia de insetos formando o backing vocal perfeito para o canto dos pássaros que pipocavam aqui e acolá num ritmo constante e suave. Era quase um sonho… que viraria um pesadelo.

O senhor Fritz era um homem de estatura mediana, por volta de 1,75m, e magro, os cabelos eram castanhos mas o prateado já havia avançado fartamente. Destacavam-se mesmo os olhos, de um azul-cinza de expressão intrigante, que contrastavam muito com a aparência bonachona do restante do rosto. Tinha uma forma de se movimentar calculada, herança de um possível passado militar. Via-se que era acostumado ao comando, mas este já havia lhe escapado das mãos há muito tempo. Sobrou-lhe a esposa, Helga, de rosto encovado e bochechas salientes, a quem era possível tão somente os comandos básicos de uma relação a dois, dentro dos limites matrimoniais. Dona Helga, muito mais que ele, ficava feliz com visitas, raras ou quase inexistentes, nesta terra estranha e selvagem, tão longe do seu torrão bávaro. Nunca havia aceitado o modo como as coisas se deram, sair às pressas, no meio da noite, como criminosos. De lá, somente as notícias dos jornais, escritas para agradar quem pagasse melhor. Mas, pelo pouco que viu do trajeto de sua casa até o aeroporto e o que pôde ver pela janela do avião, a guerra havia destruído sua Alemanha querida.

Os dois homens trataram de resolver seus assuntos, enquanto minha mãe e minhas irmãs acompanharam dona Helga até a cozinha, que preparava uma receita de Pato com Laranja. Eu, que nunca tinha visto um pato pessoalmente, muito menos comido um, comecei a explorar o terreno, caçando coisas mais interessantes para uma criança fazer. Logo encontrei meu pai junto ao senhor Fritz, diante de um enorme anexo do lado direito da casa onde, imaginava eu, eram guardados carros, máquinas e equipamentos. Eles entram por uma porta larga e eu fui atrás. Havia bancadas de madeira sim, como numa oficina, mas o local mais parecia um biblioteca ou museu. Era extremamente limpo e organizado, com inúmeras estantes nas paredes, com muitos livros e caixas de diversos tamanhos, acabamentos e cores. Centenas de quadros de vidro com desenhos coloridos dos mais variados insetos, borboletas e mariposas. Havia gaveteiros enormes, onde diversos besouros mortos e espetados em alfinetes, flutuavam com as perninhas balançando no ar, numa espécie de dança imóvel e sem fim. A iluminação era propositalmente fraca, para proteger os tesouros que ali estavam da força destruidora da luz do sol. 

Aparentemente havia um ou outro reparo a ser feito numa estante, numa mesa ou num gaveteiro, e era por isso que os dois homens ali estavam e aquele não era o local nem a hora certa para um menino curioso estar. Meu pai me sugeriu com um olhar, duas palavras e um leve empurrão, que eu saísse para brincar, mas tomasse cuidado com a água, sendo proibido de me aproximar a menos de 5 metros da represa. Contrariado, de orgulho ferido, zanzei a esmo até reparar que havia alguns pequenos montes de terra, de diversos tamanhos, como se fossem baldes malfeitos emborcados ao chão. Imaginei que eram duro e rígidos e fui logo metendo o pé sobre um dos menores, para me elevar acima do chão. Para minha surpresa, a terra cedeu e meu pé afundou sobre um formigueiro repleto de formigas minúsculas e, agora, ensandecidas. Senti a primeira picada quando já estava com a canela repleta delas e saí correndo em direção a água berrando como um louco. Todos vieram em meu socorro que, naquele momento, já tinha a água no meu umbigo e não sabia se chorava de dor ou de medo de me afogar. Meu pai me agarrou pelo braço, me colocando em terra firme. Passado o susto, todos se puseram a rir, menos eu, que estava emburrado e envergonhado com a situação.

Logo após o almoço, enquanto as mulheres cuidavam da louça e os homens saboreavam um café, voltei ao local do incidente, disposto a verificar a extensão do estrago no formigueiro. Para minha surpresa ele estava vazio! Suas moradoras pelo jeito tinham desistido de continuar por lá, deixando as entranhas da construção expostas ao vento. Não me dei por vencido e, com todo cuidado e temor que a situação exigia, peguei uma vara comprida como um cabo de vassoura e me pus a cutucar e cavucar o formigueiro em busca de formigas remanescentes. Nada. Vazio. De repente, uma estocada bateu em algo mais duro, com um som de toque diferente. Mexi e arrastei um pouco a terra de um lado para o outro e vi brotar um objeto amarelado, pontudo. Cheguei bem perto para olhar e, esquecendo por um instante a dor das picadas, cavei rapidamente com as mãos até que tirei de dentro da terra um objeto semelhante a um broche, num formato estranho para mim, como se fosse uma ave de asas abertas, carregando um círculo pelas patas. Levei o meu tesouro até a água e, assim que comecei a lavar e retirar o barro firmemente grudado, seu brilho intenso, dourado, surgiu instantaneamente. Enxuguei e poli na minha camiseta branca e quando me voltei para correr na direção da casa e contar a novidade para todos, dei de cara com o senhor Fritz que, com seus olhos azuis-cinza, agora mortos e impessoais, me olhava mortalmente. Fiquei petrificado com aquele olhar carregado de ódio, de quem representava 6 milhões de mortes brutais e sem sentido. Senti um frio que me gelou os ossos, me atravessou a alma e me manteve sob controle. Lentamente dei três passos em sua direção e entreguei o broche em suas mãos. Ele guardou o objeto no bolso de sua calça, virou-se e me deixou lá, boquiaberto e mudo.

Ainda hoje, mais de 5 décadas depois, sinto ânsia ao lembrar daqueles olhos, e me culpo, por não reagir como devia, por ter aceitado passivamente suas ordens, por compactuar, seja lá de que forma, com todos seus possíveis crimes, representados por um broche.

CaMaSa

Fiapos

Fiapos

 

são coisas pequenas

incomodam embaraçam

enfiados como uma tanga

fio dental entre os dentes

são fiapos de manga

 

são fibras terrenas

ferem coçam embaçam

voam sopradas pelo vento

tiram lágrimas dos olhos

são fiapos de pano

 

são crianças amenas

riem alegram encantam

brotam de nós com força

viverão o futuro distante

são fiapos de gente

 

são razões plenas

ensinam soltam libertam

quando estamos no escuro

iluminam todo o universo

são fiapos de luz

CaMaSa

Cortesia

Cortesia

 

Eu já fui o mais jovem um dia

à minha volta só mais velhos havia

mas enquanto o tempo transcorria

mais jovens ao meu redor via

 

Eu já fui repleto de rebeldia

toda regra todo símbolo desfazia

mas não encontrava nisso alegria

só crescia a minha toxemia

 

Eu já fui um sonho de alforria

crendo ele ser só pra quem morria

mas encontrar quem me revelaria

era bem maior do que eu cria

 

Eu já fui buscar o que não via

sem saber o que realmente queria

mas a vida me cedeu uma cortesia

conhecer a paz e sua energia

CaMaSa

2020

Eram 10 horas da noite de uma quarta-feira qualquer. Eu voltava pra casa e resolvi parar numa velha padaria conhecida do bairro pra comer alguma coisa. Não se passaram nem 5 minutos e entrou pela porta, vindo em minha direção, meu amigo Tampa, que eu não via há mais de 20 anos. Seu nome era Carlos Coutinho, mas ganhou o apelido desde muito novo, porque abria as garrafas de refrigerantes, Guaraná, Crush, Grapette, com os dentes! Sempre foi muito engraçado e tinha um jeito especial de contar estórias que prendiam a atenção imediatamente. Eu fui logo cumprimentando:

– Ô pai, preciso conversar com você…

– É problema de sexo, filho? Ele me respondeu, recordando sua história particular, contada há mais de 40 anos.

Caímos na gargalhada e ele engasgou, tossindo forte e fazendo voar pelos ares o pivô dos dois dentes da frente, que saíram quicando pelo chão como uma bola de pingue-pongue, com o Tampa correndo atrás rindo desesperado. Quando conseguimos voltar a respirar normalmente, falamos um pouco sobre a vida, o que cada um vinha fazendo, até que ele apontou para sua mesa, onde uma mulher o esperava. Nos despedimos com as promessas de sempre, manter contato e coisa e tal.

Quando me voltei para o meu lanche no balcão, notei uma jovem me encarando, que logo em seguida perguntou:

– Você conhece o Tampa?

– Sim, respondi, há mais de 40 anos e…

– Ele é um grande sacana. É meu pai.

Num segundo toda minha dispersão e alegria voltou-se para o olhos daquela bela moça, tristes e amargurados, quase revoltados, em busca de respostas que não lhe dera a vida. Refleti sobre nossa criação, a maneira como fomos despreparados para a vida, nossos pais totalmente atarefados, buscando o sustento da família com suor, muito suor… A sexualidade era tabu e sua educação era conseguida nas ruas, nos relatos dos garotos mais velhos e nos livrinhos de catecismo. Crescíamos poderosos, cheios de vontade e testosterona, inconsequentes e sem nenhuma responsabilidade sobre os sentimentos alheios, gravidez interrompida ou vidas que vingassem. Avaliei o que teria sido minha vida se eu tivesse tirado a sorte grande, ganhasse um bebê indesejado, parido pela dona qualquer de um desejo meu. Senti alívio, senti compaixão. Tentei explicar para aquela moça quanta beleza existe nesta vida, que é um presente, que seja qual for nosso histórico, a qualquer momento podemos tomar a decisão de tomar as rédeas em nossa mãos e conduzir nosso destino em direção à realização e à felicidade. Esta é simples, inerente, está dentro de nós e cabe a cada um torná-la verdadeira.

Ela me olhou como quem diz, você está falando isso porque quer defender seu amigo, virou-se e saiu para a noite quente e mal iluminada. Seguirá seu próprio caminho, único entre mais de 7 bilhões de seres humanos na face da Terra, e nada, a não ser ela mesma, poderá compreender o significado desta passagem, a gloriosa experiência de ser uma parte, infinitamente pequena deste todo, infinitamente grande, inteligente e bom. Que é através dos olhos dela que ele se vê, cria e se admira, fazendo criador e criatura um só, indivisível.

Paguei e saí do local, acenando à distância para meu amigo, que retribuiu o aceno com um sorriso largo, destacado pelo vão dos dois dentes da frente que ele ainda não havia recolocado no lugar. Provavelmente sem saber que era dele mais uma filha deste mundo, porque nunca quis saber ou não teve a chance. Eram os anos 60/70, cheios de pouca informação, sexo, drogas e roquenrol.

Hoje seria diferente. Os pais conversam com seus filhos sobre todos os assuntos, preparando-os para viverem em sociedade com respeito e amor ao próximo. As escolas, desde o ensino fundamental, possuem em seus currículos disciplinas que tratam de aspectos fundamentais para a compreensão da nossa sexualidade e desenvolvimento com habilidade e capacidade pedagógica, preparando os futuros adolescentes para os momentos de transformação da puberdade. O resultado é que nossos jovens chegam às universidades conscientes e bem informados, capacitados para tomar as decisões que moldaram suas carreiras profissionais e as escolhas afetivas para a formação de núcleos familiares harmoniosos.

Benditos anos 2020!

CaMaSa

Experiência

Experiência

 

Tenho consciência 

ninguém pode vestir 

os meus sapatos 

minhas roupas 

minha pele

nela estão as marcas

as profundas rugas

o que aprendi

o que vi e vivi

força que impele

mesmo se pudesse 

mostrar o caminho 

ensinar o truque 

dizer o nome 

que revele

a ninguém mais serve

cada um segue o curso 

até o fim absoluto

ou a vida eterna

que a morte sele

CaMaSa