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Capítulo 4: O Beijo Roubado

O clima era tenso e pesado. Estavam presentes meu nonno Giovanni, a irmã da minha mãe, zia Onorina, e seu marido, Antonio Rizzo, que trabalhava na Alemanha. Minha nonna Grazia chorava e soluçava alto num canto da sala, amparada pela irmã mais velha do meu pai, zia Veneranda. Sentado, ruminando pensamentos e palavras desconexas estava meu nonno Cármine, ladeado pelas filhas, Élida e Anna. Vincenzo, o mais novo dos irmãos do meu pai, estava na Venezuela, trabalhando como pedreiro. Antônio estava no Brasil, mas de lá não chegavam notícias há muito tempo! Padre Benedetto já estava longe, tinha cumprido sua missão.

Minha mãe estava encostada no batente da porta de entrada, no alto da escada, com o olhar perdido e distante. Nos degraus, brincando inocentemente estavam minhas irmãs, Rachel e Grazia. A conversa entre as duas atraiu a atenção de minha mãe que, por um momento, a levou dali, vendo-se ela mesma criança e despreocupada. Olhou com carinho para as filhas, como se fosse uma delas.

Rachel era fofinha, calma e tranquila. Tinha os cabelos lisos, escuros, as bochechas rosadas. Ela não sabia se tinham esse tom naturalmente ou se eram resultado dos beliscões carinhosos que todos faziam questão de lhe dar. Minha irmã aceitava essas manifestações sempre resignada, incapaz de dar um pio. Onde era colocada ficava, concentrada em si mesma ou em qualquer atividade manual que lhe caísse em mãos. Naquela altura, com 4 para 5 anos de idade, já era hábil no crochê.

A pequena Grazia, magricela e loirinha, era um terremoto! Ágil, saltitante, irrequieta, era a versão oposta exata da irmã. Eram necessários sempre dois pares de olhos sobre ela, de dia ou de noite. Nascera sem a presença do pai, não que isso fosse fazer grande diferença, mas acabara criando uma relação paterna com meu avô, que era um homem fino e sensível, de modos calmos e pacíficos. Com ele minha irmã se acalmava, esforçava-se para entendê-lo e conseguia aprender as primeiras letras e números, tão difíceis de assimilar na escolinha das freiras. Ali vivia diabruras, derrubando latas, espalhando a comida pela mesa, pisoteando flores no jardim, escalando a pilha de roupa branca, lavada e passada, e derrubando pelo chão. Não o fazia por mal. Tinha herdado esse gênio arteiro e inquieto do pai.

O pai das suas meninas… Lembrou-se do dia das núpcias. A cerimônia na igreja conduzida pelo padre Benedetto, em latim. O coral, primeiro entoando músicas sacras pomposas, depois finalizando com uma melodia leve, suave, até alegre. O sim envergonhado dele, expelido por um cutucão na barriga. Risos na igreja. O embaraço ao virar-se de costas para o altar, andar pela nave central, sorrindo para as pessoas. Os gritos de exaltação na porta e a procissão seguindo os noivos até a praça central, onde mesas improvisadas aguardavam os noivos e convidados com o que de melhor a bondade dos seus corações ali depositara. Havia música também, as belas canções napolitanas elevando a moral de todos, apesar dos tempos difíceis.

Pensou e avaliou suas opções. Já se haviam passado 4 anos desde que eles acordaram naquela manhã com a decisão tomada, a pequena e gasta mala pronta, com algumas peças de roupa, meia dúzia de ferramentas pequenas, um pouco de queijo, um pouco de trigo, um pouco de dor e alguma esperança. Nada era certo, como juras de amor juvenil, ardentes, voláteis, inseguras.

Dentro de casa a temperatura subia e descia conforme minha nonna chorava e blasfemava, acusando os céus e a má sorte. Alcançava um pico de dor e sofrimento altíssimo e despencava logo em seguida, num estado de catatonia. Nonno Giovanni lamentava em silêncio, sabendo que não poderia tomar uma decisão pela filha. Cada um deve carregar a própria cruz. Os demais murmuravam baixinho, preparavam o café e aguardavam uma solução que, seja qual fosse, ninguém ali gostaria de enfrentar.

A pequena Grazia pulou a irmã sentada no degrau, caindo de encontro à mãe que as observava um lance acima. Pegou a menina nos braços que, com as mãozinhas no rosto da mãe, disse: – Mamma, non piange…

Que dor! Que raiva! Se ficasse, aos 23 anos, teria sua vida marcada para sempre no seu pequeno vilarejo, como as viúvas da guerra que não receberam os corpos de seus maridos para enterrar o passado e iniciar uma nova etapa da vida. Viveria com a sombra de um retorno, isolada, excluída, como alguém que sofria de uma doença contagiosa. Se partisse, provavelmente partiria, seu mundo, os seus, seu coração, sua vida. Enfrentaria a distância, uma terra estranha, que não falava sua língua e não entendia seu sofrimento, a dor da separação. Se ficasse, suas meninas não teriam um pai. Se partisse, elas não teriam os avós, tios e tias, primos e todos aqueles que as amavam como suas.

No momento, para o sustento das filhas, além do trabalho no campo, plantando, colhendo, cuidando dos animais, do trabalho em casa, da costura pra fora, ajudando a irmã, havia encontrado um trabalho para o governo, carregando pedras na cabeça para as obras de reconstrução das estradas do município. Ela jamais imaginaria, que esse trabalho de 6 meses lhe renderia uma aposentadoria na fase madura da vida, paga pelo governo italiano, maior do que o governo brasileiro viria a pagar por 35 anos de trabalho.

Na sala, nos intervalos dos gritos e uivos dilacerantes, já se discutia documentos, passagens, valores, preparativos, a logística do transporte. A comunicação com os parentes ali estabelecidos, as possibilidades de acomodação, o retorno ou não. Como quando alguém morre mas a vida se impõe e segue adiante, havia vozes práticas e lúcidas, tentando avaliar a situação pelos prós e contras para a mãe, as filhas, os mais próximos que aqui ficariam, as perdas e os ganhos. Houve momentos de acusação, de apontar os dedos em direção aos culpados por tudo, por aquilo e pelo futuro. E, em meio aos gritos, abraços de desculpas, de conforto, de conformação.

Minha mãe olhou nos olhos da sua filhinha em seu colo, bem no fundo, e viu seu marido, na época de namoro, olhando para ela, nessa mesma escada, de uma maneira tão intensa e estranha, tão diferente e urgente, enquanto ela falava pelos cotovelos, sobre seus sonhos e desejos, à meia luz do início de uma noite quente, enquanto meu pai se aproximava lentamente, daquela boca dançante, e depois muito rapidamente, na velocidade da luz, beijou-a rapidamente. Ela o empurrou com força, virou-se e subiu as escadas correndo, bateu a porta atrás de si com o coração ribombando, de vergonha e prazer. Não falou com meu pai por 3 meses, mas aquele momento definiu quem ele era, quem ela era.

De repente, acordou dos seus devaneios, entrou na sala encarando a todos que a olhavam atentamente e disse: – Ho già deciso. Vado in Brasile.

CaMaSa

Capítulo 3: Um Novo Mundo

O padre Benedetto saiu correndo pela sacristia atravessando a nave central em direção às portas da igreja. Passou como um raio pelas beatas que ficaram com as mãos das saudações paradas no ar, perplexas. Nunca viram o santo roliço padre correr tanto assim! Nem mesmo na direção de um belo prato de Fusilli acompanhado de um copo de vinho… Aí tem! E seguiram o reverendo que balançava pelos ares a batina preta. Felitto é uma cidade pequena, tem o mesmo número de habitantes, a cerca de dois mil, há pelos menos 1.000 anos. Um padre correndo com meia dúzia de beatas atrás não passaria despercebido mesmo. Assim, pouco a pouco, uma crescente caravana, ávida por informações, chegou à porta da casa dos meus avós.

Meu nonno Giovanni abriu a porta e, com grande espanto, viu o sacerdote no alto da escada, todo aflito e suado, já amparado por membros da comitiva, que só aumentava. Convidou-o a entrar e, junto com ele, entraram algumas das autoridades locais já presentes: o prefeito e o vice, o guarda municipal, o médico, o diretor da escola, além de dois tios, três primos e seis vizinhas. A casa era muito humilde e pequena, construída pelas pedras milenares que estavam ali desde sempre, composta logo na entrada por um único ambiente que fazia as vezes de sala, cozinha com fogão a lenha e sala de almoço. Havia ainda dois quartos e um banheiro anexo, desafiador nos dias frios. Deram alguns minutos para o santo padre, que retomava o fôlego lentamente, sentado na melhor cadeira disponível. Quando terminou o copo de vinho oferecido, de uma golada, puxou um envelope do bolso da batina e retirou a folha de papel timbrado da diocese de São Paulo, Brasil. Olhou ao redor, fixou os olhos na minha mãe e pôs-se a ler em tom solene:

“Ao pároco da cidade de Felitto, província de Salerno, Itália,

Recebemos em nossa diocese, na Igreja Santa Margarida dos Aflitos, no bairro da Cachoeira Seca, cidade de São Paulo, um pedido de solicitação de casamento entre Maria Bernarda Auxiliadora Silva, brasileira, natural de Amaralândia, MG, e Pasqualino Santangelo, italiano, natural de Felitto, Salerno, Itália.

Gostaríamos de saber, por parte de Vossa Reverendíssima, se há algum impedimento para esse enlace?

Mui respeitosamente…”

Ahhh! O Brasil… O Brasil…

Quando meu pai se viu um homem feito, casado, com uma filha de colo e outra a caminho, trabalhando em sua pequena “falegnameria“, fazendo todo tipo de serviço com a madeira conseguida com as próprias mãos a quilômetros, em troca de comida e alguns centavos, sem perspectiva alguma de melhora nos próximos séculos, destruída que estava a Europa do pós-Guerra, tomou-se de encanto pelos rumores de uma vida melhor vindos da América. Muitos dali já haviam partido para diversos pontos do planeta, alguns voltando para suas famílias com recursos, valores que não seriam conseguidos numa vida naquele lugar. Quanto mais a miséria e dificuldade aumentavam, cresciam os louvores de oportunidades e riqueza de terras exóticas, inexploradas, onde um homem sozinho poderia conseguir independência. Havia programas do governo incentivando os cidadãos a tomarem esse rumo, aliviando, dessa maneira, a carga administrativa de um Estado dilacerado pelas más escolhas. Um desses programas chegou a Felitto e arrastou consigo um punhado de homens jovens e corajosos dispostos a vencer a pobreza. Entre eles estava meu pai.

Foram até Nápoles, onde um navio aguardava atracado. Era tanta gente no porto, filas enormes serpenteando em direção às escadas inferiores do navio, que dava a impressão que a Itália ficaria vazia! Gente do Norte e do Sul, muitos do sul, a grande maioria do sul, espremiam-se nervosamente, aguardando a vez de subir a bordo. Muitos, como meu pai, jamais haviam saído de suas cidades, mas, como dizia o dito popular, Il Mondo é Paese, significando que não importa quão longe se está do seu pequeno vilarejo, ele sempre estará com você.

Assim que, 17 horas depois de chegar ao porto, meu pai estava a bordo de um navio velho, mal cuidado e carcomido pelo tempo e o sal marinho, com a proa apontada diretamente para a Estátua da Liberdade de uma América rica e promissora. Algumas horas depois, com as costas da Europa já pela proa, a embarcação começou a desviar lentamente à esquerda, numa curva descendente que só terminou 15 dias depois, em águas brasileiras, bem ao sul, mais precisamente no Porto de Santos.

Dio mio, che bello!” O impacto deste país sobre um imigrante é avassalador. Eram os anos 50, tudo ainda era muito virgem, muito natural. O calor, a brisa marinha, o verde e amarelo da vegetação… As casas não eram pesadas, de pedra, mas de tijolos, as mais elegantes rebocadas e pintadas. Pareciam mover-se com o vento, como os coqueiros dançantes das praias de areia branquinha, avistadas do navio antes de atracar. Separavam o verde transparente das águas do mar, daquele de tom mais forte da vegetação que descia do alto das montanhas distantes.

Por um momento, sentiu que havia feito a escolha certa, com o coração expandindo-se num contentamento jamais sentido. Amplo!

Os espaços… Tudo era muito espaçoso, à vontade. As pessoas também, mais afáveis, sorridentes. As mulheres, que lindas eram as mulheres! Claro, não pra ele que era casado, com uma filha de 3 anos e uma por nascer. Não pra ele que acabara de chegar, e logo rumaria para a cidade de São Paulo, de clima um pouco mais frio, muito bom, e ainda não havia sentido os ataques da solidão, do vazio, da nostalgia que um dia se transformaria em saudade.

Toda essa alegria de viver era para a gente daqui, com seus tons de pele multicoloridos que iam do branco da lua até o negror do carvão! Mas esses tons variados eram extremamente apreciáveis nas moças que passavam pelas ruas e avenidas, despreocupadas e sorridentes, cada vez mais convidativas, à medida que o tempo ia passando e o desejo de companhia ia aumentando. Afinal, naquela época o homem ainda tinha certas garantias e o dever de provar sua masculinidade. E, pensando assim, vencido pela distância, pelos dias, semanas e meses e anos, pelo tempo e a saudade, que naquela altura já havia se apresentado numa forma muito além da nostalgia, bem dolorosa, sucumbiu. E deixou-se levar pelos prazeres de um novo mundo!

CaMaSa

Capítulo 2: O casamento da Mãe

No dia 23 de abril de 1930, Deus trouxe ao mundo uma força da natureza. Juntou um pequeno punhado de elementos abundantes em todo o vasto Universo, Carbono, Hidrogênio, Nitrogênio, Cálcio, Fósforo e Potássio, adicionou gotas de água e, após 9 meses de gestação no ventre de minha nonna Grazia, presenteou o mundo com minha mãe. A pequena, segunda naquela família, veio ao mundo a plenos pulmões. Berrava incessantemente, rivalizando com o badalar dos sinos da igreja matriz que, justo naquele dia, repicava a saudação dos mortos noite adentro, em louvor a um cidadão falecido. Três toques agudos: Tééiiiinnn, Tééiiiinnn, Tééiiiinnn…; um grave, Tóóóuuóónnnnn… anunciando aos céus a chegada de mais uma alma de Felitto.

Meu nonno Giovanni, homem culto e educado, leitor dos clássicos e figura obrigatória dos quadros administrativos do município, registrou, ele próprio, sua caçula com o expressivo nome Faustina. Naqueles tempos, de tamanha miséria e de uma Itália abandonada à própria sorte no pós-guerra, onde as funções administrativas não garantiam comida na mesa, luxo e fausto somente no nome.

A Primeira Grande Guerra havia quebrado a ilusão humana nos centros mais ricos e civilizados, ainda que não pudessem imaginar naquele momento o horror e a destruição em massa que a Segunda traria. No entanto, naquelas regiões perdidas e afastadas no Cilento, persistiram as fábulas e superstições trazidas pelas sombras da noite e imaginações férteis. Assim cresceu a pequena Faustina, ouvindo os relatos confirmadamente verdadeiros dos tios e avós, nascidos na época em que fadas e bruxas passeavam entre nós. Todos por ali sabiam que seu bisavô materno havia tido uma vida de prosperidade porque, certa vez, ao deparar-se com três moças belíssimas dormindo nuas à beira do rio, cobriu-as com palha, compadecido por elas, ali estendidas, castigadas pelo frio. Eram fadas! De súbito despertaram e, agradecidas puseram-se a chamar o rapaz que, assustado e envergonhado, pôs-se a correr. Até que uma delas tocou seu ombro e ele, desequilibrado, rolou por uma ribanceira, acordando somente algumas horas depois. Jamais faltou comida em sua casa!

De gênio forte e coração extremamente bondoso, minha mãe vivia correndo pelas estreitas vielas de pedra, de uma casa a outra, disposta a ajudar os velhinhos enfraquecidos pelo tempo e a fome, a tristeza e a solidão, oferecendo uma maçã, um sorriso, uma esperança…

Quando começou a frequentar a escola elementar, a única possível, foi levada a crer numa Itália orgulhosa e poderosa, descendente de um império romano rico e dominante, capaz de construir um novo futuro com ordem e disciplina, amor à Pátria, camisas pretas e discursos de grandeza de um líder pequeno, em estatura física e moral. A um náufrago não se pergunta a preferência da cor da boia, basta que o mantenha na linha da superfície.

E entre sonhos de uma nação e a bruta realidade dos homens, chegou minha mãe à Segunda Grande Guerra, na flor dos seus nove anos, vivendo-a pela apreensão dos relatos que chegavam pela boca dos que no meio dela estiveram e retornavam partidos, de corpo e alma. O mais próximo que aquela região esteve da guerra foi quando um avião de combate alemão espatifou-se sobre os campos de oliva, deixando apenas uma bomba desarmada, sem nenhum piloto sobrevivente. Um tio e dois primos, movidos pela urgência da fome, tentaram desmontar o artefato na esperança de colher a pólvora muito valiosa do seu interior. Explodiram com ela pelos ares, tendo seus corpos recolhidos aos pedaços pelo raio de 100 metros.

Em tempos de guerra, em tempos de paz, a juventude encontra os caminhos que levam às paixões. Inocentes no início, evoluem para sentimentos arrebatadores desses capazes de mover continentes. Minha mãe tinha certa queda pelos fracos e desvalidos e isso, naquela época, era o que não faltava. Apaixonou-se muito e intensamente, como fazem todas as meninas entre 9 e 14 anos. Bastava um olhar, uma palavra suave, um pedido de ajuda. Foram muitos Antonios, Francescos e Donatos. A todos dirigiu pensamentos, ilusões e sonhos de uma vida melhor, com filhos, muitos filhos e bem alimentados.

Até que um dia cruzou olhares com esse moço de olhos claros, cabelos espessos e jeito de ator de cinema, ainda que até então ela jamais tivesse colocado os pés num. Pensando bem, um galã de cinema não deveria ser tão baixinho, ter orelhas de abano e cara de cachorro pidão, mas, de alguma forma, ele despertou nela uma possibilidade. Só faltava encontrar uma forma de aproximação e ela encontrou uma saída muito criativa. Havia um fosso, um buraco de 1,50m no chão, entre um pequeno paiol abandonado e um estábulo de burros, no caminho entre a escola e sua casa. Por esse mesmo lugar, meu futuro pai passava todos os dias a caminho da marcenaria onde trabalhava como ajudante aprendiz. Numa tarde quente de verão, minha mãe fez cair, estrategicamente, um dos seus cadernos no fosso e se pôs a chorar a má sorte. Meu pai, que passava por ali, prontamente ofereceu ajuda, pulando no buraco. Antes mesmo de se abaixar para pegar o caderno, uma infestação de pulgas o atacou furiosamente, cobrindo suas pernas. Minha mãe gargalhava enquanto meu pai pulava e batia as mãos nas pernas para se livrar dos malditos insetos.

Com certeza ela correu muito mais que ele, que prometia matá-la se a alcançasse! Mas foi o bastante para que ele a visse entrando em sua casa e passasse a perambular por ali cada vez mais frequentemente, não para cometer um crime, mas para dar início a uma história de amor (?) que durou quase 70 anos. Em pouco tempo começaram a namorar, como se namorava naquela época, com garantidos mínimos 3 metros de distância e a companhia permanente de uma mãe, de um pai, de uma irmã, tia, primo ou seja lá o que fosse capaz de impedir mais do que alguns olhares.

Olhando assim, parece ser algo muito romântico e leve, mas, na verdade, era um arranjo de sobrevivência. Meu pai passou a frequentar diariamente a casa dos sogros, como um hóspede a quem se oferece o pouco que se tem e alguma roupa lavada. Como recompensa, minha mãe ganhou o privilégio de tecer mais, costurar mais, lavar, passar, cozinhar e fazer tudo o que já fazia com mais intensidade. Seu namorado, agora noivo e futuro marido, fortalecido e dominando o ofício, abriu o próprio negócio. Ela também alargara seus horizontes, transportando na cabeça as pranchas de madeira serradas na montanha e levadas até a marcenaria para confecção de móveis e caixões.

A festa de casamento durou 7 dias e teve todos os dois mil habitantes convidados. Todos, como sempre, colaboraram como podiam, levando ovos, leite, trigo, carnes, óleo, vinho e frutas… Tudo somado, junto e misturado, alimentou e saciou a todos, que dançaram e cantaram, desejando aos noivos um futuro feliz. Minha mãe acreditou nisso, não imaginando que em alguns anos embarcaria numa viagem de 14 dias de navio, em busca do marido que a deixara com duas filhas de colo, a menor delas que o pai não viu nascer. Desembarcou no porto de Santos, numa terra estranha que amou verdadeiramente, não com palavras doces pintadas de rosa, mas dando o melhor de si, em suor, lágrimas e sangue.

CaMaSa

Capítulo 1: A infância do Pai

Eram tempos difíceis aqueles, como são difíceis todos os tempos em que se possui apenas os braços e um pequeno quinhão de terra para tirar o sustento dos seus. Meu nonno, Cármine como eu, era um homem da terra, talhado para o trabalho árduo e uma família grande. Sabe-se lá como foram parar os Santangelos naquela região montanhosa da Itália, mas seja como for, ele era o único por lá e deu início ao seu legado.

A parte da terra que lhe cabia ficava numa pequena cidade, Felitto, província de Salerno, ao sul de Nápoles, uma região montanhosa e com minúsculos feudos espalhados em suas encostas. A face oeste de uma dessas montanhas é cortada pelo rio Calore, formando um monte a um terço de sua altura, separados por um profundo precipício escarpado. Ali, de frente para o vale, surgiu esse vilarejo construído pelas fartas e imensas pedras à disposição, protegido por torres estratégicas à frente e pelo despenhadeiro ao fundo. Os senhores viviam em castelos, servidos e alimentados por súditos que trabalhavam a terra nos campos ao redor da cidade e forneciam proteção aos aldeões em momentos de invasão. Da Idade Média ao entreguerras alguma coisa mudou, mas o insuficiente para o pobre deixar de ser pobre e o rico ficar menos rico.

Por paixão ou falta de cultura, faziam os mais humildes vários filhos, reproduzindo-se em quantidade. Meu avô fez seis enquanto a saúde de minha avó permitiu, de tal modo que, quando ela foi ao encontro da vida eterna, deixou-lhe uma escada de crianças que ia dos 2 aos 11 anos! Um homem sem sua esposa e tantos filhos, não alimenta sete bocas e, entre as mais tristes das soluções, optou pela locação de um deles, na esperança de que sobrasse alimento à mesa e que, com um pouco de sorte, ele encontrasse em outra família, outra cidade, outra região, o fim de sua fome.

Assim foi meu pai, o segundo da prole, do alto dos seus 9 anos, levado dali sem escolha, para cuidar dos porcos daqueles que, a partir de então, de sua força e vontade eram donos. A viagem é longa, contornando o sopé da montanha pela estradinha estreita e sinuosa, feita em carroça só até a primeira curva. Depois, longe dos olhos dos seus, a pé. No fim de um dia de viagem, exausto, cansado e faminto, chegou a essa terra estranha, em que um garoto assustado e magrelo está um pouco acima dos cães, mas muito abaixo dos porcos. Estes sim são importantes, dão carne e lucro, têm grande valor. À noite são guardados, protegidos das intempéries e dos predadores, de dia são soltos buscando o complemento à rala lavagem que lhes dão seus donos. De dia e de noite a eles se junta o menino, como se um deles fosse, sem perder de vista um minuto sequer, qualquer dos quarenta que formam a vara.

A vida entre os porcos e chiqueiros mal cheirosos não estimula o desenvolvimento de uma criança. A má alimentação, a indiferença e o descaso muito menos. Toda casa tem sua princesa e lá não era diferente. Moravam ali o pai, a mãe, o avô e a avó, os três filhos brutamontes, pouco mais inteligentes que os porcos, um tio agregado e a filha caçula, no auge de sua formosura dos quinze anos, com 1,42m de altura e 137 quilos. Mimada e gulosa, vivia para comer e desprezar os animais e quem deles cuidava. Encontrou naquele pequeno menino o passatempo predileto para preencher suas tardes preguiçosas. Numa dessas tardes, depois de proferir todos os impropérios do seu repertório por horas a fio, partiu para a importunação física, dando petelecos nas orelhas do meu pai. Um dos golpes atingiu o nervo, irritou a fera, explodiu a revolta, a raiva e o rancor. Virou-se de ímpeto, encarou a gigante e com olhos e punho fechados desferiu um golpe na mama direita da menina. Esta acusou o golpe, menos pela dor, mais por surpresa e humilhação. Deu um grito seguido de um choro sofrido e ininterrupto, sem lágrimas, cheio de raiva e ódio. Alto, tão alto que todos acudiram apavorados, imaginando a desgraça abatida sobre sua princesinha. Lá chegando e avaliando a situação, baixada a adrenalina e aliviados pela pouca gravidade, mas profundamente atingidos em sua honra e dignidade, decidiu-se por punição exemplar ao grande culpado pela situação.

Foi uma surra épica! Horas e horas de Bungt e Bangt, Bangt e Bungt, em que cada um naquela casa pode expressar sua frustração. Meu pai fez o que pôde para manter a dignidade e o orgulho, como qualquer garoto. Chorou, desculpou-se e implorou perdão aos berros. Quanto mais apanhava mais doía, e mais apanhava e mais gritava e mais doía. Acho que meu pai nunca roubou nada também!

Certamente, toda aquela dor e sofrimento não ficariam impunes e a vingança veio feito uma tempestade destruidora, sob a forma de porcos famintos atacando as plantações de abóboras e pepinos rasteiros. Destruíram tudo em pouco tempo, o bastante para não sobrar uma única planta intacta até que todos chegassem ao local. O pequeno calculou o tamanho da surra que viria e entre a morte certa e o frio da noite próxima, com seus muitos assombrados temores, preferiu arriscar.

Se voltasse pela estrada seria pego na certa. Teria que enfrentar a montanha assustadora, cheia de perigos, sons e vultos estranhos. Seguiu sem parar, movido pela força dos que lutam pela vida, a cada braçada, a cada passo, a cada golfada de ar. Seguiu por horas sem fim, com fome, com sede, com sono e dor. Subiu toda montanha e chegou ao topo sob os primeiros raios de sol. Avistou o Calore serpenteando lá embaixo e teve uma certeza: estava salvo!

Naquele mesmo dia, de tarde, o homem e seu filho mais velho bateram à porta da casa do meu avô. Questionaram, ofenderam e xingaram. Ameaçaram e juraram vingança. Meu nonno, impassível, ignorou-os por completo, virou-lhes as costas e foi ao encontro do mestre marceneiro, em que meu pai aprendeu seu ofício. Um dia, quem sabe, com isso, como se dizia por ali, Facceva L’America (Faria a América), e seu filho ganharia muito dinheiro!

E assim se fez. Pena ele não ter feito também a escola, onde teria aprendido a sutil diferença entre as Américas, do sul e do norte.

CaMaSa