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O Sol do Interior

O Sol quebrava forte na roça, encharcando a terra de suor e trabalho, deixando-a mais roxa. A lida tinha início muito antes da noite terminar e só tinha fim quando o negrume do céu imperava. Ele era o oitavo filho dos catorze que a mãe trouxera ao mundo, por enquanto. Viviam amontoados no barraco de madeira, entre pais e filhos, em média dez pessoas, porque os mais velhos caíam no mundo e eram substituídos pelos que nasciam. Não havia dor na partida nem alegria no nascimento. Eram fatos comuns, como o Sol escondendo a Lua e as estrelas ou o feijão brotando do chão. Chamava-se Oitávio, era mais novo que o irmão Sétimo e mais velho que a irmã Nonia e começou a cavar o sustento aos cinco anos de idade. Da vida só conhecia o que as orelhas escutavam e os olhos enxergavam.

Ninguém saberia dizer há quanto tempo a família vivia naquelas bandas, provavelmente seus antepassados chegaram com os primeiros navios negreiros e foram adquiridos pelos grandes fazendeiros da região noroeste do Paraná. Quando os ares da libertação chegaram à região, alguns ex-escravos permaneceram por ali e herdaram, pelo uso contínuo e abandono dos proprietários, pequenos pedaços de terra onde plantavam a subsistência. Permaneceram isolados do mundo até a fundação do município de Santa Isabel do Ivaí, que teve sua fundação devida, sobretudo, aos diversos fluxos demográficos provenientes do Ciclo Cafeeiro do início do século XX no Estado do Paraná.

Entre 1948 e 1950, um grupo de desbravadores resolveu constituir uma companhia territorial com a finalidade de lotear e povoar a ‘Gleba 19’ da então ‘Colônia de Paranavaí’, justamente aproveitando o fluxo migratório provocado pela recente fundação desta. A empresa recebeu a denominação de “Companhia Imobiliária e Colonizadora Santa Isabel do Ivaí” por intermédio de um de seus gerentes ‘Alberico Marques Ferreira’, pois sua mãe se chamava Isabel e havia falecido naquele ano. O loteamento seguiu um plano técnico previamente traçado, iniciando-se com a venda das datas, acarretando no território um grande fluxo de migrantes tanto no perímetro urbano como na zona rural. Criado através da ‘Lei Estadual n° 253 de 26 de novembro de 1954’, o município foi instalado em 22 de novembro de 1955, desmembrado-se então de Paranavaí.

Alheio à história da nova cidade, Oitávio seguia a rotina familiar de sobrevivência nas zonas rurais apartadas do mundo urbano, arando, plantando e cultivando com as mãos cada vez mais calejadas o feijão, o milho e as raízes que o estômago pudesse digerir. Não tinha contato com ninguém além dos pais e irmãos, vivendo por conta dos parcos recursos, um severo código disciplinar de obediência. Uma das poucas diversões era a caça de passarinhos. Fazer armadilhas nas horas vagas, com varas de bambu atadas com fibras vegetais para pegar algum tiziu, era seu passatempo predileto. A mãe ralhava com ele, prevendo perigo.

Certa vez, não dando ouvidos à mãe, embrenhou-se no mato alto para caçar. Armou a arapuca no pé de uma árvore baixa e trepou num galho para aguardar uma presa. O dia ainda estava a uma hora de distância e logo a excitação transformou-se em cansaço. Cochilou por um breve instante, o suficiente para pender de lado e despencar de cima do galho. Caiu de cara na própria armadilha, rasgando a bochecha direita numa lasca de bambu. O corte largo abriu uma segunda boca ao lado da sua, jorrando sangue como das galinhas que sua mãe abatia com um golpe certeiro no pescoço. Correu para os pais, chorando e gritando apavorado, certo de que ia morrer. O pai o pegou no colo com um lençol enrolado na cabeça da criança e correu em disparada com o velho pangaré e o filho a tiracolo na direção do posto de saúde da cidade recém-criada.

Era a primeira vez que ele deixava sua casa e via outras construções, outras pessoas. Não foi a melhor maneira de conhecer outros seres humanos. Chorando e gemendo, assustado e envergonhado, submeteu-se aos procedimentos de urgência que os atendentes aplicavam com todas as dificuldades que os recursos mínimos do local criavam. Desinfetaram o local e costuraram o rasgo de 14 pontos da melhor forma possível, deixando uma cicatriz bem evidente e uma lição inesquecível. Na volta para casa, sob efeito dos anestésicos, pôde observar a cidade com suas casas e armazéns, praças e jardins bem cuidados. A topografia plana mostrava a construção mais alta do lugar, uma igreja e sua torre com não mais de quatro andares de altura, encimada por uma cruz. Chegou em casa temeroso da sova da mãe mas foi recebido por um abraço carinhoso. No dia seguinte retomou a rotina de trabalho, mas agora, sempre que podia, fugia para a cidade em busca de amizade e aprendizado, seguindo assim até os 17 anos, quando seu irmão mais velho, Segundio voltou para casa.

Era a primeira vez que um dos irmãos voltava para ver a família e este voltou falante e cheio de novidades. Trouxe lembranças simples para todos e até uma pequena quantidade de dinheiro para os pais. Contou que havia conhecido muitos lugares e estava estabelecido numa região próspera e montanhosa em São Paulo, nas proximidades de Minas Gerais. Deixou todos muito encantados, mas especialmente Oitávio, quando disse que lá se podia trabalhar debaixo da sombra servindo comida para as pessoas! 

Oitávio pediu permissão para os pais, despediu-se de todos e seguiu viagem com o irmão em direção a esse local encantado que tinha muitas possibilidades e um negócio chamado Hotel, que ele não fazia a menor ideia do que seria. Chegaram numa região aprazível e fresca, com muita água, de altos e baixos, muito diferente do perfil plano e achatado de sua terra natal. O tal Hotel era um prédio alto de 10 andares, cercado por várias construções incríveis e lagos de água azul, sem peixes, onde pessoas seminuas nadavam alegremente. Seu irmão o apresentou a diversos colegas e ao chefe, que o contratou como aprendiz, lavando pratos e panelas que vinham do imenso e movimentado restaurante. Aos poucos entendeu o funcionamento de tudo e passou a trabalhar como garçom, servindo comida e bebidas aos hóspedes, na sombra!

Conheceu muitas pessoas que vinham de todas as regiões do Brasil e do mundo, aprendendo sempre com cada um deles. Certa vez o escalaram para atender um cliente especial, que nunca fazia as refeições fora do quarto. Levou os pratos especialmente preparados sem carne e água mineral ao número da habitação indicada, tocou a campainha e aguardou. A porta foi aberta por um homem de estatura baixa, forte, de pele morena e traços orientais, lembrando um japonês. Soube depois que era da Índia, distante e místico país do outro lado do mundo. O hóspede, no entanto, falava inglês e Oitávio, com o que havia aprendido nos últimos anos atendendo estrangeiros, conseguiu comunicar-se com ele que, aliás, falava em letras de forma. Sentiu-se tão à vontade na presença de pessoa tão singular que não percebeu que já estava no quarto a mais tempo que devia. Isso não pareceu perturbar o hóspede que aparentemente estava lisonjeado com a situação e, para confirmar essa impressão, convidou-o para ver um quadro que estava pintando numa tela sobre um cavalete de madeira. Ele ficou surpreso com a beleza dos traços e cores do que parecia ser uma flor branca flutuando num fundo azulado.

De repente percebeu que sua hora já havia dado e despediu-se reverente, tocando a mão do outro com respeito e delicadeza. Comentou com os colegas sobre o homem que conhecera, mas ninguém o tinha visto ainda. Perguntando aos demais hóspedes, soube que ele faria uma palestra na cidade, em outro hotel, nessa mesma noite. Informaram também que o acesso era gratuito, que haveria tradução para o português, bastando somente se apresentar no local com antecedência para retirar os fones de ouvido. Curioso, pediu a um colega que o substituísse à noite, e seguiu para o local do evento de banho tomado e coração aberto.

No enorme salão, quase mil pessoas, a grande maioria hóspedes atendidos por ele no hotel, acomodavam-se nas cadeiras num rumor de expectativa agradável. Quando as luzes apagaram fez-se um grande silêncio, quebrado por uma explosão de aplausos quando o palestrante apareceu no palco. Humildemente ele pediu a todos que se sentassem e começou a falar de uma maneira incrivelmente simples sobre coisas complexas como a Vida, a Paz e o Autoconhecimento. Era tão claro que Oitávio tinha a impressão que nem precisaria usar o equipamento de tradução! Nas pausas de suas falas, o silêncio era total, numa atitude de muito respeito e admiração da plateia. Ao final, o orador despediu-se alegremente, deixando a todos com o coração leve e repleto de esperança.

O evento deixou Oitávio com um profundo sentimento de compreensão, uma luz solar interior a qual ele jamais tentou explicar para alguém ou para si mesmo. Entendeu a mensagem, aceitou o presente e guardou-o no coração como um tesouro muito valioso e único, só seu, mas que é expresso no tratamento que dispensa aos hóspedes, sempre amável e gentil.

CaMaSa

Século

Ele acordou com o som do despertador do celular indicando as 7h31m do dia 27 de abril de 2058. Há décadas se propusera esse horário para pular da cama, mas geralmente acordava antes. Não nesse dia. Foi o beep-beep intermitente do aparelho eletrônico que o tirou do mundo dos sonhos. Completava 100 anos de idade, um século! Mesmo então, era privilégio para poucos. Havia aqueles que possuíam uma constituição naturalmente resistente para suportar a passagem do tempo, e havia os que eram mantidos pela biotecnologia disponível a um custo muito alto. Esse era seu caso. Fisicamente saudável à beira da perfeição, vinha perdendo aceleradamente nos últimos tempos, no entanto, a ferramenta mais importante de todas: a memória.

Ainda morava na cobertura do seu prédio de 52 andares da Avenida Paulista. De lá, tinha uma vista panorâmica de 360º de toda São Paulo, a capital do seu império particular que se estendia para além dos limites da cidade, do país e do mundo. Nas duas últimas décadas porém, tudo isso tinha perdido a pujança, mostrando sinais de decadência por toda parte. O edifício, antes servido por um conjunto de 12 elevadores super-rápidos, agora tinha somente o seu, particular, atendendo sua moradia. Nenhum dos andares estava ocupado por escritórios de representação das empresas multinacionais mais poderosas do mundo, mas por viciados e sem-teto marginalizados pela sociedade. Tudo era decrépito, com paredes descascadas e sujas, lixo acumulado por todo lugar e um malcheiroso odor que somente os seres humanos são capazes de produzir. Não havia água nem eletricidade no prédio todo, exceto para sua cobertura que se mantinha limpa e conservada graças aos seus últimos serviçais.

Eram decorridos pelo menos 12 anos desde que havia recebido sua última visita social. A partir de então, não mais recebeu ninguém nem saiu de casa, tendo uma relação com seus multibilionários interesses no mundo, de forma totalmente virtual. Quando percebeu que a memória começou a dar as primeiras falhadas, consultou os maiores especialistas e instituições, recebendo de todos o mesmo diagnóstico: a perda era irreversível e era uma questão de tempo para se dar a amnésia total. Ele compreendeu que seria uma baleia ferida no mundo das transações bilionárias no oceano financeiro infestado de tubarões, ávidos por sangue. Tratou de concentrar toda sua riqueza em fundos de investimento suíços, absolutamente seguros, confiáveis e de total liquidez, caso necessário. Retirou de circulação da economia mundial o equivalente a 12% dos ativos, da noite para o dia, provocando crises catastróficas até nos países mais ricos e estruturados economicamente, gerando falências em massa e hordas numericamente inimagináveis de gente faminta. A decadência que o cercava era consequência direta disso.

A data de hoje, no entanto, era especial. Tinha planejado com antecedência e dado ordens específicas ao mordomo que organizou tudo com perfeição. Os monitores dos computadores reluziam o número cem, havia cartazes espalhados por todo apartamento estampando o aviso de aniversário de 100 anos, de todos os tamanhos e cores, para recordá-lo da importância desse momento e dos compromissos e promessas que havia feito a si mesmo para realizar nesse dia. Tomou um café da manhã frugal preparado pela equipe de cozinheiros e, logo após, sentou-se diante do seu computador pessoal, que já o aguardava ligado com a tela de login esperando por sua senha. Refletiu por alguns instantes sem saber o que fazer e, antes que entrasse em desespero, seu secretário particular surgiu ao seu lado e pegou sua mão direita, numa espécie de cumprimento formal. Na junção de seus indicadores surgiu uma sequência de caracteres tatuados formando a palavra-passe para iniciar o aparelho. Nele encontrou instruções para o “Aniversário de 100 anos”, com orientações para imprimir o documento chamado “Liberdade” e o endereço do colégio Firmino de Proença, na Rua da Mooca.

Ele trocou o pijama por um terno de bom caimento e demorou alguns minutos para escolher uma das milhares de gravatas à disposição. Não tinha mais o vigor mental, mas sua aparência física era de alguém na casa dos 50 anos de idade. Assustou a criadagem quando se encaminhou para o elevador e os deteve com um enérgico gesto de mão. Ficaram boquiabertos quando a porta se abriu e ele apertou o botão do térreo, descendo impassível para o mundo completamente mudado que o aguardava lá embaixo. Chegou ao lobby e não prestou atenção ao estado lastimável em que este se encontrava, indo direto para a calçada. Chamou um táxi e rumou para seu objetivo.

Chegou ao número 363 da Rua da Mooca e imediatamente as lembranças invadiram seu cérebro. Deu-se conta que muito havia mudado mas a essência estava lá. O ano letivo estava em andamento mas felizmente era sábado e a reunião com o diretor do colégio tinha sido agendada previamente. Uma jovem e bonita assistente veio ao portão para recebê-lo. Ele perguntou se podia dar uma volta pelo colégio antes da reunião e ela respondeu que ficasse completamente à vontade, deixando-o sozinho. Estava na entrada principal e lembrou das fotos coletivas, quando a professora organizava a classe inteira na grande escadaria, dispondo os alunos uniformizados nos degraus da escada, uns ao lado dos outros. Lembrou-se da foto do segundo ano primário em que, para estragar a imagem, escondeu-se atrás de um dos colegas no exato momento em que o fotógrafo disparou a máquina. De toda classe, ele era o único aparecendo na foto com um olho, meio nariz e meia boca.

Caminhou pelos corredores até chegar ao portão interno que dava para o pátio. Recordou das manhãs nas quais todos os alunos do colégio cantavam perfilados o Hino Nacional. Refletiu que a disciplina da época nunca permitiu que ao final os alunos explodissem em palmas e gritos. Estes eram permitidos durante os recreios, onde grupinhos de várias idades formavam-se para trocar ideias e combinar atividades extracurriculares. Nas salas de aula aprendia-se português, matemática, história, geografia, biologia, química, física, artes, desenho, música, inglês, francês, filosofia e moral e cívica. Nas quadras externas, professores de educação física estimulavam as atividades esportivas. Tudo gratuito, num colégio estadual! 

Chegou à biblioteca que lhe pareceu tão pequena agora. O quadro com a representação gráfica da fauna e flora brasileiras ainda estava no mesmo lugar, logo à esquerda da entrada, desbotado pelo tempo. Dele saíram vários apelidos: Tucano, Jiboia, Rato, Gazela… Lembrou-se de um livro sobre psiquiatria que o impressionara muito. Era um estudo de caso, todo documentado e fotografado, contando a história real de uma moça que dava entrada numa instituição e, após uma longa e penosa série de tratamentos variados, saia de lá com algum documento comprovando sua cura, mas com os olhos sem brilho e sem vida, como de alguém que tivesse perdido a alma.

Quando se aproximou da sala da diretoria, notou a porta entreaberta e entrou sem avisar. O diretor e sua assistente surpreenderam-se com a intromissão, quase pegos no flagrante amoroso. Ele preferiu ignorar e ir direto ao assunto que lhe trazia ao colégio. Tirou do bolso do paletó um pequeno envelope pardo que continha uma única folha, dobrada duas vezes. Desdobrou-a lentamente mas não expôs o conteúdo ao diretor. Olhou para o casal avaliando se deveria pedir privacidade para a moça. Ela deveria ter pouco mais que vinte anos, contrastando sua juventude com os mais de quarenta do amante. Achou que não faria diferença alguma, já que o diretor tinha no dedo anelar da mão esquerda somente a marca de pele mais clara da aliança.

Contou rapidamente como havia conquistado sua imensa fortuna, à custa de muito esforço e influência. Estivera sempre à sombra do poder, mas era peça pivotante da política do país. Expandiu-se por todo o mundo sem que não mais do que meia dúzia de pessoas soubessem quem ele realmente era. Fora causador do crack de 2046, apenas retirando de circulação sua fortuna pessoal. Olhou para o documento em suas mãos e explicou que aquilo transferia de modo irreversível todo aquele incrivelmente absurdo montante de dinheiro para o seu portador. E ele havia decidido que tal pessoa seria o dirigente da escola em que ele havia estudado os cursos elementares de sua formação. Perdeu o fio do pensamento por alguns instantes e quando retomou teve que se esforçar para entender onde estava. Quando recobrou a consciência explicou ao diretor que tais recursos deveriam ser aplicados integralmente na reestruturação do colégio, assim como na ampliação do mesmo e na expansão do benefício a todo o sistema educacional brasileiro.

Terminada a explanação, assinou o documento, levantou-se e foi embora deixando para trás o casal atônito e sem entender o que havia acontecido, se aquilo era real ou somente o delírio de um louco. Quando chegou na rua já não tinha a mínima noção de onde estava, para onde deveria ir e quem era. Virou à direita, em direção à Praça da Sé, e lá estabeleceu sua residência a céu aberto, sem jamais recuperar a memória.

***

O casal apaixonado desfrutava a garrafa mais cara da carta de vinhos do Le Jules Verne, restaurante de alta gastronomia que fica no 2º andar da Torre Eiffel, em Paris. Ele achou que era a coisa mais romântica que podia oferecer a ela nessa primeira viagem internacional de ambos. Teve tempo de deixar a mulher e os quatro filhos, surpreendentemente ricos de uma hora para outra, com uma conta poupança de 100 milhões de reais. Uma ninharia diante do que possuía agora. Nem a ex-esposa, nem ninguém no Brasil, sabia do paradeiro do ex-diretor do colégio estadual Antônio Firmino de Proença.

CaMaSa

A Lenda das Joaninhas

“Ladybug ladybug, fly away home / Your house is on fire, your children do roam”.

Houve um tempo em que os homens estavam mais próximos da natureza, por formação e necessidade. Nascia-se nas áreas cultiváveis e dali se tirava o sustento para sobreviver. As cidades eram refúgios de segurança e locais de troca de mercadorias e informações. Não havia registros nem livros, praticamente tudo era falado e contado, transmitido de geração a geração. A palavra de um homem era um documento firmado, dela vinha sua honra. Então para nós, que hoje temos toda a informação que queremos nas pontas dos dedos, em forma de telefone celular, pode parecer que a vida daquele tempo era monótona e sem graça, arrastada e difícil de preencher, mas, pelo contrário, era muito agitada e excitante!

Os animais eram parte integrante da existência, sendo uns mais próximos que outros dos homens, conforme a utilidade de cada um. Num intrincado método científico-filosófico, Deus, não o de barba branca, mas o Criador da coisa toda, vai criando e adaptando os bichos, de minúsculos insetos a mamíferos gigantes, de acordo com a necessidade de comer ou ser comido pelo homem. Então o Boss foi criando peixes e minhocas para pescá-los, passarinhos para comer minhocas e botar ovos nos ninhos. Alguns caíam do galho e ficavam pelo chão sem aprender a voar e viravam galinhas, patos, marrecos e gansos, que serviam para fazer travesseiros, com penas de ganso! Como nasciam muitas dessas aves domésticas, surgiram então as raposas que usavam todo tipo de artimanhas para invadir os galinheiros e sair de lá com uma penosa. Cansados dos furtos, os homens voltaram suas preces para o Manda-Chuva que imediatamente atendeu seus anseios enviando um lindo casal de cachorros. Esses tornaram-se excelentes guarda-costas das galinhas, dando alarme e perseguindo as raposas que delas se aproximavam. Também foram criados os Bulldogs, que só dormiam e peidavam, mas isso é uma outra estória. Seja como for, em reconhecimento à utilidade e dedicação, os homens ficaram muito amigos dos cães em geral, retribuindo com companhia e fidelidade os bons serviços prestados. Mas como estamos na Terra, não no Paraíso, os grãos plantados e colhidos em grande quantidade tinham que ser armazenados e, para isso, eram construídos locais apropriados para preservar os alimentos ensacados. Surgiram então os ratos e, na sua cola, os gatos, muito bons, muito bacanas, mas inimigos dos cães…

E assim seguiu Deus criando cobras e lagartos, elefantes e leões, bois e cavalos, escorpiões, mosquitos e hipopótamos, jacarés e borboletas, sempre atendendo os desejos e necessidades dos homens, até que chegou um ponto em que eles não o viam mais como O Criador, mas um empregado que estava ali para servi-los. Não era mais respeitado, nem temido e nem amado. Ele viu-se triste e deprimido com a situação, questionando-se sobre seu papel. Decidiu que devia abandonar os homens à sua própria sorte, refugiando-se em local secreto e seguro, onde não pudesse mais ser incomodado. Deixou atrás de si uma infinidade de obras não concluídas, muitas delas sem fazer sentido até nos dias atuais. Afinal, para que serve um ornitorrinco ou um peixe-gota? 

E assim, homens e mulheres viram-se de repente abandonados na face da Terra, tendo que enfrentar e resolver as questões que surgissem no dia a dia. E até que se deram bem por um tempo, criando sistemas engenhosos de habitação, transporte, captação e armazenamento de água e plantio de alimentos. Em tempos de paz e estabilidade mais e mais era necessário organizar as lavouras para gerar alimento suficiente para todos. Verduras, legumes e frutas eram plantados e colhidos em grandes quantidades, muito além das necessidades da população. 

Nesse clima de fartura e boa esperança jovens casais uniam-se em matrimônio na certeza da constituição de famílias ricas em felicidades e filhos, muitos filhos. Um desses casais era formado por um rapaz inteligente e bom, querido por todos, chamado Amado, e uma jovem bela e simpática que a todos cativava, chamada Amada. Uniram-se com a benção e o incentivo das famílias e deram início à construção do próprio patrimônio, plantando o futuro num pedaço de terra carente de cuidados e repleto de pedras. Acariciaram a terra castigada com as mãos, enxadas e arado, e com as pedras recolhidas construíram um lar seguro e sólido. Aos poucos, com muito esforço, dedicação e semeadura, a propriedade foi se transformando num jardim. Havia flores e frutos por todo canto e as lavouras de trigo e algodão cresciam abundantemente. Castanheiras e oliveiras vergavam os galhos de frutos, quase chegando ao chão. Estavam prontos para o próximo passo. O primeiro filho completaria a felicidade do casal.

Mas Deus havia deixado alguns seres tão insignificantes ao longo da história, que ninguém lhes dera a devida atenção. No entanto, em meio a tamanha abundância e desperdício, esses pequenos parasitas cresceram e multiplicaram numa proporção geométrica, alimentando-se vorazmente de tudo que era plantado e cultivado com tanto sacrifício. Em pouco tempo os alimentos passaram a escassear e logo a Terra, que era um imenso jardim, tornou-se ressequida e estéril, tendo substituídas suas belas cores por sombras de desolação.

Surgiram muitos especialistas, estudiosos de botânica, biologia, química e artes esotéricas conhecidas e desconhecidas, para interpretar e dar significado a tudo aquilo que não tinha explicação. Eram chamados de magos, fadas ou bruxas, conforme o humor e a região. Uns eram respeitados outros temidos e outros simplesmente ignorados. Alguns criaram poções venenosas que matavam os pulgões, como foram apelidados os parasitas, mas lamentavelmente matavam também as plantas. Muitos desses bruxos foram expulsos do convívio social e passaram a vida inteira isoladas no interior de densas e completamente inabitadas florestas.

Amada, em meio a tanta devastação e tristeza, viu seus planos de maternidade serem interrompidos, com seu ventre entristecido e árido, como a terra que os cercava. Ela e Amado lutavam desesperadamente para salvar o pouco que lhes restava mas, muito além de suas cercas, na densa floresta virgem, até onde a vista alcançava e a terra fazia sua curva, tudo estava morto e sem vida, com galhos secos sem uma folhinha verde sequer de esperança. Os rios estavam sujos e poluídos por carcaças de animais vencidos pela fome. Era preciso se embrenhar cada vez mais profundamente na mata para encontrar alguma água limpa para beber.

Certa manhã, Amada munida de dois grandes baldes pendurados num galho rijo de madeira apoiado em suas costas, embrenhou-se floresta adentro à procura do cada vez mais raro líquido. O sol já estava a pino quando parou para comer um pequeno pedaço de pão e deu-se conta que até o momento não havia encontrado uma única gota. Seguiu em sua jornada cada vez mais desorientada pelas sombras da mata fechada e do rápido entardecer, com o Sol mergulhando velozmente na noite escura. Viu-se completamente perdida, em todos os sentidos, caindo no chão esgotada e adormeceu banhada em lágrimas.

Quando acordou pela manhã, sentiu a grama fresca sob seu corpo revigorado e ouviu pássaros cantando alegremente. Abriu os olhos para uma realidade colorida e verdejante, com flores e frutos brilhantes de vida e orvalho. Pulou num sobressalto e viu mais adiante uma pequena choupana, limpa e bem cuidada, de onde fumegava um fio de fumaça branca de uma chaminé. Antes de dar o primeiro passo, viu a porta principal sendo aberta e dela sair uma senhora de cabelos e avental brancos escorridos sobre roupas cheias de remendos coloridos, como se fossem feitas de colchas de patchwork. Surpresa, a anciã veio em sua direção com um sorriso muito amável no rosto e lhe disse:

– Quem é você? Há muito tempo não recebo uma visita!

– Eu, eu, sou Amada… respondeu sem entender a jovem.

– Venha! Venha para dentro comer alguma coisa. Você me parece muito sedenta e faminta. Vamos experimentar minha nova receita de pão de canela que acabei de inventar.

O interior da casinha era tão surpreendentemente lindo como o exterior que a cercava, com móveis, cortinas, potes e utensílios variados, cuidadosamente limpos e organizados. No fogão a lenha o bule de café exalava um aroma maravilhoso e do forno vinha um perfume de maçã e canela inebriante. Amada, de olhos arregalados, observava a anfitriã mover-se com agilidade e leveza, enquanto seu estômago roncava com fúria. Resistiu bravamente enquanto as mais variadas delícias eram colocadas à sua frente, mas só as atacou quando a gentil senhora sentou-se diante dela e a incentivou a dar a primeira mordida.

Ela era aparentemente muito idosa, com o rosto totalmente envelhecido e marcado por infinitas rugas, mas seus olhos verdes tinham uma jovialidade contrastante com o restante do seu visual, como um oásis de frescor no meio do deserto. Enquanto Amada saciava sua sede e fome, ela foi contando sua história.

Chamava-se Bondade e vivia na floresta desde tempos imemoriais. Achava que tinha nascido ali, junto com as árvores e os animais. Havia dado nome e sentido a muitas plantas e bichos que por ali floresceram e deram os primeiros passos. Nunca sentiu necessidade de ir ao encontro de outras pessoas, pois sempre entendeu sua missão de manter viva a pureza da Terra, livre de contaminações. Amada, diante de uma narrativa tão bonita, contou envergonhada o que se passava com ela e com o mundo e como todos haviam perdido a esperança em alguma solução.

A anciã lhe sorriu bondosamente, pôs sua mão sobre a barriga de Amada num gesto de muito carinho e convidou a jovem para acompanhá-la até uma pequena saleta, repleta de pincéis e potes com tintas. Numa pequena mesa de madeira havia uma lente de vidro apoiada numa haste dobrável. Bondade pediu para que ela sentasse e olhasse através da lente. Ela viu uma intrigante fila bem organizada de pequenos insetos marrons, à primeira vista minúsculas baratinhas, com não mais de 8 milímetros. Pareciam aguardar algum comando para se movimentar e, de fato, quando a idosa senhora sentou-se no banquinho e bateu duas vezes com um pequeno pincel sobre a mesa, o primeiro bichinho da fila começou a andar e parou, de costas para elas, bem no centro da mesa. Amada viu sua anfitriã pintar habilmente de vermelho a carapaça arredondada do pequeno inseto e finalizar com pequenas manchas escuras. Os bichinhos sucediam-se respeitosamente para serem pintados de diversas cores e cada um tinha um padrão único de manchas. Após alguns segundos de secagem, erguiam a proteção, agora colorida, e exibiam abaixo delas asas transparentes que eram batidas numa velocidade espantosa, fazendo-os voar pelo aposento. 

Bondade contou que havia batizado esses seres minúsculos com o nome de Joaninha e que eles, em sua grande humildade, podiam ensinar aos homens uma bela lição. Principalmente, viver sem desperdiçar a energia e defender-se com suavidade. Somos pequenos diante do Infinito, mas nos abrindo a Ele, percebemos que a Eternidade nos habita. A carapaça é a nossa mente, onde vivem os pensamentos, mas abaixo dela estão os sentimentos, as asas do coração, que nos fazem sonhar e voar. 

Explicou também que as joaninhas se alimentam de parasitas menores que atacam as plantas e que por isso elas são símbolo de fertilidade, pois onde há joaninhas chega o novo, a transformação e o crescimento. Pôs sua mão sobre a barriga da jovem num gesto de muito carinho e sorriu esperançosamente. Pegou uma pequena caixa de vidro com milhares de joaninhas e presenteou Amada, dizendo para espalhá-las por suas terras para que elas fizessem seu trabalho. Despediu-se num abraço terno e convidou-a para voltar ao interior da floresta sempre que fosse necessário buscar mais joaninhas.

Quando Amada chegou em casa, encontrou seu Amado desesperado pela ausência dela. Ela contou o que havia acontecido e logo espalharam as joaninhas por toda plantação. Elas rapidamente comeram os parasitas e, fortalecidas, reproduziram-se rapidamente espalhando a boa nova por todo lugar. Em breve, toda a Terra estaria recuperada, salva pelos humildes insetos coloridos e pela Bondade.

CaMaSa

O Juiz

Ele chegou onde chegou por diversos motivos. Tinha inegável capacidade jurídica, mas também era excelente nas artes da política, admirador de Maquiavel e de seu Príncipe. No Supremo não lhe interessava a presidência da corte, apesar do cargo ser o quarto na sucessão da Presidência da República, mas impor sua vontade aos demais ministros. O Supremo Tribunal Federal é a mais alta instância do poder judiciário brasileiro, e acumula tanto competências típicas de uma suprema corte, ou seja, um tribunal de última instância, como de um tribunal constitucional, que seria aquele que julga questões de constitucionalidade independentemente de litígios concretos. Os membros da corte, referidos como ministros do Supremo Tribunal Federal, são escolhidos pelo presidente da República entre os cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, os indicados são nomeados ministros pelo presidente da República. O cargo é privativo de brasileiros natos e não tem mandato fixo: o limite máximo é a aposentadoria compulsória, quando o ministro atinge os setenta e cinco anos de idade.

A remuneração (no valor bruto de R$ 39.200 desde o início de 2019) é a mais alta do poder público, e serve de parâmetro para estabelecer a remuneração (menor) de altos funcionários públicos – fenômeno conhecido como escalonamento de subsídios, vez que os demais funcionários públicos têm sua remuneração atrelada a percentuais do subsídio de referidos ministros.

Nada disso era realmente importante, eram ninharias que não ocupavam suas preocupações. Seus interesses eram as grandes questões morais, jurídico-filosóficas, a constitucionalidade de alguns interesses e as negociatas que impulsionam o país para o futuro. Seja ele qual for. No momento seu foco eram as manobras para suspender a prisão em 2ª instância, ato jurídico que favorecia a Lava-jato e prejudicava amigos e autoridades importantes e muito próximas. 

Estava em Paris e a família o esperava no Mokonuts, pequeno e sofisticado café na Arrondissement, número 11. Os chefs proprietários preparavam amêijoas, filés de cavala e galinha de angola com maçãs e ervas. Assavam biscoitos de gergelim e preparavam a famosa Tarte Tatin com caramelo para a sobremesa. Tudo regado a Henri Jayer Richebourg Grand Cru, a 20.000 dólares a garrafa. Ele exigia tranquilidade e sossego, então o restaurante fechava as portas para o público às 17hs, reabrindo somente no dia seguinte. 

A mesa, além da família, recebia dois senadores, um governador, três ministros e um general, além de três dos maiores empresários brasileiros. Todos acompanhados de esposas ou companheiras da hora. Discutiam amenidades e frivolidades da vida parisiense, além dos rumos da política brasileira e as peças que deveriam ser mexidas no tabuleiro, para servir aos próprios interesses e manter o custeio dos gastos com passeios e jantares na Europa. Diziam entre si que esse era um dinheiro público muito bem gasto e gasto com muito gosto! Se você nunca participou de um jantar desses, talvez não entenda muito bem a piada. Na verdade você é a piada…

Além das duas filhas, o juiz trazia a tiracolo seu maior orgulho, a sua obra-prima, como costumava se referir ao filho caçula. Dotado de uma inteligência incomum e de uma beleza estratosférica, o rapaz era considerado o príncipe do high society tupiniquim. Seguia por instinto genético os passos do pai e sua carreira estava sendo estrategicamente planejada como uma sucessão imperial. Harvard, Oxford e Yale já haviam recebido a ilustre presença do filho do Brazilian Judge, como ele era conhecido nos meios jurídicos internacionais. Atlético, praticante de futebol, americano, tênis e ciclismo. Bebia apenas socialmente e das drogas sabia somente os nomes.

Como contraponto, o filho do empresário Tê Maior era um container de problemas. Boa pinta, malandro e mau caráter, meteu-se desde cedo em todo tipo de confusão. Valentão, rei do bullying na escola, foi expulso de quase todas pelas quais passou. Gostava de rinhas, mas achava os galos pouco violentos. Com 16 anos de idade criou a primeira rinha de cachorros pitbulls do Brasil. Concluiu o segundo grau comprado pelos pais e chegou à faculdade para beber mais e potencializar o uso de drogas. Químicas, somente químicas. Detestava desacelerar em todos os sentidos. Amante da velocidade, o pai montou escuderias de primeira linha para que ele competisse. Tinha até um certo talento, mas as condições etílicas e o mau caráter faziam dele um competidor medíocre e detestado por todos. Sempre usava de recursos ilícitos nas ultrapassagens, pondo em risco a própria vida e a dos demais pilotos. Causou acidentes graves, um deles resultando em lesão irreversível na coluna de um adversário e o fim da carreira. Para ambos.

Ele continuou correndo nas ruas, no entanto. Sem habilitação devido à grande quantidade de multas, seguia dirigindo impunemente, sempre pagando aos guardas de trânsito por sua liberdade. Atropelou uma senhora de 83 anos mas, apesar de se recusar a fazer o teste do bafômetro, os advogados conseguiram provar que a vítima havia sido imprudente ao atravessar a rua a 22 centímetros da faixa de pedestres… Mais recentemente, saindo de madrugada de uma balada nos Jardins, em São Paulo, atropelou e matou uma mãe, grávida de 6 meses, e sua filhinha de 2 anos que estava no seu colo. Foi preso e condenado, em primeira e segunda instância, apesar da tonelada de argumentos jurídicos fictícios apresentados pela defesa. 

Era sobre a situação do filho que Tê Maior e o Juiz conversavam. Como colocar o rapaz em liberdade? Dos olhos da esposa do empresário corria uma lágrima, suficiente para amolecer o coração de pedra do magistrado e excitar sua imaginação viril. Explicou aos pais que era um homem bondoso, sempre aberto a negociações e transferências de valores para suas contas na Suíça. O STF estava no momento em meio à solução dessa pendência jurídica da 2ª instância, com a votação para ser concluída. Havia os incorruptíveis, os comprados e os indecisos. Era necessária uma grande inversão de euros para que ele conseguisse vencer a intransigência e conseguir a liberdade de pessoas chaves do mecanismo de administração verdadeiro do país, entre elas, facínoras e corruptos da pior espécie. 

Na realidade a propina era só um detalhe, porque a decisão já estava tomada há muito. Usariam a libertação do ex-Presidente, destruído pelo álcool e sonhos de grandeza, como pano de fachada para por nas ruas aqueles que eles tinham interesse, e dinheiro, muito dinheiro para pagar pela liberdade. Contentavam assim boa parte da população enraivecida pela derrota nas eleições presidenciais. A outra parte da população estava atada a um Presidente da República que estava no bolso do colete, refém dos trambiques e tramoias dos filhos. Dariam uma pincelada de legalidade, prendendo-se a vírgulas insignificantes da Constituição, para fazer valer os próprios interesses.

O filho de Tê Maior saiu da cadeia junto à leva de condenados beneficiados pela extinção da prisão em 2ª instância. Foi direto para a balada mais cara da noite. Precisava comemorar a liberdade e não poupou dinheiro e champanhes Boërl & Kroff Brut, Krug Clos d’ Ambonnay e Moet & Chandon Dom Perignon Charles & Diana 1961 à vontade. Muito som, muita alegria, muita coca e muito êxtase em quantidades cavalares. O dia já começava a dar as caras quando ele acordou e viu alguns dos convidados, moços e moças de todas as tribos, espalhados pelo chão. Garçons andavam de um lado para outro arrumando a bagunça das mesas. Ele saiu para a rua e viu uma Porsche 911 preta, igual à dele, que ainda estava trancafiada num depósito da Polícia Federal como prova em seu processo. Não dirigia há muito tempo, estava louco para dar uma voltinha, e percebeu que o dono, provavelmente dormindo bêbado, tinha deixado a chave no contato. Subiu naquela máquina do demônio e saiu de lá voando, cantando os pneus.

Naquela manhã o filho do Juiz acordou com as galinhas, como sempre, para fazer seus exercícios matinais que incluíam uma corrida de 10K pelas ruas arborizadas e limpas da vizinhança. A manhã estava um pouco chuvosa, ideal para encher os pulmões de ar fresco e oxigenar o coração e as ideias. Colocou um calção surrado, camiseta larga e tênis de corrida. Deu um beijo rápido na mãe e um tapinha nas costas do pai que tomava o café na sala de almoço. Saiu para a rua cheio de disposição, ouvindo música no seu AirPod Pro de última geração. Distraído, nem percebeu quando a Porsche negra subiu a calçada em sua direção a mais de 200 km/hora. Voou para o alto como um fantoche de pano, num looping desengonçado. Caiu no chão batendo a cabeça na quina do meio fio, já sem vida.

O Juiz saiu correndo para a rua, assustado pelo barulho vindo de fora. Viu mais ao longe um automóvel preto abandonado com a porta aberta, sem motorista. Quando se aproximou do corpo estendido em sua calçada, viu que era o do seu filho amado, morto em 1ª instância.

CaMaSa

Um conto de Natal

Lembro de um Natal, eu era muito pequeno, devia ter 7 ou 8 anos, e nossa família morava no primeiro andar do Edifício Marly, na Rua Dom Bosco, no bairro da Mooca. Naquela época, a Mesbla enfeitava o imenso prédio de tijolos e sua torre redonda, na Avenida do Estado, com os motivos natalinos, e fazia uma grande exposição das últimas novidades em artigos para o lar e, principalmente, de brinquedos. Eu, apesar da idade, já havia compreendido que não ganharia do Papai Noel, nem de perto nem de muito longe, aquilo que eu realmente queria ganhar. Assim que me contentava em passear pela imensa loja, morrendo de amor e paixão pelos autoramas, ferroramas e bolas de capotão, sabendo que, com muita sorte, ganharia dos meus pais meias, shorts e camiseta. Mas aquele Natal teria um componente que mudaria minha percepção das coisas pelo resto da vida.

Em 1966, o Brasil seguia sua rotina: em 5 de fevereiro era decretado o Ato Institucional Nº 3, que instituiu as eleições indiretas para governadores e vice-governadores e a nomeação de prefeitos; no dia 21 de fevereiro o jogador de futebol Pelé casava-se com Rosemari; em 5 de junho o governador de São Paulo, Ademar Pereira de Barros, era cassado pelo presidente Castelo Branco; no dia seguinte, Luís Carlos Prestes, líder do Partido Comunista Brasileiro, era condenado a 14 de anos de prisão; em 25 de julho um atentado a bomba contra o marechal Artur da Costa e Silva, candidato a presidente do Brasil, no aeroporto de Guararapes, em Recife, Pernambuco, deixando três mortos e vários feridos; no dia 13 de setembro o presidente Humberto de Alencar Castelo Branco sanciona a lei, que estabelece o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e, em 3 de outubro, o candidato da Aliança Renovadora Nacional, Artur da Costa e Silva, é eleito presidente do Brasil pelo Congresso Nacional com 295 votos na eleição presidencial indireta. Tudo muito normal e brasileiro.

Desse modo chegamos ao fim de 66 com a expectativa que era melhor não ter muitas expectativas. Evidentemente, um pirralho como eu não teria a menor ideia ou interesse sobre o significado desses acontecimentos. Meu único interesse era encontrar o tal do bom velhinho, de barba branca e vestido de vermelho, e que ele tirasse alguma coisa que valesse a pena do seu enorme saco. A rotina nas casas era alterada para uma frequência diferente, mais rápida e cheia de uma intensidade amorosa, com preparativos especiais de decoração e alimentação, como quem prepara uma festa para um convidado muito especial. Eu compreendia porque esse senhor Noel aparecia tão gordo em todas as imagens. Porque, se ele tinha que passar em todas as casas entregando presentes e experimentar, nem que fosse um cafezinho, só podia ficar gordo mesmo, como uma baleia! Os outros garotos, amigos inseparáveis da rua, também estavam concentrados em seus mundos particulares, dentro de suas casas, acompanhando cada detalhe dos preparativos. Eu ficava em meio à minha mãe e irmãs, atrapalhando e levando broncas. 

– Tira a mão daí, menino!

– Olha a farinha! Não vai sentar no ovo!

– Sai daqui, moleque. Vai caçar o que fazer!

Era trabalho de adultos… e isso só fazia aumentar cada vez mais a ansiedade. O que será que vai acontecer? Será que vem? Será que não vem? O ano passado ganhei um estojo de madeira, com tampa deslizante multicolorida… Para a escola… Oh céus! Será que a carta chega nas mãos certas este ano? Sim, porque esse homem deve ter uma legião de ajudantes, uns dizem anões, outros dizem gnomos ou duendes. Seja lá o que for, o que recebeu minha carta devia ser um analfabeto (tinha acabado de aprender essa palavra na escola, usava para qualquer situação). Eu soletrei muito claramente para a Irmã Mais Nova: – Bi…ci…cre…ta. Não tinha erro! Será que ela me pregou uma peça e trocou por Es…ton…jo? É possível. Irmãs e irmãos pregam-se peças por toda a vida, até a despedida final.

Mas aconteceu que no dia 24, às 19, 20, 21 e 22 horas, até então, o bom velhinho não apareceu. E, estranhamente, não só eu estava ansioso, mas o Pai, a Mãe, a irmã Mais Velha e até a Irmã Mais Nova, todos estavam ansiosos e tensos, como alguém que desconfia que o peru assando no forno é frango, que a azeitona da farofa é uva passa ou que o bolo recheado de creme e chocolate é de banana. Algo que tinha que acontecer não estava acontecendo e isso não era bom. Às 23 horas definitivamente não era nada bom mesmo e às 23h30 já era quase caso de polícia. Eu, barata tonta em meio a tanta expectativa, dividido entre a deles e a que realmente importava, a minha, andava de um lado pro outro em busca de respostas. O que estaria acontecendo?

Era uma noite chuvosa, como são chuvosas as noites de verão na cidade de São Paulo e, naquela época, pré luz de mercúrio, os postes sustentavam uma fraca luz amarelada, formando abóbadas de claridade riscadas por pingos prateados de água limpa. Ela não chegou num trenó puxado por renas majestosas, comandadas por um intrépido capitão de roupas escarlates. Veio num velho e abrutalhado caminhão baú FNM, cheio de caixas. De uma delas surgiu a maravilha das maravilhas. Um gigantesco carregador em mangas de camisa descarregou essa enorme caixa de papelão e a abriu, diante dos meus olhos reluzentes, tirando do seu interior uma bicicleta Falcon, verde, aro 20! Era tão linda! Diferente das bicicletas que os amigos tinham ganhado no ano anterior, essa era uma miniatura das bicicletas dos adultos, com todos os detalhes copiados à perfeição. Praticamente dormi com ela naquela noite, sem comer, sonhando com as pedaladas do dia seguinte e meus amigos babando de inveja de um presente tão especial.

Pulei da cama antes dos primeiros raios de sol e a primeira coisa que ouvi foi a Mãe dizendo: – Não vai andar de bicicleta enquanto a chuva não parar.

Caramba! Olhei pela janela e a chuva seguia firme e forte, com cara de que levaria uns 2 a 3 meses para parar! Entre resmungos e tentativas de argumentação, bater de pé e o primeiro tapa na bunda, cheguei à conclusão que o melhor seria esperar. Na cozinha a atividade seguia intensa, agora com os preparativos do almoço de Natal, agora sim com a presença de convidados, tios e primos, para confraternizar e comemorar, não sei bem o que, já que a única coisa realmente importante era meu presente. Eu descia e subia as escadas até o portão da rua, a cada 15 minutos, para avaliar as possibilidades climáticas. A cada puxão no avental da minha Mãe, recebia um: – Nó… Nó… Nó…

Até que finalmente, pouco antes da chegada das visitas, ganhei uma fatia de rocambole de queijo e presunto, com massa fina e corada de gema de ovos, desses que só as mães sabem fazer, porque vai na receita um ingrediente especial que só elas conhecem. Percebi que meu estômago roncava de fome e o perfume da cozinha tinha um sabor de Natal que ficaria gravado na memória para sempre. Peguei meu pedaço e desci a escada para saborear o salgado sentado no degrau do portão de entrada do prédio, esperando que a chuva sem fim terminasse. Quando eu ia dar a primeira dentada, percebi um homem diante de mim, me olhando com olhos escuros e tristes. Fiquei surpreso, mais porque não parecia ser um mendigo, mas suas roupas estavam bem surradas e ele parecia não ter tido acesso a um banho, comida ou qualquer outro tipo de conforto há um bom tempo. Ele balbuciou entre os dentes sujos da boca sem força do rosto encovado:

– Moço, me desculpe, estou há vários dias sem comer, venho do interior e tenho muita fome…

Eu olhei pra ele, olhei pro rocambole, olhei de novo para ele e fiz que não com a cabeça. Ele me retribuiu com uma tentativa de sorriso, virou-se e foi embora. Não refleti por mais de 3 segundos antes de dar uma mordida naquela iguaria, mas, estranhamente, formou-se um bolo em minha garganta e a massa não desceu. Fui invadido por uma tristeza profunda, percebi não sei como que aquele homem era eu e eu era ele. Levantei em pânico e subi para minha casa. Entrei na cozinha e sem que ninguém percebesse peguei um dos rocamboles inteiro, recém saído do forno. Desci correndo para a rua, buscando pelo homem. Pude vê-lo dobrando a esquina, à esquerda da Rua Luiz Gama, em direção à Avenida do Estado. 

Naquela época as ruas eram pouco movimentadas, mais seguras, e eu saí correndo em sua direção, sem nem mesmo saber o por quê. Virei em direção à avenida e, quando cheguei no meio fio, vi o homem no centro da pinguela de madeira usada para atravessar o Rio Tamanduateí, que separava a avenida em duas margens. O rio, normalmente calmo com suas águas sujas e escuras, estava furioso e perigoso, com a água barrenta trazida de longe. Me aproximei devagarinho, com o rosto escorrido de lágrimas misturadas com gotas de chuva. Pude de alguma forma entender sua dificuldade e aflição, olhando desoladamente para as águas perigosas do rio abaixo. Um mergulho ali seria fatal. Cheguei ao seu lado sem que ele percebesse, toquei de leve sua manga e estendi o rocambole em sua direção.

O homem tomou a oferta sem cerimônia de minhas mãos e deu duas dentadas desesperadas. Protegeu o restante da água da chuva, repensou suas opções, virou-se e atravessou a pequena ponte, em direção ao seu destino.

CaMaSa