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Escrita nas Estrelas

Sofrêncio

Ela veio de de Poá, desembarcando em São Paulo em plenos anos 70. Nasceu em um 3 de setembro clamando pela primavera próxima, com os chimarrões mais mornos estalando no céu da boca. Virginiana, atenta aos detalhes e à perfeição. Frequentou o Colégio Estadual Júlio de Castilhos na Avenida Piratini, bairro de Santana, na grande Porto Alegre, ali desfilou sua loirice e belezura de guria curiosa. Formou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma instituição pública a serviço da sociedade e comprometida com o futuro e com a consciência crítica, que respeita as diferenças, prioriza a experimentação e, principalmente, reafirma seu compromisso com a educação e a produção do conhecimento, inspirada nos ideais de liberdade e solidariedade, onde ela aprofundou sua visão humanista e igualitária do homem em sociedade. 

Terminado o curso, a cidade ficou pequena em sotaque e possibilidades. O espírito de aventura, próprio da juventude, falou mais alto e apontou mais para o norte ensolarado, mais precisamente Salvador, Bahia, e suas praias quentes e luminosas. Conheceu paixões alucinantes, dessas que viram a noite em conversas profundas e enamoradas, sob a luz da Lua, brilhante e amarelada. Num desses encontros ficou sabendo de uma novidade incrível, um Guru menino indiano, recém chegado ao Ocidente, capaz de revelar o verdadeiro sentido da vida e a verdadeira felicidade na Terra. Rejeitava essas ideias, claro, todas ficavam por ali, sem voltar para o sul, frio e gelado, vivendo somente em suas lembranças. Mas as diversas amizades formadas criavam um fluxo constante de visitas e hospedagens, do sul para o norte, do norte para o sul, numa miscigenação constante de ideias novas e revolucionárias, no sentido amplo. Era toda uma geração hippie querendo mudar o mundo além da própria perspectiva e compreensão, ciente que havia algo muito maior que a materialidade, mas que a barriga roncava de fome e o coração tinha sede de paixão.

Entre as muitas idas e vindas, entre o frio dos pampas e o Sol do Nordeste, rumou para o centro econômico do país, a capital do Estado de São Paulo. Não só as ofertas de trabalho seriam mais disponíveis, mas os relacionamentos, as experiências e, mais precisamente, o conhecimento seria mais amplo. Desembarcou do ônibus na antiga rodoviária Júlio Prestes, na Luz, assustada com o movimento e encantada com os painéis coloridos de acrílico, espalhafatosos e de gosto duvidoso. Tinha o endereço de uma amiga de Poá, instalada há alguns meses num apartamento compartilhado com mais duas colegas na Consolação. No papel tinha anotado as orientações para o transporte até o local, de ônibus, e dirigiu-se hesitante ao balcão de informações. Recebeu uma ajuda um pouco áspera para o seu gosto, mas que se mostrou ser bem eficiente. O ônibus indicado colocou-a na porta do número registrado no seu papel. No trajeto ficou impressionada com o gigantismo bruto da cidade e sua paleta de tons em cinza, do branco levemente sujo ao preto asfáltico das ruas. Pouco verde, raras cores e flores!

Instalada, viu-se imediatamente na obrigação de encontrar trabalho e pôs-se a bater pernas com o currículo nas mãos. Por indicação, encontrou uma porta aberta na Secretaria da Saúde que recém contratava estagiários para trabalhar no setor de estatísticas. Firmou-se rapidamente, extremamente focada em suas tarefas, sendo efetivada em pouco tempo. Passou a ter uma estabilidade econômica muito bem-vinda que lhe permitiu certos prazeres solitários, como frequentar as boas e variadas livrarias da época, fartas de material esotérico, em alta na época. Tarot, I-Ching, Cabala… Astrologia, com a qual criou um vínculo muito forte, fazendo dela seu hobby e, futuramente, sua segunda fonte de renda. Sua interpretação dos astros não era técno-científica, mas baseada numa intuição aguçada, quase nada mental, absolutamente coração. Passou a ser muito requisitada e indicada em todos os círculos descolados paulistanos e, numa dessas indicações reencontrou alguns amigos da turma de viajantes de alguns anos atrás. Perguntou sobre o tal Guru menino e a convidaram para uma reunião na Rua Coronel Oscar Porto, no Paraíso, onde haveria pessoas falando de suas experiências com o Conhecimento que ele revelava.

Desta vez foi tocada e logo recebeu seus ensinamentos. Já não era mais menino, mas um homem feito, casado e plenamente adaptado ao mundo ocidental, morando nos Estados Unidos com sua mulher e filhos. Não exigia nada, apenas compartilhava sua visão da Vida, tirando dos exemplos mais simples e cotidianos lições de inestimável valor. Ela passou a frequentar as reuniões e, sempre que podia, viajava para os locais onde Ele fazia eventos públicos. Dessa forma conheceu toda a América do Sul e do Norte, em eventos intimistas em teatros e centros de convenções, a Europa e o Leste Europeu, o sul da África, a Austrália e a Índia, onde participou de eventos com mais de 300.000 pessoas e os 2.000 ocidentais não passavam de uma pequena mancha, à esquerda do palco, em meio à multidão gigantesca. Em todas as viagens e eventos a mesma mensagem de Paz e autorrealização, afinando cada vez mais sua percepção das necessidades interiores humanas.

Essas experiências foram fundamentais na sua capacidade de interpretar as estrelas e a levaram a um feito extraordinário. Precisamente um ano antes do surgimento dos primeiros casos do Coronavírus, traçou um mapa astrológico identificando com precisão o local e a hora marcada do seu aparecimento e as terríveis consequências a que seríamos todos submetidos no planeta. Desacreditada e até acusada de charlatanismo pelos seus pares, manteve-se fiel à sua leitura até que finalmente o flagelo explodiu. À medida que a pandemia avançava e fazia seus estragos, sua popularidade aumentava e a colocava nos centros de discussão sobre a nova doença e o futuro da humanidade. Os líderes mundiais mostraram-se ineptos para enfrentar o problema, adotando medidas que aumentavam ainda mais os efeitos nocivos, dizimando, dia a dia, grande parte da população mundial. Todos queriam saber como ela havia previsto o problema e era convidada para dar entrevistas para jornais e revistas, programas de rádio e televisão.

Certa vez, durante um programa muito prestigioso e sério da maior rede do país, foi abordada por dois agentes do governo, devidamente identificados. Eles informaram que ela estava sendo convocada pelo Presidente para uma reunião extraordinária no Palácio do Governo, em Brasília. Ela tentou se desvencilhar de proposta tão absurda, mesmo porque sua simpatia pelo atual governante ultrapassava a antipatia, mas os policiais deixaram bem claro que não havia como recusar o convite. Viu-se conduzida por um carro oficial até o aeroporto de Congonhas e lá embarcar num pequeno jato em direção à capital do país. Contrariada, chegou ao Palácio do Planalto e foi devidamente “desinfetada” e mascarada da cabeça aos pés. Ao contrário do que a propagando oficial divulgava, a aproximação ao mandatário era cercada de segurança absoluta. Ela estava apreensiva e com cara de poucos amigos. Tinha preparado um discurso cheio de impropérios e xingamentos, afirmando sua posição em defesa das minorias, seu anti-racismo e anti-fascismo, mas estranhamente viu-se compreensiva diante daquele ser humano apavorado e desesperado suplicando algum tipo de ajuda.

Ela começou explicando que ele estava mais sensível ao Conhecimento. Era Mercúrio em ação. O planeta da razão e do intelecto, que também rege a ciência, fazia uma conjunção com Quíron, o asteroide ligado à cura, além de um sextil com Vênus. Isso indica, por um lado, medidas de contenção que todos nós já estamos vivendo, mas por outro, o esforço global pela busca de tratamentos e vacinas. E os agentes dessa conjuntura astral são os cientistas, merecedores de todo o nosso respeito, que estavam desenvolvendo mais de cem projetos contra a Covide-19. Que o encontro de Mercúrio e Quíron em conjunção nos deixa mais investigativos e ligados ao conhecimento intuitivo. Este trânsito estimula a abertura da mente, a ampliação de horizontes. Ficamos mais inclinados a novas maneiras de encarar os problemas ou a vida como um todo. Não deixe essa chance passar, já que a consciência repentina leva ao desenvolvimento pessoal. E prosseguiu por algumas horas até que os astros ficaram mudos e o Presidente pegou no sono e dormiu profundamente com a boca escancarada. Ela levantou-se, sacudiu os cabelos e deles se desprendeu uma semente de Dente de Leão flutuando pela sala e pousando na garganta do ilustre mandatário da nação. Saiu da sala e encontrou os dois agentes que a conduziram pelo trajeto de volta até sua residência, em São Paulo.

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Alguns minutos antes dela descer do carro oficial para subir ao 3º andar do Palácio do Planalto, um casal de namorados apaixonados passava pelos jardins ao lado do Espaço Cultural Niemeyer. Ele pegou sorridente um Dente de Leão e soprou suas sementes ao vento quente, contagiando cada uma delas com o hálito do COVID-19. Uma delas voou graciosamente até o outro lado da Via N1, pousando graciosamente nos cabelos sedosos da nossa astróloga gaúcha enquanto ela subia a rampa. Foi o suficiente para contaminar o Chefe de Estado do Brasil.

CaMaSa

Anjos

Sofrêncio

Todo mundo tem um anjo. Até os que não acreditam! O problema é que ninguém os vê. Quer dizer, ninguém não, seria muita pretensão afirmar que só eu vejo. Alguns poucos sabem sim da existência deles e mais ou menos como a coisa funciona. Eu mesmo descobri meio que por acaso, juntando algumas peças de entendimento aqui e acolá. O fato é que cada um tem o seu e cada um deles cumpre mais ou menos a função de anjo a que foi destinado. E eu vou explicar bem didaticamente todo processo de formação desses seres especialíssimos, desmistificando alguns conceitos milenares arraigados na cultura popular.

Pra começo de conversa anjo tem sexo sim. Tem anjo mulher, homem, lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e transgênero. Apesar desse esclarecimento, vou me referir sempre a esses seres iluminados como anjo, porque anja é realmente uma coisa meio esquisita que bate estranho no ouvido. Existem também anjos de todas as etnias possíveis e imagináveis, baseadas em detalhes específicos de cada anjo, como alguma das bilhões de trilhões de variações na forma física ou cor de pele, sendo que jamais, em tempo algum, existiu um anjo absolutamente igual ao outro. Essa é uma regra absolutamente divina, inquebrantável como qualquer outra Lei da Física, como a Lei da Gravidade ou “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço”. Pensando bem, esta última, como qualquer outra, tem sua exceção, já que por um breve período eu e minha mãe ocupamos o mesmo lugar no espaço!

Durante a gravidez, enquanto eu não respirava e era alimentado pelo cordão umbilical, usei o anjo da minha mãe, que aliás era muito forte e poderosa, sinceramente quase um Arcanjo de tanta vontade e determinação para enfrentar os obstáculos que vinham em sua direção. Esteve presente noite e dia durante os nove meses sem descansar um segundo sequer. Tinha sempre as melhores sugestões e conselhos para minha mãe, que sempre aceitava sem pestanejar, colhendo os melhores resultados menos para si própria e mais para mim. Não que eu entendesse o que falavam, mas conversavam muito entre si, a maior parte do tempo em forma de canções e orações. Até que de repente a água da minha banheira saiu pelo ralo e eu me vi consideravelmente desconfortável e incomodado lá dentro. Um instinto de sobrevivência me fez buscar uma saída e a única viável me pareceu ser bem estreita e justa! Para complicar o tal do cordão enrolou-se no meu pescoço, criando uma sensação inédita de que faltava alguma coisa bem importante para o jogo da vida continuar pra mim…

Seja pela pressão física que me fez sentir como três quilos de contra-filé passando pelo moedor de carne, ou o desgaste emocional pela expulsão da minha toca acolhedora, me percebi atordoado, exausto e sem forças neste mundo, cercado de mãos e olhos apreensivos, que aguardavam ansiosamente algum tipo de reação da minha parte. Passados alguns segundos, um sujeito grande e mal encarado me ergueu pelos pés, de ponta cabeça, dando um ardente tapa na minha bunda! O choque, a dor e a surpresa me fizeram explodir num grito de choro e revolta, fazendo passar por mim, através do nariz e da boca, um fluxo absurdamente congelante de ar em direção aos meus pulmões. Encantando e intoxicado pelo prazer da nova substância, tentei segurar dentro de mim o mais que pude mas explodiu num fluxo quente e contrário, para fora, deixando um enorme vazio em mim. 

Foi nesse momento, petrificado e sem saber o que fazer a seguir, que vi meu anjo pela primeira vez! Ele estava lá, parado, mais aturdido que eu. Não era aquela luminosidade branca brilhante das pinturas clássicas, nem tinha aquele par de asas que a gente sabe que todo anjo tem, mas algo me dizia que era um… e era o meu! Estava pelado e ensopado de uma gosma qualquer, tinha meu tamanho e a aparência de um bebê recém-nascido, com aquela típica carinha de joelho para não diferenciar alface de acelga. Então aconteceu! Ele falou comigo. Telepaticamente, como fazem os anjos, mas falou. Disse: – Ô burro! Inspira. E eu sorvi o ar novamente… e soltei… e inspirei novamente… sucessivamente. Foi bom. Muito bom!

Não nos separamos mais. Quero dizer, ele sempre esteve aí para mim nos momentos mais marcantes. Teve aquela vez que ele me disse pra não roubar aquela moeda da minha mãe pra tomar sorvete, mas eu roubei e tomei uma baita de uma surra! Ele rolava de rir enquanto eu rolava de dor de um lado pro outro. Teve também aquela outra vez, na aula de Educação Física do colégio Firmino de Proença, na Mooca, quando o professor Normando, um ex-militar aposentado, rígido e disciplinador, pediu aos alunos para correr até um colchão colocado no meio da quadra, girar sobre o corpo dando uma cambalhota e sair rapidamente pelo outro lado; na minha vez, imaginei fingir um tropeção ao chegar próximo do alvo e simular uma queda de cara no colchão. Meu anjo pediu aflito: Não faça isso, por favor! A classe explodiu em gritos e gargalhadas e o professor apoplético e vermelho como um pimentão me deu uma suspensão!

Mas teve momentos bem dramáticos em que a influência dele foi decisiva para minha salvação e sobrevivência. Quando o clube do Juventus foi construído no Alto da Mooca, no início dos anos 1960, seu entorno era de muito mato e área verde. Imobiliárias se instalaram na região para negociar terrenos para construção de casas onde ainda não haviam ruas e qualquer tipo de saneamento. Meus pais conseguiram comprar um pequeno lote na face oeste do clube, que na época era cercado por uma cerca de arame, com 2 metros de altura. Nessa cerca sempre faziam cortes que funcionavam como passagem para quem não era associado ao clube ou para quem não queria dar toda a volta para entrar pela portaria principal no lado leste. Esse era o meu caso. Eu tinha uns 12 anos na época e naquela manhã, tomei um café com leite e comi um pão com manteiga e fui para as piscinas do clube passando pelo buraco escondido pelo mato alto. Atravessei o campo oficial de futebol, contornei as piscinas pela arquibancada e fui para o vestiário. Me troquei rapidamente e entrei no parque aquático pela roleta, lavando os pés no tanque de água com cândida.

O dia era bem nublado, ameaçando uma chuva fraca e intermitente a qualquer momento. A semana toda havia feito um calor infernal e eu havia sonhado muito com a água fresca e azul durante as intermináveis aulas de geografia e matemática. Dei o primeiro salto de cabeça na água escurecida pelo céu cinzento e frio, nadei até a escada e corri para o segundo salto. Repeti o processo e pulei mais uma vez, agora sem entusiasmo. Subi a escada de tubos de metal polido e já me preparava para saltar novamente quando meu amigo anjo postou-se diante de mim dizendo: – Não pule! Hesitei. Olhei para meus pés, que pareciam estar roxos e enrugados, como se estivessem esvaídos de sangue e vida. Dobrei os joelhos e me deitei na borda da piscina olímpica, olhando para a água, o prédio de pastilhas brancas da administração do outro lado e os apartamentos fora do clube, mais atrás. Tudo à minha volta pareceu rodar como num carrossel, com os prédios altos girando a uma velocidade cada vez maior. Levantei zonzo e trôpego sai do conjunto, descendo as escadas em direção ao posto médico. Não tive tempo. Vomitei o café da manhã envergonhado. Não havia ninguém por perto, só meu anjo apoiando minha cabeça.

Me senti melhor e voltei para casa refletindo sobre o que havia ocorrido e o que teria acontecido se ele não tivesse me aconselhado a não saltar novamente. Certamente eu teria passado mal dentro da piscina, engoliria muita água e poderia ter passado muito tempo até que alguém percebesse que eu estava me afogando. Apesar de intenso, confesso que a lição não foi suficiente para que eu aprendesse e entrasse em muitas situações perigosas ao longo de toda juventude principalmente. Mas tive sorte, muita sorte. Ele sempre esteve ao meu lado, alertando, prevenindo, dando os conselhos certos. Nossa relação evoluiu,  amadureceu e hoje conversamos sempre, a qualquer momento, sempre que queremos.

Claro que a esta altura você deve estar questionando minha sanidade, dizendo que essa coisa de anjo não existe e coisa e tal, que só estou inventando. Mas eu vou te revelar o maior segredo da humanidade. Uma técnica para revelar seu próprio anjo! Siga corretamente minhas orientações. É infalível! Pegue uma superfície polida, não rugosa, pode ser o vidro de uma janela, um espelho, tem gente que consegue ver até na superfície de um lago, mas tem que estar bem tranquilo. Se você está lendo num computador ou celular, tente enxergar no vidro do monitor ou da tela… Isso, olhe bem… Você vai começar a perceber dois olhos olhando curiosamente para você, num rosto muito parecido com o seu… Esse é seu anjo!

CaMaSa

Sofrêncio

Sofrêncio

Ele nasceu José Alguma Coisa e, como toda criança que nasce, cheio de potencial para viver a plenitude da vida. No entanto, por uma série de circunstâncias ou escolha, tomou o caminho da dor e do sofrimento. Seus pais eram normais, nem ricos nem pobres, e tinham a mesma dose de atenção e carinho para cada um dos quatro filhos. Amadeu, Regina, José e Ernesto formavam a ninhada dos Alguma Coisa, vivendo a vida comum dos irmãos que têm uns aos outros para se apoiar e incomodar. Naquela casa os bens eram suficientes, as roupas eram suficientes, a comida era suficiente. Nada faltava, nada sobrava. Algum excesso acontecia nos dias santos, Páscoa e Natal, com um frango mais encorpado metido a besta ou um pudim de claras branquinho com calda de açúcar queimado.

Sofrêncio foi José e o caçula até o dia que chegou o Ernesto. Isso durou pouco tempo, 7 meses e meio, porque além de tudo o guri quis chegar ao mundo adiantado e fraquinho, pouco mais de 1 quilo e meio de gente! A partir daí José foi jogado pra escanteio. Não era primogênito como Amadeu, nem a princesinha como Regina, nem o caçulinha como Ernestinho, o Tinho. Virou um Coisa meio sem rumo e definição, esquecido num canto qualquer da casa, como um pano de chão semi novo, mas ainda assim pano de chão.

Até que um dia aconteceu um fato interessante que deu sentido e direção para sua vida, além de cravar seu verdadeiro nome, não o de batismo, mas aquele para o qual fomos criados. Existe uma identificação natural que muitos passam a vida sem descobrir, mas evidentemente Marias não poderiam deixar de ser Marias e Paulos só poderiam ser Paulos mesmo, ainda que se chamem Jennifers ou Washingtons. O nome Sofrêncio veio ao mundo quando, numa data especialmente especial, seus pais levaram os filhos para tomar sorvete numa padaria próxima de onde moravam. Paramentados todos com roupa de missa de domingo, acomodaram-se os seis em quatro cadeiras de madeira numa mesa redonda com pés de tubo de ferro e tampo de fórmica verde água com minúsculos pontinhos dourados brilhantes. O pai dirigiu-se ao balcão e voltou de lá com quatro sorvetes de morango e chocolate apoiados em casquinhas crocantes. Sabe-se lá porque a alma da gente gosta tanto de sorvete de casquinha, mas o fato é que os olhos daquelas crianças brilhavam mais que lua cheia de tanta vontade e prazer. Foi então que aconteceu…

O ainda Zezinho encarou aquela iguaria nunca vista antes como um leão faminto se aproxima de sua presa. Foco e concentração absolutos no objetivo principal de devorar aquela massa gelada, doce de prazer, o mais rapidamente possível. Ele sabia que se fosse lento e seus irmãos terminassem primeiro os sorvetes, teria que dividir o que sobrava com os demais, como era o costume em casa. Escancarou a boca, esticou toda língua pra fora como um raio de músculos e lambeu as bolas coloridas com toda vontade que tinha… A massa ergueu-se um pouquinho, pendeu para o outro lado e lançou-se para o chão sujo da padaria, numa trajetória reta e objetiva, em câmera lenta, manchando de rosa e marrom claro aquela imundície acumulada a décadas.

Eu gostaria de ter a capacidade de descrever, sério. De verdade, colocar em palavras aquele sentimento tão intenso e profundo de dor e frustração. A surpresa desconcertante, a raiva dos irmãos rindo e gritando com seus sorvetes intactos nas mãos, o olhar duro do pai dizendo com a boca cerrada, se pedir outro apanha. A sugestão vergonhosa da mãe, sugerindo que pegasse uma pazinha de madeira e comesse a parte de cima, ainda tá limpinha, dizia ela! Mas não dá, realmente não dá! Deixo para cada leitor buscar em si mesmo a própria experiência para comparar. Talvez encontre razões muito mais fortes, mas nada que se compare à reação do garoto. Ele sofreu, sofreu muito e intensamente, num nível de dor incomum a qualquer um, mas, estranhamente, gostou do que sentiu. De uma forma ou de outra, ele, que sempre fora ignorado, tornara-se o centro das atenções. Gostou de sofrer!

Daquele dia em diante, passou a perseguir todas as formas de sofrimento, físico e emocional, encontrando nisso prazer e satisfação. Privava-se de coisas simples e banais, de companhia e afeto, amizades e diversões. Isolava-se completamente e quando era obrigado a interagir, na escola ou em alguma atividade, adotava uma postura belicosa e hostil. Brigava constantemente com os colegas de escola, não para bater, para apanhar. Voltava pra casa invariavelmente rasgado e machucado. Em casa apanhava mais. Adorava!

Na adolescência descobriu a paixão e as dores da paixão. Não era correspondido, era rejeitado e quanto mais era desprezado mais se apaixonava. Algumas moças, mais maternais, afeiçoavam-se dele, tentando acolher aquela alma amargurada, fora do mundo como um passarinho caído do ninho. Desprezava-as, perdia-as para em seguida sofrer a dor do arrependimento. Sua vida tornou-se uma série de decisões erradas que progrediam e multiplicavam-se em dores e sofrimentos e confusões cada vez mais complexas. A certa altura, completamente desiludido e perdido, tentou dar fim à própria vida atirando-se do alto do Viaduto do Chá! Estatelou-se num caminhão de alface que passava em direção ao Mercado Municipal. Salvou-se!

Um amigo de seu irmão, vendo situação tão desesperadora e lamentável, convidou-o para assistir uma palestra de um sábio. Disse-lhe que se ele desse uma chance ao homem e ouvisse com o coração, ele seria capaz de se livrar de todo sofrimento. Chegaram a um salão na Rua Oscar Porto, perto da Avenida Paulista. A sala de uns 200 metros quadrados estava apinhada de gente, de todas as idades, de todas origens. O tal sábio não estava ali presente, mas era apresentado através de um vídeo filmado durante uma palestra dada a uma grande audiência num auditório elegante. Falou durante quase uma hora sobre as coisas mais simples, belas e importantes. Sobre consciência, verdade e felicidade. Que o homem era como aquele cervo que procura um perfume enebriante em todos os lugares do mundo, mas o perfume vem do próprio umbigo. Falou das coisas mais maravilhosas e que esta vida era a chance, talvez única, de realizá-las.

Quando saíram para a calçada o amigo, com o coração cheio da paz daquela sabedoria, perguntou-lhe: 

– E então, o que achou?

– Para mim não fez sentido algum, respondeu Sofrêncio sofridamente.

Seguiu seu caminho religioso da forma mais tortuosa possível. Para ele os grandes Mestres do passado eram exemplos de sofrimento que não haviam deixado marcas de frivolidades de paz, amor e autocontentamento em suas passagens pela Terra. Krishna e Arjuna em sua guerra contra os irmãos, Buda trocando o luxo e opulência pela miséria absoluta, Maomé e a humilhação e fuga de Meca em sua Hégira, e Jesus Cristo, símbolo máximo do martírio em seu calvário de dor e sangue. Sonhava ele mesmo em ser pregado numa cruz e encontrar sua redenção definitiva. Mas cansou-se de tanta teoria e virou ateu!

Enveredou por todo tipo de questionamentos, lutas e discussões sócio-políticas. Era a favor dos fracos, não porque simpatizava com eles, mas porque via nas causas motivos para sofrer mais e mais. Chegou aos 30 e poucos anos e deu de cara com o Covid-19. Já havia passado por caxumba, varíola, catapora, meningite e gripe H1N1. Viu nas recomendações de prevenção da doença mais um motivo de contestação e uma porta para mais sofrimento. Saiu para as ruas sem máscara, sem proteção, de peito aberto para mais essa gripezinha. Tossiu, teve calafrios, ardeu em febre e foi parar numa maca qualquer do SUS. Os atendentes, enfermeiros e médicos fizeram o possível com os parcos recursos. Conseguiram entubá-lo num respirador meia bomba. Sofreu a dor na garganta, a alimentação intravenosa, a flexão dos pulmões através da máquina… Sobreviveu por 2 meses em meio às próprias fezes e urina, num estado comatoso e sem esperança de retorno. Lutou, desta vez para perder, definitivamente. No seu último momento, lembrou-se das palavras do sábio do vídeo da Rua Oscar Porto e entendeu onde estava a felicidade. Mas levou para si o segredo.

CaMaSa

Mamma

Mamma

Mamãe, mamãe, mamãe…
o avental todo sujo de ovo…

Eu não lembro bem a música, tenho a impressão que era de um tipo meio brega, bem sentimental, feita para exaltar qualidades daquelas que são unanimidade no coração de todos, as Mães. Devia ser uma sexta-feira, o fim de semana era Dia das Mães, eu tinha sete ou oito anos, acho que estava no segundo ano do antigo primário e, seja pelos acordes emotivos ou pela saudade de casa, fui surpreendido por uma torrente de lágrimas e soluços tão intensos que foi necessário interromper a música e ser atendido carinhosamente pela professora. Minha emoção era muito maior que a vergonha de chorar diante dos colegas de classe que, entre assustados e surpresos, divertiam-se com a cena. 

Um deles, chamava-se Raul, um desses amigos que fazemos nos primeiros anos de colégio, simpatizamos mas somos separados pelas futuras divisões das classes e turnos escolares, acompanhando a trajetória um do outro até onde é possível. Acabam nos marcando de alguma forma e ele, neste caso, tornou-se inesquecível para mim com o seguinte comentário: – Mas você deve ter aprontado muito para estar arrependido assim!

Olhei para ele ainda com a visão turva, sem entender o significado de suas palavras. Eu nunca havia feito nada tão errado assim, nem poderia naquela altura da vida. Eu simplesmente a amava completamente, como todo filho ama sua mãe. E a amei por toda vida, como amo até hoje. Tivemos nossos altos e baixos, ambos taurinos, cheios de razão. Tive minha adolescência com suas dúvidas e inseguranças, uma pós-adolescência conturbada, típica da época, ávido por expandir os limites do que era formalmente estabelecido. Trabalhamos juntos, fomos sócios por grande parte de minha vida profissional e, muitas vezes, perdemos a paciência um com o outro. Mas esse vínculo inquebrantável que une duas pessoas que se amam sempre esteve aí. Por que?

Não sou melhor do que ninguém, não posso afirmar que amei mais ou menos. Cada um sabe o que sua mãe representa em sua vida, não é possível comparar. Ela é a porta de entrada para este mundo e isso já deveria ser suficiente para explicar tudo. Meu pai veio alguns anos antes para o Brasil, com o ofício de marceneiro e a cabeça inundada de sonhos. Minha mãe chegou depois, com duas filhas pequenas e os pés plantados na realidade. Dessa separação momentânea, cheia de queixas, mágoas e muita nostalgia, porque minha mãe ainda não conhecia a palavra saudade, eu vim ao mundo.

Era uma noite fria de julho, não tão fria quanto as noites rigorosas do inverno europeu, mas suficientemente fria para a necessidade da junção de corpos aquecidos pela paixão, ainda que reprimida. Biologicamente meu pai amou minha mãe, inundou-a com seu desejo e ela, receptiva, no momento certo do seu ciclo, me aguardava em seu único óvulo. Eu nasceria 9 meses depois. Há muitas teorias sobre o início da vida, católicos entendem que é a partir do momento da fecundação, os islâmicos entendem que é após algum tempo. Os judeus acreditam que não ocorrendo o nascimento o espírito do feto volta para Deus. Os espíritas entendem que o espírito vem ao corpo a mando de Deus e tem uma missão para com os futuros pais. Ciência e religião divergem sobre o momento em podemos ser considerados um ser humano, mas eu sou vida a bilhões e bilhões de anos, muito antes da existência do espaço, do tempo e de tudo. Sabia que essa era minha chance e tinha que aproveitá-la.

Consciência plena, pus-me a correr em direção a essa promessa de vida e segurança, deixando para trás companheiros da viagem intrauterina. Com muito esforço cheguei a essa massa enorme de alimento e guarida. Ao contrário do que alguns pensam, chegamos vários de nós mas somente eu fui aceito e acolhido. Em pouco tempo nos fundimos, nos dividimos e nos multiplicamos freneticamente, construindo um terceiro indivíduo a partir de nós mesmos. Ligado à minha mãe por um cordão, dela recebi tudo o que necessitava para evoluir, desenvolver minha humanidade física e crescer. Meu mundo ia ficando cada vez mais apertado à medida que o tempo passava e chegou um momento em que as leis da física foram imperativas e era necessário que dois corpos não ocupassem o mesmo lugar no espaço.

Fui expulso, expelido, daquele lugar quente e acolhedor, repleto de paz e amor. É necessário um esforço gigantesco, de ambas as partes, mãe e filho, para um bebê aterrissar neste mundo. O maior e mais potente foguete já construído é uma simples biribinha perto do nascimento. Há muito querer envolvido, muita força e paixão, absoluta confiança e total agradecimento. Em meio à dor, sangue, suor e lágrimas de alegria, o cordão que nos alimentava e sustentava é cortado, dando início à minha grande aventura. O primeiro gole de ar sorvido, é um enorme salto no escuro, tomado de incerteza e pavor, sem garantia alguma de que encontraremos terra firme e apoio. Por temor ou obrigação, esperança ou falta de opção, inspiramos desesperadamente o ar bendito, inflamos os alvéolos pulmonares cheios de vida e expiramos uma prece de agradecimento por tanto cuidado e bondade.

E assim seguimos, inspirar e expirar, confiar e agradecer, por toda a vida nesta Terra, por toda a existência, trazendo em nossos corações esse laço, essa lembrança da união, de uma vida compartilhada por alguns meses, de um período milagroso onde essa energia criadora se manifesta em toda sua compaixão. Se você está lendo isto é porque teve uma mãe, um ser de luz que possibilitou a sua experiência deste mundo. Ame sua presença, ame sua lembrança, simplesmente ame.

CaMaSa

Pascoal

Naquele fim de tarde de sexta-feira da paixão, quando minha mãe foi me buscar no colégio Dom Bosco, me encontrou de mãos dadas com aquele padre jovem e simpático. Eu estava com os olhos inchados de chorar e o padre explicou para ela o que havia se passado durante a exibição do vídeo da Paixão. Trocaram sorrisos cúmplices e despedidas, e voltamos calados para casa. Quando chegamos à comodidade e segurança do nosso lar simples e modesto, minha mãe me abraçou ternamente e perguntou porque eu havia chorado? Tentei explicar mas a emoção tomou novamente meu peito de assalto e as palavras começaram a rolar umas sobre as outras, engasgadas e confusas.

A Mãe, afagando carinhosamente meus cabelos, começou a me explicar o significado de todo aquele tormento, mas que eu não me preocupasse porque no domingo, de Páscoa, esse homem tão bom ressuscitaria, trazendo esperança para todos os homens! Que se eu acreditasse nisso de coração, no domingo pela manhã eu teria a prova, ganhando um grande e saboroso presente! 

Ouvi aquilo com ouvidos destampados e olhos arregalados… Como poderia alguém renascer dos mortos? Ela mesma, e todos que me cercavam, viviam gritando para mim: – Cuidado menino, sai de perto do balcão! Olha o carro! Cuidado pra atravessar a rua! Quer morrer? Se morrer, nunca mais vai jogar bola, chupar bala e sorvete! A verdade é que fiquei muito contente pelo Homem Bom, mas confuso como passarinho que caiu do ninho! Além disso, o tio do Alvinho, meu amiguinho da rua, tinha morrido de tanto tossir e nunca mais ninguém viu ele por estas bandas! Teve também o caso muito triste do cachorro da Dona Candinha, companheiro inseparável, cheio de truques de saltar, andar sobre duas patas, dar cambalhotas, tudo por causa de umas bolachinhas. Um dia, durante uma exibição rotineira diante de uma plateia de crianças sujas do pó da alegria da rua e olhos ansiosos para ver o mesmo truque sendo repetido pela enésima vez, o vira-lata preto e branco de rabo cortado fingiu-se de morto pela última vez.

Perguntei para a Irmã mais Nova que correu atrás de mim com a vassoura com a qual ela tinha acabado de varrer o piso da sala e eu estava sapateando com os sapatos sujos. Depois tentei a Irmã mais Velha que pacientemente me deu uma explicação longa e comprida, cheia de palavras difíceis que eu não entendia. Disse também para que eu não me preocupasse porque no dia seguinte, Sábado de Aleluia, a justiça seria feita pois seria “malhado o Judas”, o homem que havia traído o Homem Bom. Fui dormir com a esperança que nessa malhação eu pudesse encontrar algumas respostas e, principalmente, no domingo eu tivesse a prova do renascimento, ganhando o tal presente.

Acordei no sábado bem cedinho e corri pra rua engolindo rapidamente o leite com Toddy e o pão com manteiga Paulista. A rua estava tomada por um burburinho diferente, uma excitação em torno de um boneco engraçado, parecendo um espantalho. Haviam juntado roupas variadas, cada um trouxe uma peça, calça, camisa, paletó e chapéu, tinham arranjado até uma gravata de bolinhas vermelhas, dando ao boneco uma aparência muito distinta! Costuraram firmemente as barras das calças e os punhos da camisa, e enchiam o interior com palha e jornal picado até que a figura ficasse completamente gordo e estufado. A cabeça era improvisada por uma velha bola de plástico, tão velha que a pintura dos hexágonos pretos imitando bola de capotão já haviam desaparecido. No seu lugar haviam pintado olhos, nariz e boca, uma franja rala, dando ao rosto improvisado uma aparência boba, de quem não estava entendendo o que se passava.

Penduraram o boneco no poste de concreto dos fios da Light, recém plantado na rua, e o cercaram com tacos de madeira e ferro, num alarido crescente de excitação. Quando o Sol já estava quase a pino, com a sombra do poste escondida sob ele mesmo, o Seo Pafúncio, dono da fábrica canetas tipo Bic, da Rua Luiz Gama, subiu numa escada de madeira e despejou querosene sobre o boneco Judas, que ficou completamente encharcado. Com a turba de adolescentes e crianças afastada em segurança pelos mais adultos, ele ateou fogo no infeliz, lançando sobre ele um fósforo aceso.

Todos urravam de prazer vendo aquelas roupas cheias de palha e papel arderem numa enorme bola de fogo. Depois de um tempo o fogo diminuiu de intensidade e os mais valentes se aproximaram e se puseram a espancar o boneco queimado, até que ele caiu no chão inerte. A pancadaria aumentou, com pancadas e chutes vindos de todos os lados. Um desses golpes atingiu a cabeça bola de futebol que saiu rolando pela rua, atravessando-a, em minha direção. Parou bem diante dos meus pés, toda chamuscada e deformada, num sorriso triste de quem pede perdão com toda sinceridade e coração. Perdoei, na esperança de que no dia seguinte aconteceria o tal milagre da Ressurreição, como havia me repetido duas centenas de vezes minha Irmã.

No domingo pela manhã acordei com os gritos e palmas da Irmã mais Nova, que pulava em volta da mesa da cozinha, em cujo centro havia um enorme ovo de Páscoa embrulhado num brilhante papel celofane vermelho, preso por fitas coloridas num laço. O Pai havia comprado ou ganhado numa rifa, não sei, mas o seu sorriso de satisfação ao ver nossa alegria, tornou-se inesquecível para mim. Não faço a menor ideia do tamanho ou peso real daquele tesouro. Para mim, à época, era o maior ovo de chocolate que eu jamais havia visto! Tenho a impressão que eu poderia entrar dentro dele para comer as centenas de bombons ali guardados. Lembro que somente o rígido controle da Mãe pode mantê-lo afastado de nossas bocas vorazes por muitos meses, mas que na verdade como eu não tinha a menor noção de tempo naqueles tempos, podem ter sido só alguns dias. Naquele domingo comi mais chocolate do que havia comido em toda minha vida até então, e fui dormir com a barriga cheia de cacau e açúcar, completamente esquecido do Homem Bom e sua ressurreição.

Naquela noite tive um sonho fantástico! Eu era um jovem de 16 anos, quase adulto para o padrão da época em que o sonho aconteceu. Eu vivia numa região desértica e arenosa, cercado de pessoas que falavam uma língua estranha, mas que eu compreendia completamente. Minha família e os que nos eram próximos discutiam de modo sigiloso, quase sussurrando, os últimos acontecimentos e a morte por crucificação daquele que era tão amado e querido. Eu e o primo Efraim tínhamos subornado os guardas romanos na porta do túmulo e levado o corpo dali. Seria preparado com todo respeito e carinho e enterrado longe, num lugar secreto onde somente aqueles que o amavam saberiam onde era. Já era domingo, todos ainda choravam sua ausência quando uma pequena criança, nos seus 6 ou 7 anos, pôs-se a falar e consolar a todos. Explicou que aquele que se fora estava vivo e eternizado em nossos corações, que celebrássemos pois o Mestre estará sempre, em sua forma humana, junto aos seus discípulos, para todo o sempre.

Algumas das pessoas presentes acusaram o menino de blasfemo e lhe viraram as costas, mas outras reconheceram em suas palavras e em seu olhar a mesma sabedoria e doçura daquele que os deixara. Seguiram seus passos e ensinamentos, agora discretamente sem chamar a atenção dos inimigos, interessados somente na Verdade guardada em segredo no peito. E assim tem sido de geração em geração, ao longo dos séculos, o encontro do Mestre e seus discípulos para aqueles que pedem com o coração de uma criança e, sinceramente, desejam ter seu Conhecimento.

CaMaSa