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Sofrêncio

Ele nasceu José Alguma Coisa e, como toda criança que nasce, cheio de potencial para viver a plenitude da vida. No entanto, por uma série de circunstâncias ou escolha, tomou o caminho da dor e do sofrimento. Seus pais eram normais, nem ricos nem pobres, e tinham a mesma dose de atenção e carinho para cada um dos quatro filhos. Amadeu, Regina, José e Ernesto formavam a ninhada dos Alguma Coisa, vivendo a vida comum dos irmãos que têm uns aos outros para se apoiar e incomodar. Naquela casa os bens eram suficientes, as roupas eram suficientes, a comida era suficiente. Nada faltava, nada sobrava. Algum excesso acontecia nos dias santos, Páscoa e Natal, com um frango mais encorpado metido a besta ou um pudim de claras branquinho com calda de açúcar queimado.

Sofrêncio foi José e o caçula até o dia que chegou o Ernesto. Isso durou pouco tempo, 7 meses e meio, porque além de tudo o guri quis chegar ao mundo adiantado e fraquinho, pouco mais de 1 quilo e meio de gente! A partir daí José foi jogado pra escanteio. Não era primogênito como Amadeu, nem a princesinha como Regina, nem o caçulinha como Ernestinho, o Tinho. Virou um Coisa meio sem rumo e definição, esquecido num canto qualquer da casa, como um pano de chão semi novo, mas ainda assim pano de chão.

Até que um dia aconteceu um fato interessante que deu sentido e direção para sua vida, além de cravar seu verdadeiro nome, não o de batismo, mas aquele para o qual fomos criados. Existe uma identificação natural que muitos passam a vida sem descobrir, mas evidentemente Marias não poderiam deixar de ser Marias e Paulos só poderiam ser Paulos mesmo, ainda que se chamem Jennifers ou Washingtons. O nome Sofrêncio veio ao mundo quando, numa data especialmente especial, seus pais levaram os filhos para tomar sorvete numa padaria próxima de onde moravam. Paramentados todos com roupa de missa de domingo, acomodaram-se os seis em quatro cadeiras de madeira numa mesa redonda com pés de tubo de ferro e tampo de fórmica verde água com minúsculos pontinhos dourados brilhantes. O pai dirigiu-se ao balcão e voltou de lá com quatro sorvetes de morango e chocolate apoiados em casquinhas crocantes. Sabe-se lá porque a alma da gente gosta tanto de sorvete de casquinha, mas o fato é que os olhos daquelas crianças brilhavam mais que lua cheia de tanta vontade e prazer. Foi então que aconteceu…

O ainda Zezinho encarou aquela iguaria nunca vista antes como um leão faminto se aproxima de sua presa. Foco e concentração absolutos no objetivo principal de devorar aquela massa gelada, doce de prazer, o mais rapidamente possível. Ele sabia que se fosse lento e seus irmãos terminassem primeiro os sorvetes, teria que dividir o que sobrava com os demais, como era o costume em casa. Escancarou a boca, esticou toda língua pra fora como um raio de músculos e lambeu as bolas coloridas com toda vontade que tinha… A massa ergueu-se um pouquinho, pendeu para o outro lado e lançou-se para o chão sujo da padaria, numa trajetória reta e objetiva, em câmera lenta, manchando de rosa e marrom claro aquela imundície acumulada a décadas.

Eu gostaria de ter a capacidade de descrever, sério. De verdade, colocar em palavras aquele sentimento tão intenso e profundo de dor e frustração. A surpresa desconcertante, a raiva dos irmãos rindo e gritando com seus sorvetes intactos nas mãos, o olhar duro do pai dizendo com a boca cerrada, se pedir outro apanha. A sugestão vergonhosa da mãe, sugerindo que pegasse uma pazinha de madeira e comesse a parte de cima, ainda tá limpinha, dizia ela! Mas não dá, realmente não dá! Deixo para cada leitor buscar em si mesmo a própria experiência para comparar. Talvez encontre razões muito mais fortes, mas nada que se compare à reação do garoto. Ele sofreu, sofreu muito e intensamente, num nível de dor incomum a qualquer um, mas, estranhamente, gostou do que sentiu. De uma forma ou de outra, ele, que sempre fora ignorado, tornara-se o centro das atenções. Gostou de sofrer!

Daquele dia em diante, passou a perseguir todas as formas de sofrimento, físico e emocional, encontrando nisso prazer e satisfação. Privava-se de coisas simples e banais, de companhia e afeto, amizades e diversões. Isolava-se completamente e quando era obrigado a interagir, na escola ou em alguma atividade, adotava uma postura belicosa e hostil. Brigava constantemente com os colegas de escola, não para bater, para apanhar. Voltava pra casa invariavelmente rasgado e machucado. Em casa apanhava mais. Adorava!

Na adolescência descobriu a paixão e as dores da paixão. Não era correspondido, era rejeitado e quanto mais era desprezado mais se apaixonava. Algumas moças, mais maternais, afeiçoavam-se dele, tentando acolher aquela alma amargurada, fora do mundo como um passarinho caído do ninho. Desprezava-as, perdia-as para em seguida sofrer a dor do arrependimento. Sua vida tornou-se uma série de decisões erradas que progrediam e multiplicavam-se em dores e sofrimentos e confusões cada vez mais complexas. A certa altura, completamente desiludido e perdido, tentou dar fim à própria vida atirando-se do alto do Viaduto do Chá! Estatelou-se num caminhão de alface que passava em direção ao Mercado Municipal. Salvou-se!

Um amigo de seu irmão, vendo situação tão desesperadora e lamentável, convidou-o para assistir uma palestra de um sábio. Disse-lhe que se ele desse uma chance ao homem e ouvisse com o coração, ele seria capaz de se livrar de todo sofrimento. Chegaram a um salão na Rua Oscar Porto, perto da Avenida Paulista. A sala de uns 200 metros quadrados estava apinhada de gente, de todas as idades, de todas origens. O tal sábio não estava ali presente, mas era apresentado através de um vídeo filmado durante uma palestra dada a uma grande audiência num auditório elegante. Falou durante quase uma hora sobre as coisas mais simples, belas e importantes. Sobre consciência, verdade e felicidade. Que o homem era como aquele cervo que procura um perfume enebriante em todos os lugares do mundo, mas o perfume vem do próprio umbigo. Falou das coisas mais maravilhosas e que esta vida era a chance, talvez única, de realizá-las.

Quando saíram para a calçada o amigo, com o coração cheio da paz daquela sabedoria, perguntou-lhe: 

– E então, o que achou?

– Para mim não fez sentido algum, respondeu Sofrêncio sofridamente.

Seguiu seu caminho religioso da forma mais tortuosa possível. Para ele os grandes Mestres do passado eram exemplos de sofrimento que não haviam deixado marcas de frivolidades de paz, amor e autocontentamento em suas passagens pela Terra. Krishna e Arjuna em sua guerra contra os irmãos, Buda trocando o luxo e opulência pela miséria absoluta, Maomé e a humilhação e fuga de Meca em sua Hégira, e Jesus Cristo, símbolo máximo do martírio em seu calvário de dor e sangue. Sonhava ele mesmo em ser pregado numa cruz e encontrar sua redenção definitiva. Mas cansou-se de tanta teoria e virou ateu!

Enveredou por todo tipo de questionamentos, lutas e discussões sócio-políticas. Era a favor dos fracos, não porque simpatizava com eles, mas porque via nas causas motivos para sofrer mais e mais. Chegou aos 30 e poucos anos e deu de cara com o Covid-19. Já havia passado por caxumba, varíola, catapora, meningite e gripe H1N1. Viu nas recomendações de prevenção da doença mais um motivo de contestação e uma porta para mais sofrimento. Saiu para as ruas sem máscara, sem proteção, de peito aberto para mais essa gripezinha. Tossiu, teve calafrios, ardeu em febre e foi parar numa maca qualquer do SUS. Os atendentes, enfermeiros e médicos fizeram o possível com os parcos recursos. Conseguiram entubá-lo num respirador meia bomba. Sofreu a dor na garganta, a alimentação intravenosa, a flexão dos pulmões através da máquina… Sobreviveu por 2 meses em meio às próprias fezes e urina, num estado comatoso e sem esperança de retorno. Lutou, desta vez para perder, definitivamente. No seu último momento, lembrou-se das palavras do sábio do vídeo da Rua Oscar Porto e entendeu onde estava a felicidade. Mas levou para si o segredo.

CaMaSa