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Sofrêncio

Ela veio de de Poá, desembarcando em São Paulo em plenos anos 70. Nasceu em um 3 de setembro clamando pela primavera próxima, com os chimarrões mais mornos estalando no céu da boca. Virginiana, atenta aos detalhes e à perfeição. Frequentou o Colégio Estadual Júlio de Castilhos na Avenida Piratini, bairro de Santana, na grande Porto Alegre, ali desfilou sua loirice e belezura de guria curiosa. Formou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma instituição pública a serviço da sociedade e comprometida com o futuro e com a consciência crítica, que respeita as diferenças, prioriza a experimentação e, principalmente, reafirma seu compromisso com a educação e a produção do conhecimento, inspirada nos ideais de liberdade e solidariedade, onde ela aprofundou sua visão humanista e igualitária do homem em sociedade. 

Terminado o curso, a cidade ficou pequena em sotaque e possibilidades. O espírito de aventura, próprio da juventude, falou mais alto e apontou mais para o norte ensolarado, mais precisamente Salvador, Bahia, e suas praias quentes e luminosas. Conheceu paixões alucinantes, dessas que viram a noite em conversas profundas e enamoradas, sob a luz da Lua, brilhante e amarelada. Num desses encontros ficou sabendo de uma novidade incrível, um Guru menino indiano, recém chegado ao Ocidente, capaz de revelar o verdadeiro sentido da vida e a verdadeira felicidade na Terra. Rejeitava essas ideias, claro, todas ficavam por ali, sem voltar para o sul, frio e gelado, vivendo somente em suas lembranças. Mas as diversas amizades formadas criavam um fluxo constante de visitas e hospedagens, do sul para o norte, do norte para o sul, numa miscigenação constante de ideias novas e revolucionárias, no sentido amplo. Era toda uma geração hippie querendo mudar o mundo além da própria perspectiva e compreensão, ciente que havia algo muito maior que a materialidade, mas que a barriga roncava de fome e o coração tinha sede de paixão.

Entre as muitas idas e vindas, entre o frio dos pampas e o Sol do Nordeste, rumou para o centro econômico do país, a capital do Estado de São Paulo. Não só as ofertas de trabalho seriam mais disponíveis, mas os relacionamentos, as experiências e, mais precisamente, o conhecimento seria mais amplo. Desembarcou do ônibus na antiga rodoviária Júlio Prestes, na Luz, assustada com o movimento e encantada com os painéis coloridos de acrílico, espalhafatosos e de gosto duvidoso. Tinha o endereço de uma amiga de Poá, instalada há alguns meses num apartamento compartilhado com mais duas colegas na Consolação. No papel tinha anotado as orientações para o transporte até o local, de ônibus, e dirigiu-se hesitante ao balcão de informações. Recebeu uma ajuda um pouco áspera para o seu gosto, mas que se mostrou ser bem eficiente. O ônibus indicado colocou-a na porta do número registrado no seu papel. No trajeto ficou impressionada com o gigantismo bruto da cidade e sua paleta de tons em cinza, do branco levemente sujo ao preto asfáltico das ruas. Pouco verde, raras cores e flores!

Instalada, viu-se imediatamente na obrigação de encontrar trabalho e pôs-se a bater pernas com o currículo nas mãos. Por indicação, encontrou uma porta aberta na Secretaria da Saúde que recém contratava estagiários para trabalhar no setor de estatísticas. Firmou-se rapidamente, extremamente focada em suas tarefas, sendo efetivada em pouco tempo. Passou a ter uma estabilidade econômica muito bem-vinda que lhe permitiu certos prazeres solitários, como frequentar as boas e variadas livrarias da época, fartas de material esotérico, em alta na época. Tarot, I-Ching, Cabala… Astrologia, com a qual criou um vínculo muito forte, fazendo dela seu hobby e, futuramente, sua segunda fonte de renda. Sua interpretação dos astros não era técno-científica, mas baseada numa intuição aguçada, quase nada mental, absolutamente coração. Passou a ser muito requisitada e indicada em todos os círculos descolados paulistanos e, numa dessas indicações reencontrou alguns amigos da turma de viajantes de alguns anos atrás. Perguntou sobre o tal Guru menino e a convidaram para uma reunião na Rua Coronel Oscar Porto, no Paraíso, onde haveria pessoas falando de suas experiências com o Conhecimento que ele revelava.

Desta vez foi tocada e logo recebeu seus ensinamentos. Já não era mais menino, mas um homem feito, casado e plenamente adaptado ao mundo ocidental, morando nos Estados Unidos com sua mulher e filhos. Não exigia nada, apenas compartilhava sua visão da Vida, tirando dos exemplos mais simples e cotidianos lições de inestimável valor. Ela passou a frequentar as reuniões e, sempre que podia, viajava para os locais onde Ele fazia eventos públicos. Dessa forma conheceu toda a América do Sul e do Norte, em eventos intimistas em teatros e centros de convenções, a Europa e o Leste Europeu, o sul da África, a Austrália e a Índia, onde participou de eventos com mais de 300.000 pessoas e os 2.000 ocidentais não passavam de uma pequena mancha, à esquerda do palco, em meio à multidão gigantesca. Em todas as viagens e eventos a mesma mensagem de Paz e autorrealização, afinando cada vez mais sua percepção das necessidades interiores humanas.

Essas experiências foram fundamentais na sua capacidade de interpretar as estrelas e a levaram a um feito extraordinário. Precisamente um ano antes do surgimento dos primeiros casos do Coronavírus, traçou um mapa astrológico identificando com precisão o local e a hora marcada do seu aparecimento e as terríveis consequências a que seríamos todos submetidos no planeta. Desacreditada e até acusada de charlatanismo pelos seus pares, manteve-se fiel à sua leitura até que finalmente o flagelo explodiu. À medida que a pandemia avançava e fazia seus estragos, sua popularidade aumentava e a colocava nos centros de discussão sobre a nova doença e o futuro da humanidade. Os líderes mundiais mostraram-se ineptos para enfrentar o problema, adotando medidas que aumentavam ainda mais os efeitos nocivos, dizimando, dia a dia, grande parte da população mundial. Todos queriam saber como ela havia previsto o problema e era convidada para dar entrevistas para jornais e revistas, programas de rádio e televisão.

Certa vez, durante um programa muito prestigioso e sério da maior rede do país, foi abordada por dois agentes do governo, devidamente identificados. Eles informaram que ela estava sendo convocada pelo Presidente para uma reunião extraordinária no Palácio do Governo, em Brasília. Ela tentou se desvencilhar de proposta tão absurda, mesmo porque sua simpatia pelo atual governante ultrapassava a antipatia, mas os policiais deixaram bem claro que não havia como recusar o convite. Viu-se conduzida por um carro oficial até o aeroporto de Congonhas e lá embarcar num pequeno jato em direção à capital do país. Contrariada, chegou ao Palácio do Planalto e foi devidamente “desinfetada” e mascarada da cabeça aos pés. Ao contrário do que a propagando oficial divulgava, a aproximação ao mandatário era cercada de segurança absoluta. Ela estava apreensiva e com cara de poucos amigos. Tinha preparado um discurso cheio de impropérios e xingamentos, afirmando sua posição em defesa das minorias, seu anti-racismo e anti-fascismo, mas estranhamente viu-se compreensiva diante daquele ser humano apavorado e desesperado suplicando algum tipo de ajuda.

Ela começou explicando que ele estava mais sensível ao Conhecimento. Era Mercúrio em ação. O planeta da razão e do intelecto, que também rege a ciência, fazia uma conjunção com Quíron, o asteroide ligado à cura, além de um sextil com Vênus. Isso indica, por um lado, medidas de contenção que todos nós já estamos vivendo, mas por outro, o esforço global pela busca de tratamentos e vacinas. E os agentes dessa conjuntura astral são os cientistas, merecedores de todo o nosso respeito, que estavam desenvolvendo mais de cem projetos contra a Covide-19. Que o encontro de Mercúrio e Quíron em conjunção nos deixa mais investigativos e ligados ao conhecimento intuitivo. Este trânsito estimula a abertura da mente, a ampliação de horizontes. Ficamos mais inclinados a novas maneiras de encarar os problemas ou a vida como um todo. Não deixe essa chance passar, já que a consciência repentina leva ao desenvolvimento pessoal. E prosseguiu por algumas horas até que os astros ficaram mudos e o Presidente pegou no sono e dormiu profundamente com a boca escancarada. Ela levantou-se, sacudiu os cabelos e deles se desprendeu uma semente de Dente de Leão flutuando pela sala e pousando na garganta do ilustre mandatário da nação. Saiu da sala e encontrou os dois agentes que a conduziram pelo trajeto de volta até sua residência, em São Paulo.

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Alguns minutos antes dela descer do carro oficial para subir ao 3º andar do Palácio do Planalto, um casal de namorados apaixonados passava pelos jardins ao lado do Espaço Cultural Niemeyer. Ele pegou sorridente um Dente de Leão e soprou suas sementes ao vento quente, contagiando cada uma delas com o hálito do COVID-19. Uma delas voou graciosamente até o outro lado da Via N1, pousando graciosamente nos cabelos sedosos da nossa astróloga gaúcha enquanto ela subia a rampa. Foi o suficiente para contaminar o Chefe de Estado do Brasil.

CaMaSa