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Anacleto e o Sequestro – Parte 2

Há situações na vida, arriscadas e perigosas, nas quais tudo que queremos é ter ao nosso lado a companhia ideal. Alguém seguro e experiente que saiba o caminho das pedras, o segredo do cadeado, voar sem asas ou pelo menos que diga as palavras certas na hora do aperto. Quando o calafrio na espinha atingiu o ponto mais baixo das colunas vertebrais de Colchonete e Panela, eles tinham certeza absoluta que Anacleto não era essa pessoa. Não só ele não estava tremendo de medo diante do estranho mal encarado olhando para eles, como também tinha no rosto um sorriso de paz e tranquilidade de quem havia encontrado seu finalmente. No silêncio tétrico que se seguiu à pergunta do sujeito nada amigável, só se ouvia os dentes do Panela batendo e a barriga do Colchonete se revirando, prenúncio de coisa muito ruim se materializando. Anacleto deu o tom da conversa respondendo com uma pergunta:

– E você, quem é?

Os dentes do Panela bateram uma última vez. Cerraram tão fortemente que pareciam ter nascidas grudadas as arcadas superior e inferior. Terror era pouco! De ambos os lados do homem surgiam pouco a pouco pares de olhos brilhantes, injetados de sangue. A matilha era enorme! Colchonete afrouxou a musculatura e emitiu um sonoro “Valha me Deus”, simulando o escapamento do DKW 3 cilindros que os largara naquela roubada. Pelo cheiro, podia-se dizer que ele já estava morto, fazendo jus à expressão: Morto de Medo. Anacleto, entre os dois, mantinha a atitude serena e desafiadora, braços cruzados na altura do peito, queixo erguido à frente, por sua vez corroborando a expressão: Morreu Feliz! O grupo foi saindo das sombras, aproximando-se da luz amarelada do poste, único aliás num raio de 200 metros. Eram crianças e adolescentes maltrapilhos que, pela aparência, não viam banho e sabão há algum tempo. O homem se chamava Ditão, era líder da comunidade próxima e, naquele momento, fazia a ronda noturna de segurança. Os três amigos, um pouco mais calmos, hesitaram um pouco mas acabaram revelando o motivo de estarem ali. O homem disse então que realmente havia percebido algo fora do comum naquela casinha mais adiante, mas achava que deveriam ser homens perigosos, que não era conveniente enfrentá-los de peito aberto. Os olhos de Anacleto brilharam de prazer…

* * *

Maria Letícia era um doce de menina. A pele clara, os cabelos escuros, como os olhos, duas jaboticabas. A adolescência a fizera mais bonita, encorpara um pouco, não muito, na medida certa que exige esse período de transição entre moleca e moça, não muito magra, nem gorda. A vivacidade estava um pouco mais contida, mas a curiosidade expandira grandemente. Não de modo inadequado. Ela carregava nas atitudes e comportamento as marcas claras de sua posição. Nascera em família abastada da emergente Mooca, não a tradicional, dos cortiços e fábricas poluentes, mas a nova, moderna, que se espalhava pela Avenida Paes de Barros pelos altos da Mooca, passando pelo ponto mais alto na caixa d’água, até atirar-se como água de uma cascata até a Vila Prudente e suas favelas miseráveis. No seu reino familiar ela era a princesa com direito a estudar no colégio Dante Alighieri e frequentar, aos domingos, às 11hs, as missas dos jovens da Igreja São Rafael. Ali teve contato com rapazes e moças diferentes, vindos de extratos diversos, com visões de mundo e aspirações muito mais simples, práticas e acessíveis que as suas. Ela desejava um Príncipe e, se entre as novas amizades seu coração escolheu alguém para o papel, manteve o segredo bem guardado em seu coração, sem que alguém soubesse ter ela dado um inocente beijo em alguém do bairro.

Os encontros dominicais serviam para criar um vínculo espiritual com a igreja e comentar os bailinhos do sábado e as domingueiras de logo mais à noite. Nesses momentos o brilho nos olhos de Maria Letícia diminuía um pouco. Queria saber dos encontros, das danças de rosto colado e dos beijos à meia luz. Os namoricos que pipocavam entre as meninas e meninos do grupo, a inocência que ia se perdendo lenta e gradualmente, irreversivelmente. Vivia através das histórias contadas em detalhes o que não podia viver por si mesma. As paqueras, os olhares, toques de mão, os abraços mais ou menos apertados, os beijos, na testa, no rosto, nos lábios, de língua… A temperatura só aumentava, em pleno inverno, e fazia nascer nela uma vontade, um desejo, uma sede que água alguma saciava. Era muito melhor que as fotonovelas…

Os pedidos aos pais para ir a um bailinho, uma domingueira, eram constantes, mas não insistentes. Não ao ponto de faltar com o respeito, incomodar ou interromper o fluxo harmonioso do lar. Mesmo assim, era bem evidente que a filha estava crescendo, deixando de ser menina, e seria necessário, além de um acompanhamento mais intenso e rigoroso, mostrar, através de símbolos próprios do status que pertenciam, a direção correta que ela deveria seguir. Num sábado à noite, Maria Letícia rabiscava queixas e lamentações em seu diário, imaginando o que faziam naquele momento seus amigos no bailinho da Mirtes, famosa, entre outras coisas, pelos bailinhos na garagem de sua casa. Todos foram convidados, ela também, mas desta vez nem chegou a pedir para sua mãe deixar ela ir. Trancou-se no quarto e ficou pensando como seria chegar ali e ser tirada para dançar. Ele estaria lá. Diria não a todos os outros até que ele chegasse nela. E se abraçariam, quem sabe um beijo. De repente seu devaneio foi interrompido por batidas na porta. Pulou da cama e abriu a porta correndo. Viu seus pais sorridentes, ela não entendeu nada até reparar que seu pai tinha algo em suas mãos. Ela quase caiu de costas quando viu o que era. Uma vitrolinha laranja portátil!

Transferência é o ato ou efeito de transferir. Transferem-se direitos, propriedades, valores ou dados. Transferem-se objetos e ensinamentos, talvez o amor e carinho de alguém para outro. Na infância e juventude talvez seja possível transferir desejo e vontade para um objeto. Pelo menos por algum tempo. Maria Letícia transferiu toda frustração por sonhos juvenis não realizados para aquele objeto altamente tecnológico e inovador. Esqueceu bailinhos, amizades e príncipes. Ligou animada a vitrolinha na tomada e pôs-se a tocar um long play atrás do outro, dançando sem parar ao ritmo das músicas que eram sucesso na época. Era mágico observar o vinil preto girando sobre aquele objeto brilhante, laranja, a agulha flutuando sobre os sulcos, tirando os acordes dos instrumentos, as vozes dos cantores e o chiado inconfundível de uma época que seria enterrada pelo rio do tempo, que viveria somente na memória daqueles que ouviram.

Para interromper o idílio musical, seu irmão mais novo veio chamá-la para a janta. Muito a contragosto ela desceu e encontrou os pais impacientes sentados à mesa. Sábado à noite era tradição naquela casa a pizza da São Pedro, na época um local pequeno e familiar, que fazia uma redonda artesanal à mão. O próprio Seo Rafael vinha entregar a encomenda, eventualmente acompanhado do filho Cacau, para que este aprendesse quem eram as famílias respeitáveis do bairro. A de mussarela e a de calabresa já descansavam fumegantes acompanhadas de um tinto da casa. Nesses dias o pai deixava provar um golinho, para aprender o vinho e não se deixar fazer de boba. Ela comia rapidamente, ansiosa para voltar ao quarto e à sua vitrola de plástico cheirando à novidade. Mal podia esperar para contar a novidade a todos. Com certeza tinha quem iria morder o próprio cotovelo. Seus pensamentos foram interrompidos pelo anúncio do seu pai:

– Hoje à noite, depois de comer, iremos todos à casa do tio Benevides!

Não sei se porque ela estava com a boca cheia de pizza, ou por causa da alegria e gritaria que se seguiu, ou porque não valia à pena tentar argumentar com seu pai, mas Maria Letícia se viu como um autômato seguindo seus irmãos, mãe e pai na direção da garagem, onde o Aero Willys, o primeiro carro brasileiro de luxo, que só era utilizado nos passeios familiares, aguardava já de motor ligado. Portas fechadas, seu pai manobrou até a calçada e quando voltava para o assento do motorista após fechar o portão, ela lembrou que havia deixado a vitrolinha ligada, com um disco girando sobre ela. Pulou do carro e disse aos pais que iria desligar o aparelho e voltava voando. Ia num pé e voltava no outro. O pai, muito bravo, permitiu que ela fosse rapidamente. Ela atravessou a garagem e entrou pelo quintal lateral pela porta dos fundos, onde ficava a cozinha. Entrou, atravessou a sala, subiu as escadas e entrou no quarto. Olhou para o local onde até pouco tempo atrás a música girava de um disco e não viu nada. Olhou ao lado da cama, sobre o criado, imaginou que o irmão estava pregando alguma peça, quando sentiu atrás de si um corpo. Duas mãos a fizeram girar 180 graus bruscamente e uma voz dura e fria deu uma ordem: 

– Não dá um pio.

Não era necessário. Ela desmaiou antes do pio.

CaMaSa

Anacleto e o Sequestro – Parte 1

Para o bem ou para o mal, a fama de Anacleto crescia sem parar. Muitos o consideravam alguém especial, com dons e poderes superiores, uma espécie de enviado dos deuses. Já outros viam nele somente predicados negativos, portador do azar e más influências, o próprio filho do coisa ruim. Dona Tinha mesmo era uma que sempre se benzia três vezes quando passava na porta da casa “deles”, como agora se referia aos vizinhos, com uma aguda lembrança dolorida no estômago. Os três seguiam sua rotina, indiferentes aos comentários maliciosos. Cleto saia cedo para o trabalho, tomando um café apressado e dando o infalível beijo de despedida em sua amada Ana. Ela preparava o lanche do filho e, depois que ele ia para a escola, cuidava da casa ouvindo as notícias através da Rádio Nacional. Divertia-se com os shows de variedades e músicas, mas ficava muito preocupada com as ocorrências policiais, cada vez mais assustadoras. 

Anacleto por sua vez havia aceitado bem a transição para o colegial. Na realidade a maioria da classe eram seus velhos conhecidos, todos cientes das suas esquisitices. As novidades eram 2 ou 3 alunos vindos de outros colégios. Entre eles um rapazola magrelo, de cabelos compridos e cara de quem não dormia há alguns dias. Seu nome era José Ricardo, mas trouxe consigo o apelido de Colchonete, por motivos óbvios. Ele e Anacleto tornaram-se amigos de imediato, não por afinidade ou algum interesse comum, mas pela falta de entrosamento com os demais. Colchonete ficou admirado quando soube que Anacleto era nome, não apelido. Também ficou espantado com as tendências do novo amigo e contou que não conseguia dormir antes das 3 horas da manhã, e que por isso estava sempre com sono. Foram trocando informações como quem narra detalhes da vitória do seu time de futebol na última rodada e, de repente, eram amigos!

Juntou-se à dupla outro rapaz, Pedro de Assis, vulgo Panela. Sabe-se que quando ele tinha 5 anos de idade, meteu na cabeça uma panela de ferro para brincar de soldado. Colocou a danada depois de muito corre-corre e disparos imaginários, tiros pela boca e mortes de faz-de-conta. A cabeça suada e os cabelos escorridos grudados no crânio facilitaram o encaixe, mas depois, sabe-se lá se os cabelos secaram e engrossaram ou era mesmo o momento do crescimento, o que aconteceu foi que a caçarola se prendeu de tal maneira naquela cachola que parecia ter nascido ali. De nada adiantou o choro, os gritos, as pragas e lamentos. Passou-se sabão, sabonete, óleo de cozinha e de caminhão. Tentou-se com manteiga, banha de porco, sebo, pasta de dente, shampoo e condicionador. Sugeriram estrume de vaca, mais choro e grito. Alguém conhecia um ótimo ferreiro que poderia cortar o metal, mas o risco de ferir a criança era muito grande. Exaustos, foram todos dormir, na esperança que o amanhecer trouxesse uma solução. Pedrinho deitou na cama sem travesseiro, mal acomodado, a cabeça doendo pelas tentativas de puxar a vasilha. Adormeceu vencido pelo cansaço e sonhou que cavalgava um cavalo branco por pastos verdejantes, com um céu totalmente azul manchado pela bola amarela do Sol. 

Acordou com uma baita dor de cabeça! Resolveram levá-lo ao hospital. Passou por uma junta de recepcionistas, depois por uma junta de enfermeiras e, finalmente, por uma junta médica. Todos eram unânimes: era urgente tirar a panela da cabeça do menino para que a dor cessasse. Comunicaram aos pais que a situação era muito grave, pois o crescimento da criança causaria uma pressão cada vez maior, podendo até levar a óbito. Teriam que fazer uma operação delicadíssima, cortando todo o perímetro do crânio logo abaixo da boca da panela; ergueriam a mesma com a tampa da cabeça dentro dela enquanto manteriam o cérebro exposto protegido por uma concha acrílica especial; com sorte tirariam a parte do crânio de dentro do recipiente de metal e a grampeariam na cabeça do menino. Os pais se entreolharam e na mesma hora decidiram que até que não era tão ruim assim o filho ter essa proteção extra na cabeça. Voltaram para casa firmes e decididos a usar outra panela para cozinhar o feijão. Se preciso fosse, até comprariam uma nova. Pedro ficou ainda mais três semanas com o artefato colado ao cocuruto, até que numa tarde fria de julho, sem mais nem menos a panela pulou para fora de sua cabeça. Mas o mal já estava feito, ele seria irremediavelmente o Panela para o resto de sua vida. 

Assim chegou Anacleto, com dois amigos, àquela fase da vida onde as coisas deixam de ser completamente inocentes, quando há dúvidas na hora de escolher calças curtas ou longas, quando a saudade das curtas se intensifica mas o instinto pelas longas é mais forte. Nesse período as meninas deixam de ser amigos, não jogam mais bola ou queimada, delas vem uma fragrância, um perfume tão especial que inebria e entontece, a língua tropeça nas palavras e os pés no chão. Sem saber o que se quer encontrar, os meninos experimentam coisas novas, algumas proibidas, para criar coragem e crescer alguns centímetros no conceito, na avaliação das garotas. Anacleto, Colchonete e Panela tomaram uma dose cada um de um conhaque barato no boteco do Seo Ferreira e foram gargalhando e cambaleando para o bailinho da Mirtes, famosa pelas festas que dava na garagem da sua casa. Chegaram com cara de quem tinha aprontado alguma, os dois empurrando Anacleto à frente, sem saber o que fazer. Johnny Rivers cantava suave na vitrola e, para surpresa dos três amigos, só tinha meninas no salão improvisado. Puderam escolher quem tirar para dançar e, depois de algumas tábuas, ocuparam o centro a meia luz da garagem numa tão obstinada quanto desastrada tentativa de dança.

Alguns pisões e pedidos de desculpas depois, mais rapazes foram chegando, a concorrência aumentando e, de uma hora pra outra, estavam os três jogados num canto da garagem/salão de baile. Se viram os mais novos ali. Os outros eram rapazes do 2º e 3º anos, além de muitos outros bem mais avançados, barba e bigode grosso. Uns eram reconhecíveis mas muitos outros eram forasteiros, de bairros ou até mesmo cidades distantes. Havia passado o efeito do álcool e com ele o sonho de um bailinho só para eles. Sem saber o que fazer, zanzaram pelo salão como quem não quer nada. Separaram-se para diminuir a humilhação e pescaram aqui e acolá conversas muito importantes que não faziam parte de suas realidades. “…Ingressos para o show da Nara Leão…”, “…Comprei um Opala vermelho…”, “…Então ela ficou nuazinha na minha frente…”, “…Agora é só receber o resgate…”! Anacleto sentiu um sobressalto no peito. Será que entendeu bem? Buscou os amigos com os olhos aflitos. Juntou os dois e cochichou:

– Ouvi dois caras falando sobre um sequestro!

– Eram dois caras altos, um de camisa verde e outro de camisa listrada, cinza e rosa? Perguntou o Panela.

– Esses mesmo, por que? Você também percebeu alguma coisa?

– Passei por eles e o camisa verde disse, “Ela já está com a gente, bem trancada”.

– Nossa, e agora? O que vamos fazer? Perguntou Colchonete. Vamos falar pra polícia?

– Não, respondeu Anacleto. Ninguém vai acreditar na gente. Vamos conseguir provas, ver se descobrimos alguma coisa. Vamos ficar de olho até a hora que eles saírem e daí vamos atrás deles.

– Mas Anacleto, eles provavelmente estão de carro, como vamos fazer? Perguntou Colchonete.

– Quanto vocês têm nos bolsos? Vamos juntar tudo. Pagamos o taxi até onde o dinheiro alcançar, depois voltamos de ônibus. Disse Anacleto, já antevendo na aventura riscos e flertes com a morte.

E assim fizeram. Anacleto ficou vigiando dentro da garagem, Colchonete ficou na porta e Panela na calçada. Quando os dois sujeitos deram sinais que sairiam, Anacleto avisou o amigo que assobiou para o outro no meio fio. Deram sorte! O DKW vinha batendo os cilindros lentamente em sua direção. Subiram rapidamente e pediram para o motorista seguir o Fusca bege do seu primo que arrancava logo ali adiante. O condutor seguiu o outro carro com má vontade, subindo a Rua Dom Bosco e virando à direita na Barão de Jaguara. Atravessaram a ponte e viraram na Avenida do Estado à esquerda, sem sair dela por um longo tempo. Dobraram com o rio à direita, em direção a São Caetano, Santo André, até a divisa com Mauá. O dinheiro já estava no limite e o pavor dos três era visível. O Fusca saiu da avenida e enveredou por ruelas escuras até que parou diante de uma pequena casa. Eles saltaram do táxi uma quadra antes e fingiram ser moradores do local entrando em sua casa. Viram quando a porta da casinha se abriu, deixando vazar a luz para a calçada e a sombra de um homem muito grande. Nisso, uma voz trovejante explodiu atrás dos amigos:

– Quem são vocês?

CaMaSa

Anacleto e o Purgatório

Numa palavra, Anacleto era suicida. Isso não se podia negar. Era, no entanto, um suicida bem peculiar, porque temia a dor tanto quanto desejava a morte. Injeção, nem pensar, gritava como um bezerro só de ouvir falar. Tomar vacina era um desespero, necessário 4 ou 5 pessoas para segurar. Cortes, com faca ou machado, qualquer instrumento cortante, estava fora de cogitação. Certa vez desmaiou ao ver o sangue de um corte em seu dedo, feito por uma folha de papel. Despencar das alturas não era possível, tinha vertigem! E medo também, não de morrer, mas da queda. Imaginava seu corpo batendo com força na superfície dura e áspera, os ossos partindo, mas continuando vivo, cheio de dores. Um atropelamento, frente a um ônibus ou trem, teria o mesmo efeito. Enfim, ele queria o salto mas não o tombo. 

Ana e Cleto, seus pais, viviam atormentados pela possibilidade que ele encontrasse alguma forma de realizar seu objetivo. Acompanhavam seus passos, sempre vigilantes, na esperança de se antecipar a algum movimento mais perigoso. Ele havia terminado o ginásio, iria para o colegial, novas tensões pairavam no horizonte e ele era extremamente sensível. Quando aquela coleguinha da escola mudou-se para longe foi um verdadeiro drama. Foram dias de jejum, nem pão nem água, que só eram interrompidos quando ele se dava conta que na verdade estava se fortalecendo física, mental e espiritualmente. Não que ele tivesse uma noção clara disso, já que seus pais não o forçavam a seguir uma ou outra religião, dando apenas noções básicas. Isso porque, como todos sabiam o caso de Anacleto desde que nasceu, viviam surgindo pessoas oferecendo serviços e soluções espirituais para curá-lo. Havia mais religiões no mundo do que se podia imaginar, cada uma com seu deus próprio, mais ou menos poderoso que os demais.

Ana não fechava as portas para nenhuma esperança, tinha um enorme coração de mãe batendo dentro do peito e acreditava um pouco em cada sugestão. Cleto já era mais cético, prático. Separava os bem-intencionados dos aproveitadores e mantinha estes últimos a uma boa distância. Uma das vizinhas, a Dona Tinha, vivia convidando-os para seu culto, onde ela tocava violão para os louvores. Dizia ela que o pastor era muito franco e poderoso, tendo dado inúmeras provas do seu poder sobre as forças do Mal expulsando, dos necessitados, demônios pavorosos que batiam em retirada para nunca mais molestarem aquelas pessoas. 

– Só vendo para acreditar! 

Os dois, descrentes em princípio, pouco a pouco foram avaliando a possibilidade de uma tentativa, em parte pela insistência de Dona Tinha, em parte pelo comportamento de Anacleto que ultimamente andava um pouco mais estranho, acima do normal. Na verdade estava bem acima do normal. Ele se trancava no quarto por horas e horas, pouco conversava e comia o mínimo necessário. O pouco que vinha comendo era chocolate em pó. Ana, percebendo o interesse alimentar do filho, comprava vários pacotes do Chocolate do Padre e ficava feliz ao ver que o pó de cacau acabava rapidamente. 

Anacleto fazia pouco uso nutritivo do chocolate. Ele estava naquela idade em que os hormônios e desejos estão incontroláveis e urgentes, o corpo vibra e pulsa em lugares inusitados e secretos. É preciso espaço e solidão, coisa que as mães não entendem. Some-se a isso as características pessoais pouco comuns dele, para resultados bem mais estranhos. Anacleto estava mergulhado até o pescoço na Alquimia, buscando e pesquisando sem parar métodos milenares para criação de poções venenosas que não causavam dor nem sofrimento. Chegara à conclusão que o cacau, usado nas cerimônias Incas e Astecas, das regiões mesoamericanas, tinha um papel muito importante para suavizar o sabor dos venenos. Usava nos testes quantidades volumosas do pó, ora com líquidos, ora com outros pós, entre os quais diversos comprimidos comuns macerados num pequeno pilão de pedra. A maioria desses comprimidos eram comprados para uma tia quase centenária do seu pai que sofria de uma terrível prisão de ventre há anos.

Diante do comportamento cada vez mais estranho do filho, Ana e Cleto resolveram aceitar o convite da vizinha Tinha para conhecer o pastor milagroso e seu culto. Ana pensou que não seria simpático chegar de mão abanando e resolveu preparar algum docinho para levar. Decidiu preparar brigadeiros e abriu as latas de leite condensado para misturar ao chocolate. Quando abriu o armário da despensa, viu-se sem nada do cacau. Pensou em comprar, mas não daria tempo, e lembrou do filho. Quem sabe ele teria algum? Anacleto havia saído com o pai para cortar o cabelo e chegar com boa aparência no culto. Ana entrou no quarto e ficou muito feliz quando viu dois potes enormes de vidro com pó de chocolate sobre a escrivaninha. Foi para a cozinha com os potes e preparou caprichosamente os brigadeiros. Quando Cleto tocou a buzina do carro, ela saiu com duas bandejas de doces, com pelo menos uma centena cada.

Chegaram ao local uns 15 minutos antes da hora marcada e foram recebidos com entusiasmo por Dona Tinha. Mais entusiasmado ficou o pastor quando viu as bandejas de brigadeiros. O sujeito, roliço e atarracado, serviu-se logo de 3, 4 bolotas, apresentando-se com a boca cheia da massa marrom escura. 

– Vocês vieram no lugar certo. Vamos dar um jeito nas maluquices desse garoto!

Anacleto baixou os olhos, sem graça, e sentiu no ar o desconforto dos pais. Pensou em sair correndo, mas uma força maior mantinha seus pés no chão, como se estivessem presos a uma bacia de concreto. Ana tentou incentivar pai e filho, mas o mal já estava irremediavelmente feito, ao menos para Anacleto. Cleto, por sua vez, havia colocado o homem no lado ruim da sua lista, mas por amor à mulher e ao seu filho, seguiu resignado para o assento reservado para eles. Calculou que havia umas 70 a 80 pessoas no recinto, e que Ana devia estar contente por ter feito uma quantidade suficiente de brigadeiros. Os doces foram colocados junto a outros petiscos e bebidas, bem na porta de entrada. Provavelmente eram para o final do encontro, mas o perfume dos brigadeiros era tão inebriante que terminaram antes do início da cerimônia. 

O início foi bem curto. Tocaram um hino introdutório, Dona Tinha com violão em punho, e rapidamente o pastor tomou a palavra e o microfone. Pôs-se a falar uma cantilena interminável de qualidades que ele possuía, muitas vezes comparadas às da Bíblia. Recitou todos os tipos de pecados e punições que existiam e como ele se mantinha distante do mal, vivendo uma vida casta e irretocável. Disse que por conta disso era capaz de expulsar satanás daqueles que ofendiam a Deus, de quem era muito amigo. Que os custos da manutenção desses serviços era muito alto e por isso os valorosos auxiliares corriam as sacolas de arrecadação. E, que para provar que tudo que falava era verdade, hoje expulsaria o inimigo do corpo de um jovem ali presente.

Num movimento sincronizado e rápido, dois brutamontes pegaram Anacleto pelos braços e, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, estava diante do pastor. O homem olhou para ele e gritou:

– Meu Deussssssssss…

O “S” saiu bem fininho, como gaz escapando de um furinho minúsculo do botijão. Seus olhos ficaram completamente esbugalhados, sem entender o que estava acontecendo. Pela primeira vez ele sentia que era possível tirar o diabo do corpo, mas desta vez era do corpo dele. Cada bolota de brigadeiro descia pela garganta até o estômago como ferro em brasa cortando manteiga. Quando chegava lá embaixo não tinha remédio, nem Deus segurava. O pior é que se corresse o bicho pegava, deixando atrás de si um rastro de gaz pastoso e, se ficasse, tinha que ser imóvel, concentrando todos os esforços na travação do anel e fazendo cara de quem está entrando no céu pelas portas dos fundos do purgatório. O local virou uma Pompeia moderna, com as pessoas petrificadas em suas posições. Todos, sem exceção, acometidos pela mais implacável dor de barriga. O local tinha três banheiros masculinos e três femininos. Três mulheres e três homens abençoados realizaram em vida o significado de “conhecer o céu na Terra”, sentados em seus tronos de louça branca. Dona Tinha foi uma das que tentou correr, mas acabou enchendo o violão. Era questão de tempo para que todos se aliviassem ali mesmo, expulsando pra valer todo mal que possuíam.

Ana, Cleto e Anacleto, que não haviam provado do brigadeiro por educação, chegaram à conclusão que aquele culto era realmente muito esquisito e deixaram o local, empesteado e malcheiroso, com um bruta má impressão. Ficaram sabendo depois, que levaram uma semana para limpar o local e que, nas investigações sobre o caso, descobriram que o pastor e seus asseclas eram na verdade um bando de facínoras procurados por todo país. Mas desta vez ninguém conseguiu relacionar Anacleto ao caso.

CaMaSa

Anacleto Descobre o Amor

Há um momento único na vida de cada menino, muito sútil e delicado, onde acontece o rito de passagem, a transformação na forma de ser e ver, para muitos imperceptível e irrelevante, mas para os mais sensíveis uma machadada brutal, lâmina grossa e cega, não amolada, bem no meio do peito. Anacleto, distraído com suas questões pós-vida, recebeu o golpe sem nem saber de onde veio. Abatido em pleno vôo, despencou com toda velocidade em direção ao chão duro e áspero da realidade. Quebrou dentes, ralou peles, partiu ossos e pintou de vermelho sangue o asfalto que o recebia. Seu nome era Eva, que significa cheia de vida, e seus caminhos se cruzaram como se cruzam os caminhos de todos: num determinado momento.

Anacleto era uma espécie de celebridade na escola. O salvamento do professor, o caso da falsa terapeuta e outros tantos pequenos casos envolvendo tramas e engenhocas criadas por ele mesmo para tirar a própria vida, faziam dele um assunto recorrente nas rodinhas de alunos e alunas, funcionários e professores. De certa forma quase todos o conheciam e muitos o cumprimentavam sem que ele soubesse quem eram. Então, era muito comum ele reconhecer quase todo mundo, já que todos, vez ou outra, se colocavam diante dele com algum gesto de amizade, uma pergunta despretensiosa ou um elogio. Assim que, quando o momento determinado de Eva e Anacleto ocorreu, não foi tátil, físico, nem mesmo sensorial, como uma troca de olhares. Nada de encontrão com livros e cadernos esparramados pelo chão ou aventais trocados na aula de ciências. Foi muito mais místico, muito mais zen. Foi um pensamento, ou melhor, dois pensamentos!

Ele pensou num lugar tranquilo e isolado para pôr em prática seu mais novo plano suicida. Ela pensou num lugar isolado e tranquilo para chorar suas dores e agonias. Chegaram ao mesmo tempo no galpão abandonado da rua Oscar Horta, abrigo de ratos e pombas, testemunhas do encontro inusitado entre os dois adolescentes. Examinaram-se surpresos, correndo os olhares de cima a baixo, reconhecendo os uniformes da escola um no outro. Ele de calça cinza, camisa branca com o distintivo do colégio bordado no bolso, meias brancas e sapatos pretos. Nela as calças eram trocadas por uma saia encurtada pela dobra do cós. No silêncio constrangido, ambos pensavam em formas de se safar daquela situação. Quando resolveram falar, foi ao mesmo tempo:

– Vim me matar!

Eva era uma menina normal, com a beleza que toda garota de 12 anos tem. Mas Anacleto, ao ouvir o que ela disse, viu diante de si uma deusa juvenil de beleza encantadora. Ele a percebeu loira, com os fios dos cabelos retos e brilhantes na altura dos ombros. O tom era dourado entremeado por mechas castanho claro. Um feixe de luz vazava de um dos muitos furos nas telhas de amianto da cobertura, refletindo sobre seus cabelos e criando uma aura flutuante pontilhada por pontos luminosos de poeira. Os olhos eram verdes, da cor da folha da bananeira, vítreos. O tom da pele aveludada era café com leite, bem clara, levemente avermelhada. Vermelha mesmo era sua boca, foco de atenção dele desde o primeiro segundo. Assim ele a via, não exatamente o que de fato diante de si havia.

Seja pelo inusitado da situação, seja pelo nervosismo e necessidade de descontração, seja porque leve e cheia de sonhos é para os jovens a vida, ambos caíram numa sonora gargalhada e quanto mais riam, mais riam, até que os músculos da barriga começaram a doer de tanto que gargalhavam. Pouco a pouco foram retomando o fôlego, mas a cumplicidade já havia tomado o lugar da desconfiança e a proximidade e intimidade se instalaram naturalmente. Começaram a conversar como se conhecessem há muito, os nomes encaixados no meio da conversa, como quem troca cartões de visita. Suas histórias, curtas até aqui mas borbulhantes de detalhes e vivacidade, eram narradas e absorvidas ansiosamente, ora por ele ora por ela. Eva tinha uma razão simples e objetiva para não mais apreciar a vida, ao contrário de Anacleto cujas razões eram estranhas e complexas, místicas e filosóficas.

Ela sentou ao lado dele e começou a contar sobre sua família e a harmonia que existia entre seu pai, sua mãe, ela e sua irmã mais nova, Ritinha, como eram felizes na rotina familiar e no dia a dia. O pai trabalhava numa loja de departamentos, a Mesbla, aquele prédio enorme de tijolos, do outro lado do rio, na Avenida do Estado. A mãe cuidava da casa e das filhas, preparava o almoço e a janta, fazia bolos e doces perfumosos para o lanche da tarde. Aos fins de semana, o pai sempre inventava um passeio surpresa, um parque, um cinema ou teatro infantil. Em datas especiais pegavam a estrada e iam passar o dia na praia, em Santos ou São Vicente, eventualmente uma aventura mais emocionante indo até a praia das Tartarugas, no Guarujá. Era um tempo simples, de fuscas e peruas kombis, rádio de pilha e televisão em preto e branco. A felicidade chovia aos borbotões e os problemas eram do tamanho do salário. Mas tudo estava por terminar. O pai havia recebido uma promoção que envolvia uma transferência para outro estado, no Nordeste, mas a mãe não queria se mudar. As discussões entre os pais começaram ponderadas e educadas, passaram a ser irritadas e agressivas, desembocando numa torrente de acusações e pedidos de separação.

Anacleto ouviu todo relato pacientemente, sem emitir um pio. Na verdade ficaria ali por dias e dias ouvindo aquela melodia suave e doce que saia daquela boca. Ele não via no relato dela motivo algum para se tirar a própria vida, antes era só um mal estar passageiro, chato mas de fácil solução. Assim que, para parecer adulto e compreensivo, pôs-se a explicar como via a situação, apontando aqui e ali os pontos positivos da situação e as diversas soluções para as partes complicadas. E de tal modo construiu uma narrativa de positividade e otimismo, que ambos sentiram que era real e verdadeira a possibilidade de tudo se acertar e as coisas não só voltarem a ser boas como eram mas muito melhor. E cheios de esperança e um sentimento não identificado no peito, saíram do galpão abandonado em direção à suas casas. Ele disse que ia acompanhá-la até sua casa. Ela morava do outro lado da Avenida Radial Leste, na Rua Wandenkolk. Andaram lado a lado, ela de vez em quando pegava em seu braço, falando de amenidades e coisas da escola. Quando chegaram na porta do prédio se despediram e, antes que ele se virasse, ela o beijou levemente nos lábios. Virou-se e correu rapidamente para dentro.

Anacleto nunca soube como chegou em casa, ou melhor, tinha certeza que chegou em casa flutuando, deitado em nuvens de algodão branquinhas e fofinhas. Lembrava vagamente de buzinadas, freadas e xingamentos durante algumas partes do percurso, mas sentia que não eram para ele. Eram rotinas terrenas distantes, coisas minúsculas e insignificantes, incapazes de atingi-lo. Seja como for, chegou em casa sem um arranhão e nem mesmo a porta de entrada que tentou atravessar sem abrir o incomodou ou foi suficiente para fazê-lo despertar do sonho. Sua mãe, acostumada com os devaneios malucos do filho, nem deu muita atenção, concentrada que estava preparando o jantar, mas o pai, esse não deixou passar despercebido o olhar abobalhado do garoto, vez que ele mesmo já havia experimentado esse sentimento de abestalhamento na juventude. Seu filho podia estar apaixonado e isso só poderia ser uma boa notícia. Não comentou nada, respeitou o espaço do menino e o deixou sonhando acordado em seu quarto, deitado na cama e olhando fixamente para o teto, vendo um futuro cor de rosa real e verdadeiro como promessa de político em campanha.

No dia seguinte Anacleto saiu de casa sem tomar o café, enquanto seus pais ainda dormiam. Foi o primeiro a chegar na escola, com os portões ainda fechados. Esperou pacientemente o dia preguiçoso assumir seus afazeres, desde as primeiras luzes do Sol quebrando a madrugada escura. Viu o leiteiro, o jornaleiro e todos trabalhadores madrugadores iniciarem suas lidas. O caseiro da escola abriu a porta e deu de cara com ele, mas não permitiu sua entrada. Chegaram as primeiras serventes e faxineiras, professores e diretores. Os alunos foram despencando às dúzias, os menores acompanhados de suas mães ou pais. A algazarra aumentava cada vez mais, mas nada de Eva. Ele começou a ficar ansioso, postado diante do portão e conferindo um a um para ter certeza que a veria. Pouco a pouco todos foram entrando, a gritaria foi silenciando, até que só restou ele e um silêncio fúnebre do lado de fora do colégio.

Mais tarde naquele dia, Anacleto soube, através de amigas das amigas de Eva, que ela havia partido com seus pais para uma nova vida em Fortaleza, no distante Ceará. Soube também que o motivo das brigas entre seus pais era ela, que não queria ir embora e deixar a escola para trás; que a mãe compreendia o sentimento da filha e por isso optava por ficar também, a ponto de discutir com o marido que era irredutível quanto a aceitar o novo emprego numa nova cidade. Era tão conflituosa a situação que estavam a ponto de se separar. Alguém muito próximo da família disse ainda que ontem havia acontecido um milagre. Ao voltar para casa, Eva estava alegre e radiante, dizendo que havia mudado de ideia e não via a hora de conhecer a nova casa, da nova cidade. Ninguém, nem ela mesma, conseguia explicar o que havia acontecido. Ele ouvia tudo como alguém que não escuta, vendo tudo como quem não enxerga, atento somente ao ribombar do vazio do seu coração.

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Anacleto e a Terapeuta

Anacleto não era uma criança normal, todos já haviam percebido. Seus interesses eram, digamos, sutilmente tortos e arriscados. Os pais que já são naturalmente preocupados com a segurança dos filhos, no caso dele eram alucinadamente aflitos e viviam angustiados. Verdade seja dita, fora essa tendência autocida, o menino era um doce, tranquilo e sossegado, estudioso e responsável, com notas muito acima da média. Se relacionava bem também com os colegas de escola e professores, ainda que invariavelmente os temas de suas conversas versavam sobre a morte em algum momento. Para ele a morte não tinha a conotação fúnebre e dolorosa que os mais adultos tinham, ele era uma criança caminhando para seus 10 anos de idade. Era muito mais uma aguçada curiosidade mórbida resultado de experiências sensoriais e emocionais vividas no período gestacional e do parto. Ou tinha um parafuso solto mesmo!

Pelo sim pelo não, a escola aconselhou Ana e Cleto a procurarem acompanhamento psicológico. Indicaram a Dra. Marta Gouveia, renomada profissional com mestrado na Stanford University (Estados Unidos), número 1 do ranking em psicologia, é considerada pela THE a 4ª melhor universidade do mundo. Localizada no coração do Vale do Silício, na Califórnia, a universidade tem um dos maiores campus dos Estados Unidos, com 18 institutos de pesquisa e 7 faculdades, onde estudam mais de 16 mil estudantes vindos dos 50 estados americanos e de mais de 90 países. Com a ajuda do colégio e uma vaquinha dos vizinhos, conseguiram marcar uma consulta para dentro de dois meses, numa tarde de quarta-feira, às 15hs. Os pais passaram essas oito semanas num misto de esperança e agonia que, pouco a pouco, foi se transformando em choro e ranger de dentes de tanta expectativa e ansiedade.

Na data marcada, os dois acordaram às 4 horas da manhã, apesar de terem ido dormir às 2 horas! Temiam a reação de Anacleto, temiam o veredito da terapeuta. Temiam o dia, temiam a noite. Temiam Deus e o Diabo. Ter um filho como o deles era padecer no inferno mesmo. Quanto maior era o amor por ele, maior era a preocupação que ele se fizesse algum mal. Chegaram ao consultório 50 minutos antes da hora marcada e foram atendidos 2 horas depois. Sentaram-se Ana e o menino, Cleto postou-se atrás dos dois, ofegante. A psicóloga, imponente, rodeada de diplomas, pôs-se a enumerar seus inúmeros cursos e mestrados, teses e livros lançados em diversos idiomas. Falou sobre a origem da psicanálise, Freud, Jung e outros tantos doutores dos meandros mentais, essa parte fundamental para compreensão humana. Cleto já não mais ofegava, adormecia em pé, embalado pela verborragia sem fim da mulher à sua frente. Ana virava-se para trás e discretamente cutucava o marido para que acordasse. Já o menino ouvia tudo atentamente interessado, quase sem piscar, quase sem respirar.

De repente, cessou o blá-blá-blá. A Doutora pediu que os pais se retirassem, pois teria que conversar a sós com o menino. Somente assim ela poderia exercer todo seu conhecimento e perícia para elucidar as razões primeiras que levavam essa criança tão bonita e dócil pensar em atos contra a própria vida. Saíram da sala entre aliviados e esperançosos, sendo recepcionados por uma funcionária ágil e eficiente na elaboração do recibo de pagamento. Cleto tirou sem jeito as notas amarfanhadas coletadas entre os parentes e amigos, espalhando tudo sobre o balcão de vidro limpíssimo, vendo a moça recolher tudo numa expressão de nojo e desaprovação. Certamente ela estava acostumada aos cheques bem preenchidos e perfumados dos clientes endinheirados que por ali passavam para desfilar suas insatisfações pessoais que só o luxo e a riqueza são capazes de proporcionar. Sentaram-se e esperaram e esperaram… Ana não se movia e tentava acalmar o marido que levantava e sentava sem parar. E esperaram… Muito! Até ela já estava agoniada. Que será que está acontecendo, meu Deus? Perguntaram para a recepcionista quando essa pegou suas coisas e saia para a porta sem nem mesmo se despedir:

– Moça, é normal ficar tanto tempo assim com alguém?

– Olha, respondeu emburrada, eu já vi de tudo aqui. Por isso quando dá meu horário pego minhas coisas e vou embora.

O obrigado de Ana morreu na garganta porque a moça bateu a porta atrás de si antes mesmo que ela falasse. Sentaram-se novamente e esperaram e esperaram. Cleto roncava como uma motocicleta quando Ana o chamou:

– Cleto, eu vou entrar lá.

Ele levou alguns instantes até entender que não estava sonhando com uma plantação de tomates que gerava morangos, e dirigiu-se com a esposa para a porta onde estava seu filho. Nem bateram, giraram a maçaneta dourada polida e invadiram o recinto. Surpresos, viram Anacleto sentando na cadeira da terapeuta, brincado de girar alegremente, com os pés suspensos no ar! Procuram por todo canto, no banheiro, nos armários, embaixo da escrivaninha, nem sinal da doutora. Notaram a janela aberta e uma leve brisa balançando a cortina de voal imaculadamente branco. Entreolharam-se preocupados, gelados e petrificados, e perguntaram ao filho o que tinha acontecido?

Anacleto disse que estavam conversando animadamente, a tia era muito legal, falava de pessoas que tinham esse ou aquele transtorno, que era algum tipo de dificuldade que a pessoa tinha para agir de uma certa maneira numa determinada situação e que tinha um velhinho que tinha entendido como a cabeça da gente funciona e tal. Depois que ela falou um monte de coisas imitando voz de criança, apesar de ser bem velha e não combinar nada nada aquela voz com ela, perguntou se eu tinha alguma dúvida muito profunda, quer dizer, escondida bem dentro da cabeça da gente, e se eu queria que ela me ajudasse a encontrar as respostas? Eu perguntei de onde eu vim, quem eu sou e para onde eu vou? E como ela começou a gaguejar e se enrolar sem saber se estava falando ou cacarejando, eu comecei a falar pra ela das coisas que eu lembrava, que eu sentia e sabia. Falei o que pode falar uma criança de 10 anos, com toda inocência e sinceridade, a mais pura veracidade, plena de certeza e honestidade. Num dado momento a mulher se pôs a chorar feito um bebê, dos olhos saiam lágrimas como de uma torneira. E quanto mais eu falava mais ela chorava e não havia em nenhum de nós o desejo que aquilo acabasse. E tanto falei que ficou claro que o meu desejo não era doença mas uma sina que todos nós um dia seremos, em verdade.

– Então, pai, mãe, a mulher, tão boazinha, coitada, se levantou da cadeira, me olhou e abriu a janela, dando uma bela cafungada no ar fresco que entrava. Deu um sorriso meio de lado e se jogou lá embaixo!

– Valha-me Deus! Gritaram os dois desesperados, sem lembrar que o consultório ficava numa casa térrea do Jardim Europa. Os dois correram para a janela e só então, ao verem a grama verdinha a um metro de distância, exalaram o ar preso nos pulmões. Pegaram o menino e saíram de lá sem olhar para trás.

Naquele domingo pela manhã, Cleto folheava o jornal calmamente enquanto saboreava o café quentinho passado pelo coador. Chamou sua atenção uma manchete em letras garrafais sobre uma falsária que havia se entregado espontaneamente à polícia. A matéria dizia que a tal se fazia passar por terapeuta nos Jardins, tendo entre sua clientela a fina nata da elite paulistana, entre empresários, políticos e até um bispo. Dizia-se que ela fora levada por uma crise muito grande de consciência depois de ter atendido um jovem cliente. Arrependeu-se do mal que havia feito a centenas de pessoas, iludindo-as com falsas ilusões.

Cleto olhou o filho brincando distraidamente no chão com carrinhos e bonequinhos, simulando uma via de trânsito. Sentiu uma alegria tão grande que quase agradeceu pela dádiva que a vida lhe dera, mas gelou quando viu Anacleto pegar um carrinho e atropelar um dos bonequinhos.

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