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Naquele fim de tarde de sexta-feira da paixão, quando minha mãe foi me buscar no colégio Dom Bosco, me encontrou de mãos dadas com aquele padre jovem e simpático. Eu estava com os olhos inchados de chorar e o padre explicou para ela o que havia se passado durante a exibição do vídeo da Paixão. Trocaram sorrisos cúmplices e despedidas, e voltamos calados para casa. Quando chegamos à comodidade e segurança do nosso lar simples e modesto, minha mãe me abraçou ternamente e perguntou porque eu havia chorado? Tentei explicar mas a emoção tomou novamente meu peito de assalto e as palavras começaram a rolar umas sobre as outras, engasgadas e confusas.

A Mãe, afagando carinhosamente meus cabelos, começou a me explicar o significado de todo aquele tormento, mas que eu não me preocupasse porque no domingo, de Páscoa, esse homem tão bom ressuscitaria, trazendo esperança para todos os homens! Que se eu acreditasse nisso de coração, no domingo pela manhã eu teria a prova, ganhando um grande e saboroso presente! 

Ouvi aquilo com ouvidos destampados e olhos arregalados… Como poderia alguém renascer dos mortos? Ela mesma, e todos que me cercavam, viviam gritando para mim: – Cuidado menino, sai de perto do balcão! Olha o carro! Cuidado pra atravessar a rua! Quer morrer? Se morrer, nunca mais vai jogar bola, chupar bala e sorvete! A verdade é que fiquei muito contente pelo Homem Bom, mas confuso como passarinho que caiu do ninho! Além disso, o tio do Alvinho, meu amiguinho da rua, tinha morrido de tanto tossir e nunca mais ninguém viu ele por estas bandas! Teve também o caso muito triste do cachorro da Dona Candinha, companheiro inseparável, cheio de truques de saltar, andar sobre duas patas, dar cambalhotas, tudo por causa de umas bolachinhas. Um dia, durante uma exibição rotineira diante de uma plateia de crianças sujas do pó da alegria da rua e olhos ansiosos para ver o mesmo truque sendo repetido pela enésima vez, o vira-lata preto e branco de rabo cortado fingiu-se de morto pela última vez.

Perguntei para a Irmã mais Nova que correu atrás de mim com a vassoura com a qual ela tinha acabado de varrer o piso da sala e eu estava sapateando com os sapatos sujos. Depois tentei a Irmã mais Velha que pacientemente me deu uma explicação longa e comprida, cheia de palavras difíceis que eu não entendia. Disse também para que eu não me preocupasse porque no dia seguinte, Sábado de Aleluia, a justiça seria feita pois seria “malhado o Judas”, o homem que havia traído o Homem Bom. Fui dormir com a esperança que nessa malhação eu pudesse encontrar algumas respostas e, principalmente, no domingo eu tivesse a prova do renascimento, ganhando o tal presente.

Acordei no sábado bem cedinho e corri pra rua engolindo rapidamente o leite com Toddy e o pão com manteiga Paulista. A rua estava tomada por um burburinho diferente, uma excitação em torno de um boneco engraçado, parecendo um espantalho. Haviam juntado roupas variadas, cada um trouxe uma peça, calça, camisa, paletó e chapéu, tinham arranjado até uma gravata de bolinhas vermelhas, dando ao boneco uma aparência muito distinta! Costuraram firmemente as barras das calças e os punhos da camisa, e enchiam o interior com palha e jornal picado até que a figura ficasse completamente gordo e estufado. A cabeça era improvisada por uma velha bola de plástico, tão velha que a pintura dos hexágonos pretos imitando bola de capotão já haviam desaparecido. No seu lugar haviam pintado olhos, nariz e boca, uma franja rala, dando ao rosto improvisado uma aparência boba, de quem não estava entendendo o que se passava.

Penduraram o boneco no poste de concreto dos fios da Light, recém plantado na rua, e o cercaram com tacos de madeira e ferro, num alarido crescente de excitação. Quando o Sol já estava quase a pino, com a sombra do poste escondida sob ele mesmo, o Seo Pafúncio, dono da fábrica canetas tipo Bic, da Rua Luiz Gama, subiu numa escada de madeira e despejou querosene sobre o boneco Judas, que ficou completamente encharcado. Com a turba de adolescentes e crianças afastada em segurança pelos mais adultos, ele ateou fogo no infeliz, lançando sobre ele um fósforo aceso.

Todos urravam de prazer vendo aquelas roupas cheias de palha e papel arderem numa enorme bola de fogo. Depois de um tempo o fogo diminuiu de intensidade e os mais valentes se aproximaram e se puseram a espancar o boneco queimado, até que ele caiu no chão inerte. A pancadaria aumentou, com pancadas e chutes vindos de todos os lados. Um desses golpes atingiu a cabeça bola de futebol que saiu rolando pela rua, atravessando-a, em minha direção. Parou bem diante dos meus pés, toda chamuscada e deformada, num sorriso triste de quem pede perdão com toda sinceridade e coração. Perdoei, na esperança de que no dia seguinte aconteceria o tal milagre da Ressurreição, como havia me repetido duas centenas de vezes minha Irmã.

No domingo pela manhã acordei com os gritos e palmas da Irmã mais Nova, que pulava em volta da mesa da cozinha, em cujo centro havia um enorme ovo de Páscoa embrulhado num brilhante papel celofane vermelho, preso por fitas coloridas num laço. O Pai havia comprado ou ganhado numa rifa, não sei, mas o seu sorriso de satisfação ao ver nossa alegria, tornou-se inesquecível para mim. Não faço a menor ideia do tamanho ou peso real daquele tesouro. Para mim, à época, era o maior ovo de chocolate que eu jamais havia visto! Tenho a impressão que eu poderia entrar dentro dele para comer as centenas de bombons ali guardados. Lembro que somente o rígido controle da Mãe pode mantê-lo afastado de nossas bocas vorazes por muitos meses, mas que na verdade como eu não tinha a menor noção de tempo naqueles tempos, podem ter sido só alguns dias. Naquele domingo comi mais chocolate do que havia comido em toda minha vida até então, e fui dormir com a barriga cheia de cacau e açúcar, completamente esquecido do Homem Bom e sua ressurreição.

Naquela noite tive um sonho fantástico! Eu era um jovem de 16 anos, quase adulto para o padrão da época em que o sonho aconteceu. Eu vivia numa região desértica e arenosa, cercado de pessoas que falavam uma língua estranha, mas que eu compreendia completamente. Minha família e os que nos eram próximos discutiam de modo sigiloso, quase sussurrando, os últimos acontecimentos e a morte por crucificação daquele que era tão amado e querido. Eu e o primo Efraim tínhamos subornado os guardas romanos na porta do túmulo e levado o corpo dali. Seria preparado com todo respeito e carinho e enterrado longe, num lugar secreto onde somente aqueles que o amavam saberiam onde era. Já era domingo, todos ainda choravam sua ausência quando uma pequena criança, nos seus 6 ou 7 anos, pôs-se a falar e consolar a todos. Explicou que aquele que se fora estava vivo e eternizado em nossos corações, que celebrássemos pois o Mestre estará sempre, em sua forma humana, junto aos seus discípulos, para todo o sempre.

Algumas das pessoas presentes acusaram o menino de blasfemo e lhe viraram as costas, mas outras reconheceram em suas palavras e em seu olhar a mesma sabedoria e doçura daquele que os deixara. Seguiram seus passos e ensinamentos, agora discretamente sem chamar a atenção dos inimigos, interessados somente na Verdade guardada em segredo no peito. E assim tem sido de geração em geração, ao longo dos séculos, o encontro do Mestre e seus discípulos para aqueles que pedem com o coração de uma criança e, sinceramente, desejam ter seu Conhecimento.

CaMaSa