Cleto
Ele era o 7° filho de uma família que já contava com seis meninas e todos sabem que nesse caso ele deveria ter nascido um lobisomem. Mas de lobo ele não tinha nada. Estava mais pra cordeiro. Não o de Deus. Era manso de verdade, quase bobão, resultado da imensa quantidade de amor fraternal despejado sobre ele. As irmãs o receberam como um boneco para brincar, beijar, abraçar, lavar, passar talco, trocar a fralda, vestir saia e blusa, enfeitar com colares, pulseiras e anéis… Para elas foi uma grande novidade, ele era diferente, tinha algo a mais. Entenderam também que depois dele a cegonha não daria mais as caras por ali. O pai ficou radiante, como quando o time do coração vencia o campeonato. Quando isso acontecia o radinho de pilha não era jogado com raiva na parede. Ficava feliz, pimpão, saltitante, carinhoso… Exibiu com orgulho desmedido o rebento nu para a vizinhança. Parabenizaram, comemoraram com muita cerveja e pinga. Voltou para casa bêbado e caiu desmaiado na cama. A mãe agradeceu a Deus. Estava cansada de parir.
Como a mãe chamava Cleide e o pai Toninho, puseram-lhe o nome de Cleto, numa auto homenagem pobre e sem graça. Cletinho ia das tetas da mãe para as mãos ávidas das irmãs. Passava de uma para outra numa ordem hierárquica da mais velha para a mais nova. Geralmente chegava na última todo cagado e mijado. São as agruras dos caçulas! O mesmo acontecia com as roupas, sapatos e bonecas de pano. Pobres, elas não podiam sonhar com uma boneca de porcelana ou de plástico, com olhos azuis de contas coloridas. As roupas, presente de alguma tia ou madrinha, já de segunda ou terceira mão, eram descoradas filha a filha, penduradas no varal, cosidas e remendadas centenas de vezes, chegando na mais nova brancas e esgarçadas. Quando ganhavam uma boneca de alguma prima mais abonada, a pobre passava por um processo de desconstrução anatômica cirúrgica. Acolhida como uma joia de imenso valor pela irmã mais velha, ia perdendo os cabelos, os olhos, braços e pernas, conforme passava para a próxima irmã, chegando à última somente um cotoco rabiscado, feio e sem graça. O irmão parecia ser mais resistente e durável. No início era muito frágil e inerte. Mamava, dormia e cagava. Depois, pouco a pouco, foi ficando mais forte e ativo, se mexia e se movimentava. Reagia aos estímulos. Chorava quando era beliscado. Mas gritava pra valer quando tinha fome.
A Fome, com “F” maiúsculo, morava naquela casa. Os dias sugando o leite aguado da mãe terminariam e ele seria mais uma boca em busca de comida. Aos poucos a novidade ia perdendo o brilho para se tornar um concorrente privilegiado pelos pais. Quando tinham a barriga cheia, usavam-no para brincar e passar o tempo. Era muito divertido irritar e judiar do irmãozinho que não tinha como se defender daquelas meninas. Ora o tratavam bem e com carinho, ora maltratavam e batiam, sem que a mãe percebesse. Estava sempre cercado de atenção, sempre havia uma delas de sentinela, para o bem ou para o mal. Eventualmente era largado num canto, como um brinquedo velho que já não desperta interesse. Gostava da companhia da solidão, imerso em seus primeiros pensamentos, tentando entender o significado das coisas que lhe aconteciam, do vento nos cabelos, do calor do Sol em sua pele, da rudeza do pai, da distância da mãe e da crueldade das irmãs. O pai era sua única referência masculina. Morava na roça, numa pequena casa de madeira distante do centro de Salete, pequeno vilarejo do interior de Santa Catarina, isolada no tempo e no espaço, onde a modernidade do papel higiênico ainda era desconhecida de quem limpava-se com sabugo de milho. Para as primeiras letras havia um pequeno convento, onde irmãs devotadas à Fé ensinavam os primeiros rudimentos às meninas da região em troca de algum alimento. Não aceitavam meninos. A mãe de Cleto deixou crescer seus cabelos e vestiu-o com um vestido das irmãs. Assim passou ele toda a infância, até que os sinais da adolescência ficaram mais volumosos e evidentes do que simplesmente um buço de uma menina feiosa.
Certa vez, voltando para casa numa tarde fria e chuvosa de julho, separou-se das irmãs, distraído por uma colméia de abelhas zunindo no alto de um pinheiro. Pôs-se a escalar o tronco reto e escorregadio, ignorando os chamados das irmãs que seguiam sem esperá-lo. Não lhes deu atenção, focado em seu objetivo de obter o mel que escorria dos favos lá em cima. A barriga roncando vazia era sua maior motivação. A cada palmo avançado, maior era o desejo e a esperança. Um pouco mais, um pouco mais… Viu-se saboreando o líquido dourado e doce, dedos lambuzados e escorregadios. De repente, sentiu a primeira ferroada em sua nuca, ardida e dolorida. Resistiu sem soltar as mãos, até que sentiu a segunda e a terceira. Choveram abelhas zangadas sobre ele. Teve que soltar uma das mãos para espantá-las. Desprendeu-se do tronco da árvore, perdeu o equilíbrio e despencou pelo ar até bater a cabeça no chão duro, de terra roxa, lá embaixo. Ficou ali inconsciente por um bom tempo, livre da dor das picadas, pelo menos até acordar. Já era noite alta então, ele fez um esforço para pôr-se de pé e, mesmo com a cabeça girando, viu que não havia quebrado nenhum osso. Retomou o caminho para casa amuado, deixando o mel saboroso para suas donas. O caminho, que a princípio lhe era familiar, foi se tornando cada vez mais estranho. As sombras da noite produziam cenários fantasmagóricos e assustadores, confundindo-o sobre as melhores opções a seguir. Perdeu-se e, ao invés de ir para casa, seguiu na direção oposta, rumo ao centro da aldeia. Antes mesmo de chegar até as franjas da pequena vila, deparou-se com três vultos à beira do caminho. Eram meninos como ele, entretidos em acender um cigarro de palha que haviam surrupiado de algum adulto. Não perceberam que ele se aproximava e, quando o viram a poucos passos, pularam assustados vendo aquela assombração envolta num lençol branco esfarrapado!
Cleto, não menos apavorado, superou sua imensa timidez e pôs-se a falar-lhes, explicando quem era e que estava perdido, precisando de ajuda. Os meninos eram da sua idade e naturalmente desconfiados. Levaram um tempo até entender o que era aquele outro garoto, magro e maltrapilho, vestido com roupa de mulher. Ainda puros e sem maldade, compadeceram-se dele e resolveram ajudá-lo. Conhecedores da região, pelas pescarias e caçadas, logo identificaram o lugar onde deveria ser a sua casa e puseram-se a caminho, contando estórias engraçadas sobre as suas proezas ao novo, e bem estranho, amigo. Questionaram seus cabelos longos e suas vestes, inapropriadas para um menino. Ele era como um deles, falaram, e deveria usar calças como todo homem. Bombardeavam-no com aventuras e desventuras, afirmações e perguntas para as quais ele não tinha respostas. Sentiu uma energia diferente fluir-lhe pelas veias, forte e ardente, como um bezerro que se reconhece touro. Sentiu a pele despegando de si, como uma cobra que troca a capa, deixando um saco vazio para trás. Compreendeu que era um homem, diferente de suas irmãs, e esse era seu destino. Beliscou-se para ver se ainda estava dormindo, caído no chão, sonhando. Não, era real, como a vitalidade que emanava dos seu companheiros, ainda moleques, mas com um futuro bem definido. Chegou em casa no meio da noite escura. Os meninos o deixaram na porteira de ripas e voltaram saltitantes e felizes para suas casas. Ele atravessou a pequena horta à frente da casa, subiu o alpendre e abriu a porta de mansinho. O pai, a mãe e as irmãs estavam em volta do pequeno lampião tremeluzindo sua luz amarela e fraca. Tentaram falar mas a voz morreu em suas gargantas quando olharam em seus olhos. Aquele não era mais o filho e irmão, era outro.
Ele assumiu a responsabilidade que lhe cabia e cuidou da família. Casou uma a uma as irmãs, deixando a cada enlace a casa mais vazia. Cada uma delas partia para algum lugar distante dali, em busca de seus sonhos de família. Deixavam endereço, ele escrevia, mas nunca recebia resposta. Nem mesmo quando o pai adoeceu e morreu, levado pela cirrose do fígado. Sobrou-lhe a mãe, cansada e frágil, única companhia. Doente, passava os dias deitada na cama. Ele a alimentava, banhava e a mantinha aquecida, até que ela dormiu uma noite para não acordar mais. Enterrou-a ao lado do pai, colocando uma cruz ao lado daquela mais antiga. Juntou os trapos, negociou a pequena propriedade, porteira fechada, com um comerciante da cidadezinha e partiu com uns poucos trocados em busca de outros ares. Foi de carona, na boleia de um caminhão até Florianópolis e de lá subiu num ônibus para São Paulo. Na metrópole de então, viu-se rodeado de multidões mas ainda mais perdido e sozinho. Adaptou-se rapidamente por necessidade e conseguiu um trabalho de entregador no mercado municipal. Sua função era entregar ovos recém-chegados nos restaurantes movimentados do centro da cidade. Caminhava a pé quilômetros por dia, de domingo a domingo. Raramente o patrão lhe dava um dinheiro para uma entrega por condução, bonde ou ônibus. Somente quando algum dono de restaurante explodia irado ao telefone, aflito para atender a freguesia, o chefe o chamava de lado e ordenava que fosse voando até o estabelecimento da Rua de Tal. Ele, então, saltava para dentro de um coletivo com as bandejas de ovos branquinhos.
Naquele dia ele entrou afobado no ônibus, com as mãos ocupadas pela carga delicada, e não pôde manter-se firme de pé quando o motorista arrancou bruscamente. Cleto foi lançado para frente e viu os ovos voando pelos ares como passarinhos, desesperado e indeciso entre salvar a carga ou o nariz que ralaria no chão de metal liso. Antes de se esborrachar no chão, foi contido por um anteparo salvador bem no meio do corredor. Viu-se aninhado num corpo macio e perfumado, de um anjo que estava ali só para salvá-lo. Encaixado nesse pedaço de paraíso por três eternos segundos, amou aquela moça ali mesmo como jamais o fizera antes, e jurou que com ela se casaria. Teve que esperar que ela acordasse, para somente então perguntar o seu nome. Ela, entre assustada e encantada, respondeu que seu nome era Ana.
CaMaSa