fbpx
Escolha uma Página

Ante

Ante

 

É a coisa mais simples e abundante,

na terra, no mar e no ar circundante.

Na menor célula mais insignificante,

até no fim do universo mais distante.

 

No entanto não se faz de arrogante,

pelo contrário, é tão impressionante 

sua humildade discreta e constante,

plena de uma graça muito elegante.

 

Cuida de cada um como um amante,

nos faz sentir aquilo que é importante,

para entender o infinito num instante,

ante este vivo e belo planeta errante.

CaMaSa

Filmes

A vida seguia de mansinho naqueles dias, com muito sol no rosto e canelas finas de fora. Tinha quem me trocava de roupa, dava banho e me alimentava, de amor e comida. O mundo ia pouco a pouco se ampliando, com os amigos próximos sendo cuidadosamente separados dos mais distantes. Formavam-se vínculos eternos que seriam rompidos na primeira desavença. Ter 6 anos de idade tem suas recompensas e prejuízos, igualzinho ao mundo dos adultos, mas numa escala reduzida. Então, a cada dia há uma imensa carga de felicidade, trazida pelas coisas simples de um pega-pega, um esconde-esconde, uma corda que se pulava… Tac… Tac… Tac… batendo no chão.

Mas o crescimento é irreversível e, chega uma hora, os adultos já não aguentam mais você pulando e brincando pela casa e acabam procurando uma escola para te ocupar. No meu tempo chamava-se Jardim da Infância, hoje deve ser Maternal ou algo assim. Só sei que consegui ser expulso do tal jardim, e não sei se mais alguém conseguiu tal proeza? O motivo banal, incompreensível para mim na época, era que eu corria atrás das meninas da classe para beijar. Não era normal? Ver uma coisa, achar bonita e beijar! Seja quais fossem os critérios pedagógicos da época, fui convidado a me retirar do colégio. Minha mãe foi chamada e explicaram que eu, talvez, fosse muito imaturo para estar ali. Voltamos para casa ambos muito tristes. Ela porque estava preocupada com as entregas dos vestidos encomendados que tinha para terminar e eu porque não entendia o que tinha feito.

As tardes ficaram mais aborrecidas porque os amigos todos iam para o Jardim e eu ficava sozinho, vagando pela calçada da Vila Alvarenga próxima, fazendo buracos com palitos nos vãos dos paralelepípedos de granito que calçavam a rua. Para me ocupar, minha mãe um dia teve a ideia de me levar até a quadra de futebol do Colégio Dom Bosco, ao lado da capela do mesmo nome. Dom Bosco (1815-1888) foi um sacerdote católico italiano, fundador da Congregação Salesiana. Atuante em assuntos sobre educação foi considerado grande protetor da juventude. Foi canonizado pelo Papa Pio XI. João Melchior Bosco nasceu em Becchi, próximo a Turim, na Itália, no dia 16 de agosto de 1815. Por ser italiano, isso tinha grande significado para minha mãe. Segundo ela, Dom Bosco tinha inventado o futebol, amava as crianças e o Palestra (!!!), e era um legítimo representante de nosso senhor Jesus Cristo, o filho de Deus e o homem mais bondoso que já havia pisado nesta terra. Tudo eu escutava de ouvidos e olhos bem abertos, e boca bem fechada, pois ali estavam sendo dados avisos muito claros de que eu deveria seguir os bons exemplos e me afastar de tudo que fosse ruim.

Antes da quadra de futebol, tinha a passagem obrigatória pela capela. Como outras a quem eu fora gentilmente arrastado, era escura e fantasmagórica, com suas imagens assustadoras de gente sofrida e vestida de uma forma estranha. Me levou pela nave central até o altar onde, no alto, se via a imagem de um senhor de idade, um velhinho de cabelos esbranquiçados, vestido com uma túnica escura que descia até os pés, roupa de padre, ladeado por dois garotos e com um leve sorriso amistoso no rosto. Tive a impressão de que havia uma bola nos pés, mas achei que estava imaginando coisas. Saímos pela porta lateral à esquerda, mas antes paramos diante de uma estátua clara e colorida, de um homem bonito, alto, com os cabelos bem compridos espalhados pelos ombros. Tinha uma expressão serena que contrastava totalmente com um coração vermelho sangue saltando no centro do peito, envolto em espinhos e labaredas de fogo. Aquele era Jesus, disse minha mãe! E eu saí de lá mais desentendido do que entrei.

Quando chegamos na quadra, lotada de garotos muito maiores que eu jogando futebol, tive uma vontade tão grande de jogar e chutar a bola que larguei a mão da minha mãe e corri em direção ao centro campo. Não era de grama, era de cimento, pedra e areia, duro e perigoso. Mal toquei o chão, escorreguei, caí de lado e arranhei a perna! Minha mãe gritava enquanto o jogo era paralisado para compreender do que se tratava. Visto que era só um pequeno fedelho caído no chão, retomou o ritmo acelerado e cheio de gritos. O juiz da partida, um padre jovem e simpático, vestido com uma batina bege, veio em nossa direção para prestar algum tipo de socorro. Minha mãe explicou os motivos da minha presença ali e o padre assumiu a responsabilidade pela minha estadia, dizendo a ela que eu participaria das atividades normais do dia, e que ela voltasse às 5 horas da tarde para me buscar.

Ele só não explicou que as atividades seriam ficar sentado à beira do campo, assistindo ao jogo sem participar, assistir a missa e depois um filme antigo, em preto e branco, na pequena sala de projeção da escola. Sem jogar, assistindo missa em latim, a perspectiva de um filme antigo não era das melhores para mudar meu humor. De fato, o filme pulava e repicava, de vez em quando parava e a turma na sala, fedendo a suor de partida de futebol, gritava e assobiava até que o padre conseguisse fazer a geringonça andar de novo. Era uma estória confusa, havia muita discussão e confusão, até que de uma hora pra outra tornou-se violenta, com um homem sendo preso e maltratado. Enquanto era encaminhado a um senhor de saias que nada mais fez do que lavar as próprias mãos, as pessoas gritavam, atiravam pedras e cuspiam nele. O homem de saias, que parecia ser muito poderoso e mandar na coisa toda, mandou o pobre homem embora dali, para ser julgado por pessoas que não tinham a menor consideração por ele. Eu acompanhava tudo apreensivo, cada vez mais preocupado com o desenrolar daquilo, enquanto a molecada ao redor urrava e aplaudia cada cena de castigo. No julgamento, que era uma espécie de eleição, pediram para a multidão, que acompanhava a tudo rindo e caçoando, para escolher entre ele e um outro homem, que tinha uma cara de mau, tipo o homem do saco, mas o povaréu escolheu aquele franzino e desamparado, com os cabelos até os ombros…

Nesse momento um clarão de entendimento fez um clique na minha cabeça, associei o pobre coitado à estátua na capela e entendi que aquele era o tal de Jesus que minha mãe sempre falava. Senti uma dor no peito enorme, controlei o máximo que pude os meus sentimentos, tanto quanto pode uma criança de 6 ou 7 anos fazer isso, mas, quando o chicotearam até sangrar e colocaram uma coroa de espinhos em sua cabeça, um rio de lágrimas já escoava dos meus olhos. Eu sabia que não seria nada conveniente soluçar naquela hora e local, no meio daquela turma de moleques, e abafei o som por todo o calvário, com a cruz nas costas, os pregos nas palmas das mãos, até o último suspiro.

Quando minha mãe chegou eu já estava seco, de olhos e alma, havia feito um pacto com seja lá o que fosse para ser bom, respeitar os outros e encontrar as respostas para os mistérios desta vida, em vida. Descobri que as lições deixadas pelos grandes mestres, não as escritas, interpretadas e reinterpretadas, mas as experimentadas e respiradas, são para serem realizadas e vividas. Que elas fluem como água limpa e pura de jarro em jarro, de Mestre em Mestre, e que há sempre alunos dispostos a beber dessa água, encontrar a paz, dentro, bem fundo, onde ela nasceu para ser sentida.

CaMaSa

A Dios

Juan era um jovem e impetuoso espanhol de Lanjarón, pequena vila situada entre Granada e Motril, na Andaluzia. É conhecida pelo seu castelo, e por ser uma das mais típicas aldeias de montanha das Alpujarras, na vertente meridional da Sierra Nevada. Também produz água mineral que é distribuída por toda a Espanha, o que acaba atraindo muitos turistas para a região. O clima quente arrefece nas montanhas e os hotéis e pousadas oferecem acomodações agradáveis, além dos bares e cafés com música e dança ao vivo.

O povo espanhol é latino radical, elevando à terceira potência as características de drama, sensualidade e paixão, expressas através da dança, música e da arte. Juan desde muito cedo mostrou ter habilidade musical, aprendendo a tocar de ouvido vários instrumentos, mas sua paixão era o saxofone. Logo ele estava integrando conjuntos da cidade e percorrendo as montanhas para tocar nas cidades próximas. Mas eram tempos difíceis para a música, para as artes e para todos. Estima-se que, entre 1884 e 1959, mais de 680 mil espanhóis imigraram para o Brasil. Apenas os portugueses e italianos chegaram em maior número. A Guerra Civil Espanhola formou um novo fluxo de imigrantes que fugiram para o Brasil. Franco comandava o país com mão de ferro, limitando as manifestações. O período entreguerras deixou a economia em frangalhos e eram poucas as oportunidades de emprego. Até que chegou o momento em que o espírito aventureiro, aliado às dificuldades e falta de esperança, empurraram-no, como tantos e tantos outros, para o mar, em busca de terras distantes e cheias de promessas.

Por relatos de parentes e amigos, ouvir dizer e estórias pouco prováveis, Juan veio provar os costumes e sabores do Brasil, mais precisamente na São Paulo progressista da metade do século, mais especificamente no bairro do Brás, reduto de imigrantes espanhóis, assim como, posteriormente a Mooca e o Tatuapé. Como a grande maioria, instalou-se nos cortiços da região, conhecendo além dos conterrâneos, italianos e portugueses que por ali também se encontravam. Encontrou uma cidade carente de tudo, de profissionais da construção civil, a profissionais liberais, artistas e músicos. Pôde assim, exercitar seu dom e ganhar um bom dinheiro, o suficiente para juntar um capital e investir em um ramo mais financeiramente sólido, o comércio madeireiro. Na região do Gasômetro, formou-se um centro atacadista de matéria prima para a construção civil, especializada em todo tipo de produtos para os marceneiros e construtores.

Em meio à sua jornada insana de trabalho, cuidando dos negócios durante o dia e tocando em bares e restaurantes do centro à noite, encontrou tempo para conhecer e namorar a bela Paloma, que “tenía su sangre, su gusto“. Jovem imigrante como ele, criada para respeitar e servir seu marido, em pouco tempo casaram-se e tiveram uma linda menina, Isabel, a razão de suas existências. Toda sua força e coragem para o trabalho, para superar as dificuldades encontradas, tinham agora uma perfeita justificativa. E assim, como quem pisca os olhos e ao abrir encontra-se num outro local, o fruto de todo trabalho e esforço do casal levou-os à uma situação boa e confortável, capaz de atender aos anseios de sua menina. Mas a sorte, madrasta, lhes pregaria uma peça terrível.

Numa manhã qualquer, ao se levantar da cama para se preparar para a escola, Isabel sentiu uma leve tontura e suas vistas escureceram, fazendo-a sentar-se novamente em sua cama. Ela já tinha 15 anos, estava acostumada às alterações de humor das meninas, identificou logo que algo não estava bem. Deitou-se novamente e só acordou quando a mãe ao seu lado, chamava seu nome. Isabel ardia de febre e sentia dores por todo o corpo, principalmente na nuca. Paloma chamou Juan que pegou a menina nos braços e correu com ela para o carro, disparando com este para o primeiro pronto socorro. Ali identificaram uma dúzia de possíveis causas, mas por segurança seria melhor que a levassem para o Hospital das Clínicas, onde poderia ser feita uma avaliação mais completa. Na época muito se comentava sobre a epidemia de meningite que eclodiu em 1971, e atingiu seu ápice em 1974. Essa epidemia surge na época em que o Brasil vivia sob o regime ditatorial e se encontrava no pior período, conhecido como “anos de chumbo” (1968- 1972). 

Chumbo… Chumbo derretido descendo pela boca e garganta, invadindo o estômago, dilacerando as tripas! Há tanta dor no mundo, mas nada se compara a perder um filho. A isso ninguém dá um nome, a isso ninguém deseja ao seu inimigo. Foram dias de angústia e desespero, promessas e orações, entre idas e vindas, dúvidas e internações. Numa noite, já no hospital Emílio Ribas, com a filha em coma e os médicos e enfermeiros entreolhando-se sem fé, Juan teve que sair para cumprir seus compromissos com o conjunto, não podia deixar os companheiros na mão. As notas do seu sax naquela noite foram tristes e lamentosas, não importando a música e o ritmo que tocassem. Eram acordes de um coração de aço, viril, mas sangrando de dor. Quando voltou pra casa, implorou a Deus, apesar de não ser um homem religioso, que salvasse sua menina.

Enquanto isso, Paloma, sua mulher, viu-se só e abandonada, acompanhando a filha ao seu destino ingrato, segurando sua mão na esperança de transmitir alguma força, algum sopro de vida. Era já muito tarde, os corredores já não mais tinham murmúrios de visitantes, nem passos apressados de enfermeiros, quando entrou de supetão um médico. Paloma pulou da cadeira em que cochilava, assustada com aquela irrupção, e olhou para o homem assustada, um olhar de indagação. Ele calmamente foi até sua filha, colocou o dorso da mão em sua testa e olhou para a mãe. Disse que era para ela não se preocupar pois ele trazia medicamentos que curariam sua filha, que confiasse, pois não havia outra solução. E pôs-se a fazer uma série de procedimentos que a ela pareciam ser os de um médico muito qualificado e ciente do que fazia. E, após um certo tempo que lhe pareceu ter levado alguns minutos, acomodou-a na cadeira, apertou sua mão e lhe disse que pela manhã outros médicos viriam, para completar o seu trabalho.

Quando acordou pela manhã, Isabel estava sentada em sua cama, sorridente e perguntando para a mãe o que estavam fazendo ali? Paloma sentiu uma alegria imensa, abraçou a filha e teve a certeza que a filha estava salva. Quando os enfermeiros do turno da manhã entraram no quarto, viram mãe e filha abraçadas, como se fosse a coisa mais normal do mundo alguém, naquele estado, estar naquela situação. Chamaram com urgência o médico de plantão, que chamou outros médicos, a enfermeira chefe e até o diretor do hospital. Nenhum deles conhecia o tal médico de acordo com a descrição de Paloma, havia visto alguém passar pelo corredor e entrar no quarto, ou ao menos sabia como e porque a menina estava curada…

Isabel teve uma leve sequela. Passou a ouvir um pouco baixo e, por consequência, falar muito alto. Isso não a impediu de conhecer um belo rapaz, descendente de espanhóis, para acalmar os ânimos de seu pai Juan. Pablo era chamado de Pablito, porque era magro como um palito! Quando o conheceu Juan disse a Paloma: 

Dale de comer que se está muriendo de hambre.

Juan teve a oportunidade de conhecer duas netas, ver o casamento da mais velha com a bisneta no colo, e honrou sua terra natal, que jamais voltou a ver,  com dignidade, respeito e honestidade. Abatido em sua saúde por uma crise renal que o levava a fazer hemodiálise uma vez por semana, deixava-se acompanhar pela filha Isabel, sabendo que esta assim se sentia feliz e recompensada. Numa das sessões, pediu que a filha prometesse uma coisa. Que ela iria conhecer sua terra natal, respiraria o ar puro das montanhas, beberia a água fresca, sentiria o sabor dos frutos e escutaria a música de ritmo quente e pulsante como um coração cheio de fúria e vigor. Nessa hora teve um vislumbre da bisneta Lupita dançando flamenco sobre um tablado de madeira no chão, fechou os olhos e nunca mais os abriu.

CaMaSa

Seria

Seria

 

Seria bem mais fácil seguir o padrão, 

acompanhar o rebanho, na manada, 

aceitar os dogmas, engolir os rituais, 

sem questionar comandos nem nada.

 

Seria muito mais fácil dopar a mente,

crer em imagens e figuras, nos textos,

em estátuas e símbolos de uma liturgia 

feita para se acreditar sem questionar.

 

Seria tão mais fácil fingir que acredito 

em modelos, em ritos, em guias cegos

conduzindo à certeza de não chegar

ao lugar devido para servir de abrigo.

 

Seria mais fácil explicar um Mestre,

só depois que Ele por aqui passasse,

do que reconhecer sua humanidade

simples, palpável e tão fácil de amar.

CaMaSa

Tolos

Tolos

 

Roubam as coisas

o ouro o dinheiro

os ovos chocados

e as frutas no pé

 

Furtam as roupas

secando no varal

umas fazem falta

cobre-se de jornal

 

Pilham os cofres

poupanças suadas

do velho o passado

da criança o futuro

 

Tiram o sossego

criando as guerras

nelas todos os tiros

atingem inocentes

 

Tomam para si

a ilusão da ilusão

não veem a riqueza

que têm e que são

CaMaSa