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Os Assaltos – Parte 2

A célula ficava num lugar tão secreto, mas tão secreto, que ninguém, além dos três, sabia onde ficava. Alberto, codinome Alfa Berto, fumava um cigarro após outro enquanto andava aos círculos pela sala estreita. Estava com ele o companheiro José Teodósio, codinome Zé mesmo, legítimo representante da classe operária oprimida e explorada pelo capitalismo selvagem, ainda que ele não tivesse a menor ideia do que o outro falava. Esperavam a companheira Rúbia, codinome Ruby, que havia saído ao encontro de um superior para receber as instruções para a missão. Alberto tinha antipatia por ela. Achava que ela era bonita demais, muito arrumada, sem buço e de sovacos raspados. Muito burguesa para seu gosto.

Ruby era argentina, havia participado do movimento estudantil em Buenos Aires, no conturbado início dos anos 60, tendo testemunhado a Noche de los Bastones Largos, quando a Diretoria Geral de Ordem Urbana da Polícia Federal Argentina invadiu e expulsou de cinco faculdades da Universidade de Buenos Aires (UBA), na Argentina, os estudantes, professores e funcionários que haviam ocupado os locais em oposição à decisão do tenente general Juan Carlos Onganía de intervir nas universidades e anular o regime governamental. Ela estava na Faculdade de Ciências Exatas, e viu quando Rolando García, o reitor da época, foi ao encontro dos policiais, dizendo ao oficial que estava executando a operação:

– Como ele ousava cometer esse ultraje? Eu ainda sou o reitor desta casa de estudos.

Um guarda enorme e corpulento golpeou-lhe a cabeça com o cassetete. O reitor levantou-se com sangue no rosto e repetiu suas palavras: o grandalhão repetiu o golpe em resposta.

Um total de 400 pessoas foram presas e laboratórios e bibliotecas universitárias destruídas. Ruby, que já tinha uma participação efetiva nos movimentos reformistas, aderiu cada vez mais às atividades contra o governo, perdendo aos poucos sua identidade civil e integrando os quadros revolucionários latino-americanos. Esteve em Cuba, Colômbia, Peru e Bolívia. Participou de diversas atividades até que numa delas sofreu uma emboscada e foi gravemente ferida na cabeça. Perdeu um dos belíssimos olhos azuis, substituído posteriormente por um brilhante e sem vida olho de vidro. Foi transferida pela F.I.P.U.L. – Frente Internacional Planetária Unida Livre –, para uma região mais tranquila. Veio para o Brasil.

Ruby chegou ao local combinado, a igreja São Rafael, na Mooca, logo após a hora do almoço. A igreja tem um estilo único, Art Decó, caracterizado pelo uso de formas geométricas ou estilizadas em detrimento das formas orgânicas que eram frequentes no estilo Art Nouveau. Diferente desse estilo, o Art Déco prezava pela simplicidade da forma, sendo comum o uso da figura feminina e da figura de animais. Este estilo teve influências dos princípios do Cubismo. Ruby estava sentada no terceiro banco de madeira, do lado direito da nave, conforme as instruções que havia recebido por telefone, muito admirada pelo estilo retilíneo e elegante da igreja. Ela seria contatada pela companheira Doutora, apelidada DR, que lhe daria as orientações verbalmente. O local estava completamente vazio quando ela percebeu uma lenta aproximação. Uma mulher jovem sentou-se no banco atrás dela e imediatamente começou a falar frases desconexas que a princípio pareciam ser um código desconhecido:

– Não olhe pra trás! Ordenou. – Se hoje é o Dia das Crianças, ontem eu disse que criança… o dia da criança é dia da mãe, do pai e das professoras, mas também é o dia dos animais. Sempre que você olha uma criança, há sempre uma figura oculta, que é um cachorro atrás, o que é algo muito importante. Primeiro, eu queria te dizer que eu tenho muito respeito pelo ET de Varginha. E eu sei que aqui, quem não viu conhece alguém que viu, ou tem alguém na família que viu, mas de qualquer jeito eu começo dizendo que esse respeito pelo ET de Varginha está garantido. Então, para mim, essa bola é o símbolo da nossa evolução. Quando nós criamos uma bola dessas, nós nos transformamos em homo sapiens ou mulheres sapiens.

Terminou de falar, levantou-se e saiu lentamente, enquanto Ruby aguardava por mais instruções, pelo menos alguma que fizesse algum sentido. Depois de alguns minutos de tensão e espera, virou-se e viu que estava novamente só, sem entender absolutamente nada do que havia acontecido. Percorreu toda a igreja com os olhos e percebeu um pedaço de papel dobrado sobre o banco onde DR havia sentado. Pegou o bilhete e saiu de lá rapidamente. Pegou um táxi e voltou para o esconderijo, onde os companheiros a aguardavam ansiosos.

Mais cedo, naquela manhã, o padre Valentino tinha recebido a visita do padre Péricles, diácono da diocese de Santo Amaro, para uma visita amigável. Circularam por toda paróquia e, depois de tomarem um café quentinho e saboroso, sentaram-se num dos bancos da igreja para conversar sobre as dificuldades atuais enfrentadas pelos católicos em todo mundo e, mais importante, os próprios problemas. Valentino expôs os problemas de sua paróquia, de ordem material e espiritual, não deixando claro qual era a ordem de prioridade entre elas. A igreja necessitava de reformas, havia infiltrações e paredes precisando de tinta, até Santo Antônio das Paredes estava com o nariz descascado, como quem tinha tomado muito sol sem passar hipoglós! Mas as contribuições eram mínimas, mal davam para o custeio das despesas regulares. Recentemente, no entanto, um dos paroquianos, cumprindo uma promessa ao santo, trouxe uma moeda de ouro, aparentemente valiosa! Mas nosso bom Valentino não sabia como conseguir o maior valor por ela.

O rechonchudo, prestativo e bondoso padre Péricles, vindo de paróquia mais abonada, frequentada por cidadãos da mais alta estirpe, conhecedores profundos do mundo das finanças, e do submundo também, contou que estes haviam lhe mencionado certos mercadores de ouro, bons negociantes, sempre prontos para adquirir o vil metal. Sabia de um, inclusive, interessadíssimo especialmente em moedas. Era um velho judeu, bem sovina, mas que aceitava pagar acima do valor de mercado quando negociava certos tipos de moedas douradas. Tirou do bolso da batina um pequeno caderninho, anotou nome e endereço, e entregou ao padre Valentino. Este ficou tão agradecido que nem lembrou, quando colocou o papel dobrado em seu bolso, que este estava furado. Quando se levantou para acompanhar o visitante até a saída da igreja, não percebeu que o bilhete havia caído sobre o banco de madeira.

O companheiro Alfa Berto tentava explicar pela décima vez ao companheiro Zé o significado da mais-valia, quando ouviram três toques, seguidos de mais um, seguidos de mais dois toques na porta. Era a companheira Ruby que retornava finalmente! Ela estava com os cabelos lisos e negros levemente desalinhados, formando uma moldura perfeita naquele rosto fino, de pele clara e sedosa, contrastando lindamente com os olhos azuis, da cor do céu, limpo e sem nuvens, enfeitados por uma boca de lábios macios e vermelhos, naquele momento entreabertos e exibindo os dentes brancos e brilhantes como porcelana. Alfa Berto pensava seriamente em comunicar aos seus superiores que a aparência, e o jeito excessivamente sensual da companheira, não eram adequados aos interesses revolucionários da F.I.P.U.L., mas sempre reconsiderava quando ela começava a falar com aquela voz melodiosa, cheia de sotaque portenho, envolvente e desconcertante.

Ruby relatou aos companheiros tudo o que havia acontecido, em todos os pormenores, para que eles pudessem ajudá-la a compreender a mensagem verbal que havia recebido da companheira Doutora, DR, pois ela mesma não fazia a menor ideia do que poderia significar. Alberto ouvia atentamente enquanto Zé fazia cara de quem compreendia toda aquela mensagem cifrada, chegando muito próximo da expressão facial de um sábio matemático, pronto para gritar Eureka! Depois de horas debruçados sobre o problema, exaustos e a ponto de desistir, ela lembrou-se do papel deixado sobre o banco da igreja e exibiu-o aos outros dois. Abriu-o cuidadosamente sobre a mesa de fórmica verde água e os três leram apreensivamente o que nele estava escrito:

BARUCH – AVENIDA PAULISTA, 1412

CaMaSa

Os Assaltos – Parte 1

Tudo estava milimetricamente calculado. Haviam passado meses estudando mapas, horários e possibilidades. Avaliaram todas as variáveis, antecipando movimentos como num jogo de xadrez. Exatamente para que não fossem parar no xadrez! Genaro, Mané e Tanaka sabiam que não tinham alternativa e que o dinheiro do patrão, o judeu Baruch, aguardava-os de braços abertos. Os três trabalhavam na fábrica de sapatos da Rua Dom Bosco, que ficava embaixo da fábrica de celuloides para relógio de pulso. Era um armazém pequeno, de dois andares, com 10 metros de frente por 40 de profundidade. O couro dos sapatos chegava em rolos, era liso de um lado e acamurçado do outro. Era aberto sobre bancadas de madeira e funcionários treinados marcavam a giz os defeitos, que eram recortados cuidadosamente com estiletes afiados como bisturi. A menor imperfeição, um furo feito em cerca de arame farpado ou a marca de um berne, era sumariamente extirpada. Depois, a peça de couro era posicionado em bancadas lisas, de madeira macia, e eram cortados habilmente com o auxílio de moldes pré-determinados, de acordo com o modelo de sapato. A peça era aproveitada ao máximo, restando somente pequenas tiras da matéria-prima, que eram acumuladas em tambores para descarte. Os moldes recortados eram furados, pespontados e costurados, esticados sobre modelos de madeira, compostos de duas partes unidas por um sistema de parafusos que, depois de um certo tempo, eram reaproximadas e retiradas do interior da peça de couro. Esta era colada à palmilha e posteriormente fixado ao solado de couro grosso para finalmente ser dado o acabamento.

Genaro emigrara da Itália nas primeiras levas da década de quarenta, e trouxera de lá a técnica dos “scarparos” apreendida do pai e do avô. A falta de oportunidades no país natal, trouxera ao Brasil um jovem idealista, beirando o anarquismo, cheio de fome e ambição. Imaginou que viria para uma terra de sonhos e dinheiro fácil, mas só encontrou dificuldades e condições de trabalho precárias. Conheceu a esposa mineira numa viagem de bonde, seduziu-a com seu bigodinho fino à Clark Gable e, rapidamente, colocaram mais quatro bocas famintas no mundo.

Mané era o intelectual do grupo. Viera de Rabaça, distrito da Guarda, província de Beira Alta, aos 17 anos, fugido de um pai enraivecido de uma menina linda, com os primeiros pelos do buço surgindo e o ventre cada vez mais volumoso. Ele penteara o buço, a boca, o pescoço e tudo mais que o desejo lhe dizia, com seu farto bigode preto e brilhante como piche. Pé rapado, sem eira nem beira, lançou-se ao mar em direção ao distante Brasil, onde tinha um tio-avô que nem conhecia, de quem dizia-se ser rico e influente no negócio de pães e farinha. Quando o encontrou, velho e maltrapilho, descobriu que o tio era faxineiro na padaria, e o seu negócio com farinha era varrê-la do chão!

O Tanaka era o mais jovem, tinha 20 e poucos anos, bonito e com o corpo bem delineado, imberbe, não tinha bigode. Era nissei de primeira geração e do Japão tinha somente um olho puxado. O outro havia perdido num acidente doméstico e, por conta disso, usava um de vidro que dava ao olho um formato mais arredondado, ocidentalizado. Seja por causa do trauma do acidente na infância, tinha 3 anos de idade, seja por questões genéticas, ou porque o Criador assim quisera, o japa tinha uma leve defasagem entre a idade biológica e a mental, que o mantinha razoavelmente mais sorridente que o normal, além de muita dificuldade para compreender a realidade que o cercava. Era extremamente tímido, nunca havia namorado e, talvez, nunca tinha conversado com alguma garota.

Genaro porque precisava, Mané porque ainda amava a mãe do filho que não conhecera e Tanaka, porque não entendia muito bem o que fariam, cada um com sua razão, juntaram-se no objetivo comum de tomar do velho Baruch uma parte do dinheiro que lhes cabia. O judeu passou mal bocados na vida! Era um dos poucos anciãos que haviam estado em campos de concentração nazista e saiu vivo de lá para esquecer. Usou de muita astúcia e malícia para sobreviver. Comeu unhas, ratos e insetos. Negociou, fingiu, lambeu botas, traiu e delatou. Não tinha amigos e parentes quando lá chegou e ganhou inimigos de ambos os lados quando saiu. Mas sobreviveu. E ainda saiu de lá com um tesouro! Uma moeda de ouro, que surrupiou de um sargento alemão e acusou um companheiro de cela pelo roubo. Este pagou com a vida, mas a morte já o esperava de qualquer maneira, Baruch só antecipou o encontro algumas semanas.

Quando chegou ao Brasil, o velho judeu encontrou um mundo de oportunidades de negócios numa terra de gente indolente e lasciva, mais interessada no que fazer nos fins de semana do que ter lucro na compra e venda de mercadorias. Em pouco tempo descobriu os melhores fornecedores, conseguiu maiores prazos e as condições mais favoráveis para juntar um pequeno capital. Não gastava, só acumulava. Pouco comia, estava habituado a passar fome, não bebia, não tinha luxos. As roupas puídas e manchadas disfarçavam um personagem que enriquecia rapidamente na cena paulistana do pós-guerra. Pelo contrário, faziam dele um comerciante que a concorrência acreditava ser fácil de enganar, mas na realidade era uma aranha que pacientemente tecia sua teia de empréstimos a juros exorbitantes, à espera das moscas, de roupas finas e nomes pomposos, que seriam devoradas sem misericórdia. Quebrava-os tomando suas fortunas, seus bens, seus imóveis e sua honra. Em pouco tempo estava milionário, bilionário, mas mantinha a mesma rotina miserável. Morava sozinho numa mansão de 36 aposentos na Avenida Paulista, quase em frente à dos Matarazzo, na época em que a avenida ainda não havia sido completamente tomada pelos arranha-céus do império financeiro. Seu único prazer era passar a noite polindo, com uma velha flanela, as moedas de ouro que havia acumulado, à luz fraca e baça de uma lâmpada a óleo que tremeluzia na escuridão da mansão fantasmagórica.

Naquela noite amaldiçoada, Genaro, Mané e Tanaka saíram, cada um de sua casa, em direção à Avenida Paulista, na altura do número 1400, para um encontro marcado à meia-noite. Genaro estava tenso e irritado, nervoso e preocupado que algo pudesse dar errado e eles saíssem da casa sem o dinheiro. Mané estava frio e tranquilo, havia feito todos os cálculos e projeções matemáticas, apesar de que, em sua terrinha natal, havia aprendido somente três operações, não sabia dividir… Tanaka trazia no rosto um sorriso de superioridade oriental, reforçado pela imobilidade vítrea, escura e fria do olho artificial. A chuva fina apertara bastante e os primeiros raios começavam a estourar no céu escuro de nuvens carregadas. Cumprimentaram-se rapidamente e repassaram os próximos passos. Construída em 1896, a residência foi projetada pelo escritório de Ramos de Azevedo a pedido de Luiz Anhaia. Por alguma razão Anhaia não ficou no casarão e em 1911 o imóvel foi vendido ao industrial e banqueiro de origem italiana, Alexandre Siciliano. O imóvel ficava localizado no número 1412 da Avenida Paulista. Tratava-se de uma enorme construção de quatro andares, no meio de uma grande área verde. Tinha vários cômodos muito amplos, sala de leitura, sala de jantar, salão de jogos e dependências externas para acomodação de empregados, além da garagem. O imóvel passou por várias mãos, até chegar a Baruch como pagamento de uma dívida do então proprietário.

A mansão era ladeada por outras duas amplas residências e a construção principal era cercada de alamedas arborizadas. Nos fundos, de frente para as garagens, havia uma pequena escada que dava acesso a uma porta de ferro, fechada por um único cadeado apodrecido, conforme Mané havia observado numa das vezes em que viera à casa do patrão para entregar documentos da empresa. A ronda noturna cobria apenas dois dos imensos quarteirões, dando uma volta completa a cada 18 minutos. Tanaka e Mané entrariam pelo muro lateral da casa à esquerda, desocupada há alguns meses, enquanto Genaro seguiria o guarda noturno por toda a ronda, para se certificar que ele completaria o percurso no tempo estimado. Nesse período, os dois teriam o tempo necessário para serrar o cadeado com o mínimo de ruído possível, entrar pela porta de serviço, atravessar toda mansão no escuro e abrir a porta principal para o Genaro, que deveria ultrapassar o vigia a tempo de chegar e desligar, pelo lado de fora, o sistema de alarme que acendia uma lâmpada vermelha quando a porta era aberta pelo lado de dentro. 

Tudo havia funcionado com a precisão de um relógio suíço, os três amigos já estavam no interior da mansão, o velho Baruch polia silenciosamente suas moedas em seu quarto e a ronda noturna havia passado pela calçada sem perceber nada de anormal. A chuva torrencial e os raios prateados afastavam qualquer possibilidade de intromissão. Genaro estava quase calmo, mas havia somente um pequeno detalhe que poderia pôr abaixo tudo o que tinha sido tão bem planejado. A mansão havia sido invadida por outros três assaltantes naquele exato momento!

CaMaSa

Fogo na Vila

Eu não devia contar esta estória porque tem muita gente conhecida, facilmente identificável, que deve se reconhecer ou ser reconhecida logo de cara, e alguém pode se ofender. Em todo caso, vou trocar os nomes e descrever detalhes falsos da aparência, na esperança de que ninguém as reconheça. Mesmo porque, tenho certeza que quem lê o que eu escrevo não está interessado nos detalhes pessoais dos personagens, ainda que sejam atos impublicáveis, desses que não devem ser mencionados nem mesmo no confessionário do padre Valentino, à meia-noite de uma Sexta-feira Santa. Confio na discrição de todos, certo de que não haverá comentários maliciosos e discussões acaloradas tentando apontar esse ou aquele possível participante do episódio em questão.

Certa noite, o Zecão, vamos chamá-lo ficticiamente Zecão, voltava do baile de salão do Bola Redonda, na Brigadeiro, a pé, como sempre fazia. Estava acompanhado do Rapa, do Minhoto e do Boca de Trigo, companheiros inseparáveis de todas as horas. Desciam a ladeira contando vantagens, falando das moças cheirosas, de cabelos brilhantes e pernas longas, que rodopiavam por todo salão. No fim da Brigadeiro viravam à direita para o viaduto Dona Paulina, passavam pela Praça Dr João Mendes, desciam a Tabatinguera, pegavam a Avenida do Estado, cruzavam o rio em direção à Radial Leste e percorriam todo viaduto até dobrar à direita na Rua dos Trilhos, para finalmente dobrar novamente à direita na Visconde de Laguna. Era uma caminhada e tanto, regada a conversa fiada e rum ou vinho baratos.

Evidentemente chegavam destroçados, com os pés ardendo e as vistas embaçadas de sono e cansaço. Na esquina da Vila Rodolfo Crespi havia o açougue do Seo Petrônio, famoso pelas facas afiadas que cortavam com facilidade as carnes mais duras e mantinham afastados os marmanjos de suas filhas, e suas carnes macias… Ele morava com a família no sobrado sobre o armazém, mas como era madrugada de sábado para domingo, o açougueiro, a mulher Clotilde e as filhas, Marabel e Maribel, estavam na Praia Grande, aproveitando o fim de semana. O estabelecimento tinha uma porta de enrolar, de ferro, com um sistema de fechamento de barras laterais, com uma fechadura central de chave comum, a 1,10 m de altura, além do cadeado de chão. 

Quando os quatro amigos passavam pela porta do açougue, perceberam uma fumaça branca, bem rala, saindo pelo respiro da parede. Acharam o fato estranho e se puseram a procurar uma forma de descobrir o que estava acontecendo. Zecão olhou pelo pequeno buraco de fechadura do portão de ferro e, entre espantado e assustado, viu a chama brilhante do fogo! Fogo? Fooogooo! Em 2 minutos e 18 segundos toda vila estava envolvida no processo de transportar água para a frente do açougue.

A vila era uma rua estreita com casas pequenas dos dois lados, em toda sua maioria ocupada pelos operários, e seus descendentes, que trabalhavam no cotonifício Crespi. Ela terminava no muro do estádio do Juventus, da Rua Javari, nas costas do gol leste, famoso por ser onde o rei Pelé fez o gol mais bonito de sua carreira. Zecão e sua família moravam na última casa à direita, e dela, no terraço construído especialmente para isso, tinha-se uma visão total e privilegiada do campo. Em dias de jogos, amigos e parentes reuniam-se no terraço para tomar cerveja, comer amendoim torrado e xingar o goleiro adversário. No dia em que Pelé fez esse gol, o estádio estava lotado, todos querendo ver de perto esse menino de 19 anos que vinha encantando no campeonato. Mas não era um bom dia para o futuro rei, até então, que estava muito apático e apagado. A torcida do Juventus gritava e vaiava a cada vez que ele tocava na bola e, num chute em direção ao gol, a bola subiu muito acima do normal e foi cair no terraço. Na festa que se seguiu, Zecão gritou a pleno pulmões: — Seu bola muuuurcha!

Por obra do destino o grito saiu num momento de silêncio no campo, o suficiente para que Pelé ouvisse. Ele focalizou o torcedor no terraço da casa e fez um sinal com a mão direita, como quem diz: — Me aguarde… 

Quem viu não esquece! O moleque ficou endiabrado, destruiu o Juventus e pra coroar a exibição magnífica, a certa altura do jogo recebeu um passe da direita, deu o primeiro chapéu entrando na área, deu o segundo e deu o terceiro. Ainda teve tempo de chapelar o goleiro, que saiu do gol desesperado catando vento, arrematando de cabeça para o gol. O público, a favor e contra, gritou seu nome por mais de 10 minutos!

Assim era a vila naquele tempo, para o bem ou para o mal, uniam-se para buscar soluções ou preparar comemorações. Mas no momento a prioridade era o incêndio no açougue e estavam lá homens, mulheres e crianças, nonnos e nonnas, cada um contribuindo com seu balde, sua bacia ou seu copo d’água em punho na luta contra o fogo. Muitos até já sentiam o cheiro de churrasco, da carne queimada, do sebo crepitando e estalando nas chamas. Os mais fortes tentavam abrir a porta de ferro com as próprias mãos, usavam cabos de vassoura, corriam na busca de ferramentas. Os bombeiros haviam sido chamados e surgiriam a qualquer momento.

Na fila indiana que se formou para o transporte da água, estava a neta da dona Santa, a levada Ziquinha, com a carinha sardenta e as maria-chiquinhas presas firmemente nas laterais da cabeça. Para uma criança de 8 anos toda aquela movimentação era uma farra e encontrar uma forma de tornar tudo mais divertido fazia parte. A menina encontrou o passatempo de molhar os dedinhos na água e espirrar na nuca das pessoas. Quando alguém se virava pra entender o que estava acontecendo, ela gritava: – Foi fulano que cuspiu! E caia na gargalhada.

Mas uma gota dessa brincadeira resvalou no rosto de Elvira, irmã da Carmela, que tomando as dores da irmã ralhou com Ziquinha. A menina correu para os braços da avó, que assustada respondeu a Carmela que cuidasse do próprio nariz, grande e espinhudo como uma jaca! A ofensa não passou em branco pelo filho de Elvira que devolveu com um “a Ziquinha é mal educada porque não se sabe ao certo quem é o pai”… Por muito menos que isso a vila já tinha se transformado em campo de guerra! O pai, no papel, da criança, soltou o balde no pé do ofensor e partiu pra cima, recitando todos os palavrões que normalmente se gritava no campo, de uma só vez. Um vizinho protetor do rapaz, pulou sobre as costas do pai de Ziquinha, ambos rolando no chão e levando consigo dona Santa e a Carmela. Esta perdeu a dentadura, que saiu voando e prendeu-se na orelha do Minhoto que já dava e tomava tapa de tudo que é lado.  Nessa altura do campeonato todo balde, toda lata, todo copo e toda água voavam de um lado pro outro sobre a cabeça de todos. Era uma profusão de camisolas e pijamas ensopados que se alguém jogasse confetes e tocasse uma música de Carnaval, pareceria que estavam todos dançando em homenagem ao Rei Momo! 

No meio de toda aquela enorme balbúrdia, surge Seo Olegário, o morador mais antigo da vila, com seu penico lotado. Era sua contribuição para o incêndio, já que a água custava caro e aos 98 anos, meio cego, meio surdo e meio pazzo, era melhor poupar. Quando ele chegou no meio da confusão, com o penico branco tremendo em sua mão direita, o Rapa, especialista em capoeira, lançava os pés para o alto num elíptico rabo de arraia, que golpeou o vaso particular do Olegário debaixo para cima. O penico subiu girando, girando, alto, bem alto, espalhando xixi pra tudo que é lado e para todos, numa chuva dourada coletiva. Foi como jogar gasolina na fogueira! A turba formou um bolo enorme de gente molhada e fedida, gritando e estapeando uns aos outros, tão envolvidos que nem perceberam a garoa paulista chegando de mansinho e aos poucos transformando-se em chuva grossa.

O açougue incendiado estava completamente esquecido, entregue aos bombeiros que acabavam de chegar e que ninguém havia percebido. Usaram ferramentas apropriadas para abrir a porta e encontraram um ambiente tranquilo e sossegado. Num canto, à direita, havia uma espécie de incensório improvisado com uma lata aquecida por carvão, queimando folhas cítricas e aromáticas para espantar mosquitos e muriçocas gulosas de carne, com uma fumacinha leve e cheirosa. No centro do balcão, cuidadosamente apoiada e bem protegida, luzia uma lamparina a óleo, diante de uma pequena estátua de Santa Boa Fartura das Carnes, protetora dos bois e das vacas. O lume da lamparina estava posicionado de tal forma que quem olhasse da rua pelo buraco da fechadura da porta, só veria uma chama brilhante, perigosa e maliciosamente ardendo.

Não era um incêndio afinal, mas proporcionou um evento inesquecível para todos os moradores da vila, que até hoje trazem em si lembranças na memória… ou no corpo!

CaMaSa

A Mãe

O doutor Cláudio Ribeiro tinha os olhos fixos no copo d’água à sua frente. Não que estivesse interessado ou com sede. Seus pensamentos estavam longe dali, mais precisamente numa tarde quente em Ipanema, no Rio. Estava com dois amigos num táxi que contornava a lagoa Rodrigo de Freitas, em direção ao Mistura Fina para mais uma noitada de jazz. Naquela noite ele conheceria Lara, uma turista gaúcha passando férias na Cidade Maravilhosa. Depois de dois olhares já estavam conversando animadamente sobre tudo: o cotidiano em Poa, a falta de perspectiva durante o regime militar, o sotaque marcado, Deus ou a falta dele, a vida… Ela tinha uma energia tão boa, que parecia brilhar como seus cabelos loiros naquele ambiente à meia-luz! Num dado momento, ela o encarou pensativa e perguntou se ele achava possível viajar no tempo? Cláudio olhou para o copo com água com gás gelada sobre a mesa, observou atentamente as bolhas subindo lentamente, e transportou-se para o presente.

– Doutor Cláudio! Doutor Cláudio… É a sua vez.

Despertou do transe, ergueu-se e dirigiu-se à plateia que o aguardava ansiosamente. No auditório havia representantes dos maiores institutos de pesquisa do mundo, como a Academia Russa de Ciências, a Universidade Harvard, Universidade de Tóquio, a Universidade Johns Hopkins, a Universidade de Toronto no Canadá, o Centre National de la Recherche Scientifique na França e as Universidades de Osaka e de Kyoto, no Japão. Representantes da elite científica mundial das mais diversas áreas de pesquisa tecnológica de ponta, todos liderados pelos estudos do consórcio internacional que inclui a United States Department of Health and Human Services (EUA), a Fraunhofer Society (Alemanha), CEA (França), a Japan Science & Technology Agency (Japão), a Agency for Science Technology and Research (Cingapura) e a Universidade de São Paulo (Brasil), sobre o RGHO (Rastreamento Genético Humano Original). O silêncio era lunar. Cláudio começou sua explanação:

– Há algum tempo, uma notícia causou grande furor no mundo científico. Aparentemente, os pesquisadores do CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear) conseguiram “encontrar” o chamado Bóson de Higgs – ou a “partícula de Deus”, que seria a origem de toda matéria existente no universo. O anúncio de tal descoberta esteve entre as principais notícias do mês, gerando polêmica e grande interesse de várias pessoas de diferentes países. Além do Bóson de Higgs, outras pesquisas científicas também ganharam notoriedade e admiração por apresentarem resultados surpreendentes. Entre elas está a possível descoberta de água líquida em Marte pela NASA, assim como a provável detecção da matéria escura – que é responsável pela gravidade que mantém as galáxias unidas, sendo um dos grandes mistérios da Física. 

Mas outras descobertas recentes que, apesar de não terem recebido um grande espaço na mídia, eram igualmente importantes, haviam estimulado a criação do consórcio internacional para os estudos do RGHO, entre elas:

  1. O DNA dos neandertais sobrevive em nossos genes

Um estudo genético comprovou que nossos ancestrais Homo sapiens cruzaram com neandertais e que, por isso, estes últimos sobrevivem até hoje no DNA dos humanos. Além disso, o estudo apresentou que não seriam apenas os neandertais a viverem em nós – também foram descobertos resquícios genéticos dos denisovans, os “primos” dos neandertais. Tal descoberta também foi importante por nos mostrar que o Homo sapiens não seria o produto de uma linhagem pura e longa, mas uma mistura hominídea. 

  1. Desvendando a “matéria escura” do nosso corpo

O RNA era visto como uma “matéria escura” do DNA, pois a complexidade de seu papel como “mensageiro” em levar, na forma de genes, as instruções necessárias para a produção de proteínas ainda era um mistério para a ciência. No entanto, aparentemente, uma “luz” caiu sobre essa questão – já que os cientistas acreditam terem compreendido melhor o papel do RNA como uma peça com grande influência na forma que os genomas operam em nosso organismo.

  1. Desafiando as leis de Newton

Materiais com bizarras propriedades ópticas e que possuem características que não são encontradas em elementos da natureza. Os chamados metamateriais – tecnologia utilizada por físicos e engenheiros para a manipulação e orientação da luz, criando lentes que superam os limites de outras lentes comuns. Com os metamateriais, os cientistas pretendem utilizar as propriedades ópticas não convencionais (que desafiam também as leis da física) para criar objetos incríveis.

  1. Células “reprogramadas” poderão criar tecidos e órgãos

Um dos grandes avanços na área da saúde está na “reprogramação” de células adultas. Com esta conquista, os cientistas conseguiram transformar células de pele ou sangue nas chamadas “células pluripotentes” – que possuem o potencial de se tornar qualquer tipo de célula existente no organismo. Tal descoberta é um grande passo para o tratamento de doenças raras, pois os cientistas já estão utilizando a técnica na produção de linhas de células voltadas a determinados pacientes.

  1. 9 a cada 10 células do nosso corpo são de micróbios

Há alguns anos, os cientistas vêm aprofundando as análises quanto à interação entre os micróbios e os nossos corpos. Aparentemente, criou-se a teoria de que eles, por fim, fazem realmente parte de nós – já que nove a cada dez células que possuímos são células microbianas. E isso não é algo ruim, acredite. Pelo que foi estudado até o momento, apenas poucos micróbios realmente nos deixam doentes, já que a maioria utiliza nosso corpo como “casa” e poderia ser classificada como “bons inquilinos”.

Com base nessas descobertas, integrando-as e fundindo-as num só projeto, a equipe do doutor Cláudio Ribeiro pôde concluir o rastreamento do código genético humano até o momento original, primeiro, o salto da irracionalidade animal para a razão humana. Haviam identificado o primeiro Ser pensante, conhecedor da sua condição diante do Universo que o cercava. A partir dele, todos foram gerados, sendo iguais em todos os sentidos, fisicamente e mentalmente, fazendo com que cada descendente que pense e organize uma linguagem através de quaisquer símbolos, supere todas as diferenças biológicas, culturais, étnicas, ideológicas, religiosas, etc. Isto significa que somos um e somente um corpo vivo. O sucesso da humanidade é o sucesso de todos e o seu fracasso é o fracasso de cada um.

Havia uma luz no ambiente clara como sol a pino, mas o ar estava gelado como nos pólos. Alguns dos presentes haviam esquecido de respirar por alguns momentos, tamanha era a expectativa e concentração. Cláudio limpou a garganta e prosseguiu seu discurso:

– Certa vez uma jovem bonita e radiante me perguntou se era possível viajarmos no tempo? Confesso que naquele momento nada pude responder, porque então era inimaginável tamanha aventura. Mas hoje, temos comprovada a seguinte possibilidade: ainda que não tenhamos como avançar para o futuro e lá encontrar nossa herança, podemos sim retroceder com segurança ao passado e encontrar respostas sobre nossa origem. Por meio das mais avançadas tecnologias científicas à nossa disposição, pudemos retroagir através de um caminho genético contínuo até o primeiro indivíduo dito humano e reconstituir a imagem desse ser humano original, gerador de toda a espécie, como quem refaz o caminho de um rio ao inverso, da sua foz desaguando no mar, até sua nascente gotejante no alto de uma montanha. Esse ser, aparentemente submetido a uma dieta a base de determinados cipós e folhas, foi acometido de um surto alucinógeno de profundidade espiritual indescritível, que o levou a ver a beleza que o cercava, nas cores das flores, no sabor dos frutos, no calor do sol e no brilho das estrelas da noite infinita, e até mesmo nos seus semelhantes. A partir daí, um fluxo ininterrupto de pensamentos e emoções tem percorrido cada descendente seu na face da Terra. Hoje podemos afirmar, com 100% de certeza, que esse primeiro hominídeo era uma mulher, a Mãe de todos nós.

CaMaSa

Photo by mharrsch on Foter.com / CC BY-NC-SA | Fonte: Tecmundo

São Pneu

Quando mudamos da rua Dom Bosco, na Mooca baixa, para a Professor Elias Vita, no Parque da Mooca, foi como soltar um sagui da gaiola na floresta. Saímos de uma casa a pouco mais de 1 quilômetro do marco zero da Praça da Sé, à época o verdadeiro centro comercial de São Paulo, para uma fazenda de sol e luz! A Dom Bosco era um lugar cinza, escuro, o sol não fazia questão nenhuma de dar as caras por lá. Nossa casa ficava a um quarteirão de distância do Rio Tamanduateí, que vira e mexe se esparramava até nossa calçada, com suas águas escuras e fétidas. Certa vez choveu tanto, mas tanto, que o nível do rio subiu muito além do normal, chegando até ao oitavo degrau da escadaria do nosso prédio! Ficamos ilhados por mais de três dias, sem condições de sair de casa para nada, nem para comprar comida. Quando a chuva diminuía eu saía no balcão e ficava observando a água marrom, repleta de manchas de óleo, passando vagarosamente pela rua. Não podíamos nos queixar. Muitas famílias moravam em porões, a água chegando até o teto, destruindo tudo do pouco que tinham.

Nós nos mudamos para um sobrado geminado com três quartos, sala, cozinha, três banheiros, quintal e lavanderia! Era uma tremenda evolução no padrão, confirmada pelo cheiro fresco de tinta nova. Na rua, além do sobrado ao lado, havia mais cinco ou seis casas, além da construção inacabada do futuro hospital São Rafael, que nunca foi concluído. E mamona, muita mamona. Meu Deus do céu, quem teria plantado tanta mamona assim? Tinha mato e pé de mamona desde a rua Juatindiba, futura rua Juventus e única asfaltada além da minha, até os tanques da Esso, que para mim, aos 12 anos, pareciam estar a centenas de quilômetros. A rua terminava num morro alto, muito mais alto do que um sobrado de dois andares, cortando a terra dos dois lados, formando paredões verticais muito íngremes. Sobre ele estava plantada uma das torres de transmissão de eletricidade, estilo Eiffel, magras, elegantes, altíssimas. Lançavam umas para as outras fios pretos longos como cabelos lisos e esticados.

Tudo era novidade, assim como a família de seis filhos que morava numa das casas. Uma das crianças era um menino um ano mais novo que eu, gordinho e muito simpático. Ficamos amigos imediatamente e protagonizamos uma série de aventuras típicas da pré-adolescência. Certa manhã, resolvemos experimentar aquilo que tanto interessava aos adultos e era proibido para as crianças. Resolvemos fumar cigarros! Roubamos um maço pela metade da sua irmã mais velha, uma caixa de fósforos, e, discretamente, fomos para o campo do Democrático. A caixa d’água ficava no ponto mais alto do bairro, para que a gravidade fizesse seu trabalho. Ela ficava do lado norte da Avenida Paes de Barros, a mais importante e larga da região. De frente para ela, ao sul, estendia-se um declive, em princípio bem acentuado, até o bairro do Ipiranga, do outro lado do rio.

Do outro lado da avenida havia uma construção enorme, de um prédio de apartamentos de mais de 15 andares. O fundo dessa construção dava para um arco enorme, inclinado como um auditório gigante. Nas duas extremidades havia escadas muito altas, com quase 300 degraus. No centro, um platô liso formava um campo de futebol de várzea, com uma das traves no pé do morro, abaixo da construção, e a outra no lado oposto, de costas para uma rua de barro que descia atravessando a Juatindiba, passando ao lado do hospital João XXIII, seguia ao largo da cerca dos fundos do clube do Juventus e continuava até chegar na Esso.

Nesse campo imenso resolvemos, eu e meu amigo gordinho, experimentar essa autêntica delícia adulta de tabaco. Fumamos um cigarro inteiro cada um e eu, ao final, senti o mundo girando, o estômago revirando e minha boca vomitando… Nunca mais fumei. Mas aquilo me deixou com uma sensação de frustração intensa, daquelas que precisam ser recompensada de qualquer jeito. Olhei para o pé da trave e vi encostado um velho pneu. Uma ideia brilhante surgiu no momento. Uma competição entre nós para espantar o baixo astral! Faríamos o pneu rolar ladeira abaixo e quem o fizesse chegar mais longe, seria o vencedor da disputa.

Peguei o pneu despretensiosamente, aprumei e soltei. Ele começou a corrida titubeante, balançando como um bêbado de um lado pro outro, foi ganhando força, velocidade, quicando cada vez mais forte, mais rápido… nessas alturas já estava no meio do quarteirão, nós dois olhando um para o outro, olhando para o pneu, cada vez mais veloz… Aí meu Deus, que burrada! O besta do pneu não parava, já voava como carro de corrida o miserável e, finalmente, atravessou o farol vermelho da rua como se tivesse vida própria!

Nisso ouvimos um barulho assustador de um carro brecando bruscamente, mas sem chance de evitar o impacto. O motorista teve tempo de piscar os olhos antes de atingir o pneu que saiu voando alto, muito alto mesmo, como se fosse normal pneu voar. Não que nós estivéssemos ficado lá pra ver. Na velocidade da luz subimos uma das escadarias, chegando na avenida em menos de três respiradas. Descemos até a rua da Mooca e só voltamos para casa muitas horas depois.

Quando voltamos pra casa soubemos do “acidente”… Ninguém sabia dizer como aconteceu, mas parece que um pneu desceu ladeira abaixo e foi atingido por um Chevroletão antigo, com para-choques de metal, que vinha em grande velocidade. O pneu foi lançado com violência sobre uma viatura que vinha no sentido contrário. Voltou quicando na outra direção e bateu de raspão na cabeça de uma menina que estava engasgada com um bala presa na garganta. A bala voou longe enquanto a mãe, chorando desesperada, caia de joelhos no chão agradecendo a Deus nosso senhor! No carro havia dois homens e uma mulher. Sob o banco traseiro, camuflado e muito bem disfarçado, havia um pacote enorme com quilos de pasta de cocaína que seria usada para produzir muita droga. Os ocupantes do veículo foram levados à delegacia para averiguações e, ao que parece, não sairiam de lá tão cedo. 

Todos na vizinhança comentavam o fato e acrescentavam um pouco mais de drama e fantasia à medida que o tempo passava, de tal forma que já atribuíam à intervenção divina o surgimento milagroso do santo pneu. De fato, chegaram a fazer uma pequena coluna de concreto na esquina do ocorrido e fixaram o pneu com grapas de ferro, de tal modo que através dele se podia ver o exato local onde ele havia atingido a cabeça da menina. Começaram a colocar flores e laços de fita, pedidos de ajuda em pedaços de papel. Sua fama foi crescendo a cada dia, atribuindo ao agora Círculo Látex Divino da Amazônia as curas mais diversas, de caxumba a tendinite, espinhela caída a impotência! Colocavam a cabeça, os braços, as pernas no vão do pneu para receber as graças. Tiravam fotos com o aro formando uma moldura preta. Trouxeram um padre e água benta, um pastor com a Bíblia e um pai de santo. Quando chegou o rabino virou o maior encontro ecumênico da região em muitos anos. 

Uma noite, já hora avançada, enquanto todos dormiam e o pneu descansava de um dia de intensa romaria, forrado até a tampa de papel e flores secas, dois moleques arteiros atearam fogo à papelada e ficaram horas assistindo a fogueira ardendo e gemendo, com uma fumaça escura que ia da calçada na terra até o infinito do céu. Na manhã seguinte o pneu havia sumido… sem deixar marcas.

CaMaSa

Beijos

O primeiro beijo a gente nunca esquece, claro, mas as circunstâncias do fato podem torná-lo épico, dramático ou absolutamente embaraçoso. Aos 9 anos eu acompanhava a cena musical brasileira através dos olhos e ouvidos da irmã mais nova. Os festivais de música popular brasileira (MPB), com seus artistas cabeludos, esquisitos e vestidos de uma forma estranha, de um lado, e a Jovem Guarda, com seus artistas cabeludos, esquisitos e vestidos de uma forma estranha, do outro. Para mim era tudo absolutamente visual e cenas como a de um cantor quebrando o violão no chão e jogando o instrumento todo arrebentado sobre o público que o vaiava incessantemente, ou a de senhoras, já avós, jogando pétalas de rosas no monitor da TV, em preto e branco, para alguém que as mandava para o inferno, eram bem marcantes.

Na época eu achava que ambos movimentos defendiam posições distintas, com a turma da MPB defendendo uma arte musical própria, nacional, de raiz, falando sobre as necessidades do povo e suas aspirações, propondo uma revolução cultural através da liberdade e da igualdade, e o pessoal da Jovem Guarda buscando na internacionalização da música e do jeito de ser, falar e se vestir, um estilo de vida que se queria alcançar através de um atalho, copiando o que já era sucesso comprovado. Com o tempo percebi que estavam do mesmo lado, que através de qualquer expressão artística, só é possível alcançar o próprio sucesso, gigantesco e duradouro para alguns, muito pequeno e curto, em termos de sustento, para outros. Que não é dessa forma que se conduz uma nação e seu povo a um patamar mais elevado, ainda que alguns ainda creiam sinceramente nisso.

Mas era uma época de ídolos dourados, como hoje, e fãs alucinados, como hoje. Eu gostava de todos. As músicas eram muito boas e divertidas e alegravam um povo sofrido e com poucas perspectivas. Mas a verdade era que enquanto o pessoal da MPB fazia cabeças e agitava o público universitário, mais politizado, a turma da Jovem Guarda causava um furor apaixonado nas adolescentes de 8 a 80 anos. Certa vez o Príncipe da juventude faria uma apresentação no colégio Firmino de Proença, perto de casa. Não sei se eram os olhos verdes ou os cabelos longos jogados sensualmente para o lado, mas suas músicas românticas e melosas provocaram um verdadeiro tumulto, sendo necessário a intervenção da polícia militar para conter a multidão. Eu acompanhava tudo na segurança da cozinha/ateliê de costura de casa, recebendo notícias picotadas através da rede de informações das minhas irmãs e suas amigas. Se com um Príncipe a coisa já tinha sido tão intensa, imagina o que seria um show do Rei!

O Rei, e sua corte, não ia a colégios. Suas apresentações só aconteciam em horário e local definidos, num padrão único que seguia um ritual planejado com mão de ferro. O sonho de toda jovem era participar desse conto de fadas televisivo ao vivo e a cores, já que as transmissões ainda eram em tons de cinza. Naquele ano mudara-se para nosso prédio uma encantadora família carioca, com seu jeito diferente e divertido de falar e viver a vida. O pai viera a trabalho e trouxera a tiracolo a mulher, dois filhos mais velhos, e duas filhas Sony e Quinha. Sony era a mais nova, rosto rechonchudo e cabelos crespos, com um jeito de falar choramingado que provocava um humor involuntário em qualquer situação. Quinha era um pouco mais velha, morena jambo, muito bonita, com formas acariocadas perfeitas que provocavam devaneios nos meninos por onde passava. Eu, que de uma maneira inocente sempre gostei de meninas, fiquei completa e platonicamente apaixonado por aquela beleza exótica. Como as duas eram alucinadas pelo Rei, criaram um vínculo imediato com minha irmã e eu, por motivos óbvios, passei a me interessar cada vez mais pelo assunto, demonstrando até saber muito mais do que realmente sabia. Eu fazia parte desse minúsculo fã clube de três garotas sonhadoras, que passavam os dias trocando informações sobre cada detalhe dos cabelos, das roupas, das músicas, de tudo enfim que dizia respeito aos reis do iê-iê-iê. O grande objetivo do clube era participar do programa num domingo de sonho. E sonhavam a valer, planejando minuciosamente como atingiriam essa realização, como comprar os ingressos, como chegariam até lá, com que roupas iriam, etc. Eu estava fora dos planos, mas sonhava com a mesma intensidade com o dia que a Quinha declararia sua paixão por mim, pegaria minha mão e passearia comigo pela rua, para grande espanto e admiração dos meus amigos.

Quem sonha com os pés no chão conquista e, de tanto insistirem e lutarem por isso, chegou o dia em que finalmente iriam ao show, conhecer de perto a Jovem Guarda. Haviam conseguido os três ingressos através de um amigo de um amigo do seu pai, e a alegria das meninas era tão intensa que mal se reparava na minha tristeza infinita. A semana, que para elas custava a passar, para mim se arrastou lentamente, fazendo de cada minuto um eterno calvário de sofrimento infanto-juvenil. Era duro demais! Não que eu quisesse conhecer pessoalmente esses ídolos, gritar suas músicas ou me descabelar. Eu só queria estar junto da Quinha, ouvir a sua voz e rir com sua risada. Mas, seja porque meu sonho era mais intenso, ou porque catapora era real e atacava crianças indiscriminadamente, Sony amanheceu o domingo com febre alta e com a pele toda pipocada. Sorte de uns, azar de outros, o ingresso caiu no meu colo, para minha felicidade. De uma hora pra outra saí de um inferno de dor para um paraíso de possibilidades. Banho rápido, roupas de festa, até um perfuminho! Embarcamos num ônibus até um lugar, descemos e pegamos outro que nos deixou em frente ao teatro. Um enorme aglomeração de jovens formava-se diante da porta, concluindo uma fila enorme que dava voltas no quarteirão. Eu ficava entre minha irmã e Quinha, que seguravam firmemente minhas mãos, recomendação muito específica de minha mãe. Eu suportava tudo com um leve sorriso de satisfação no rosto, aproveitando ao máximo o meu momento. Duas horas depois entramos no local.

It’s been a hard day’s night, eu me sentia como um dog! Perdidaço… Que zoeira, quanta gritaria! Como era possível alcançarem tantos decibéis? E, à medida que a coisa ia se aproximando do final, ao invés do som diminuir, aumentava cada vez mais, numa espiral crescente e ensurdecedora. Pelos meus cálculos, já haviam passado barões, condes e viscondes pela corte e chegava a hora de que os reais representantes do reino fariam suas apresentações. O Amigo do Rei, a Princesa e, finalmente, o próprio Rei, cantaram o que tinham pra cantar, deixando o público em estado de êxtase indescritível. Chorados e alucinados bis foram concedidos economicamente e, enfim, as pesadas cortinas de veludo juntaram-se no meio do palco encerrando aquela tarde inacreditável. 

O teatro esvaziava muito rapidamente mas minha irmã preferiu ficar sentada aguardando que as coisas acalmassem. A grande maioria ia para a porta na esperança de encontrar o Rei saindo de carro. Era impossível, claro, havia uma saída secreta para essas situações, livres de qualquer possível assédio. Aproveitei esse momento de espera para ir até o palco e ver aquilo de perto. Não era muito alto, cerca de 1,10 mts de altura, e, num gesto impulsivo, saltei para cima e atravessei a abertura das cortinas. Foi como passar por um portal mágico que me conduziu para um reino mágico e encantado… mas, de verdade, era bem normal para qualquer um que tivesse alguns anos a mais que eu. Os instrumentos estavam lá, alguns músicos, técnicos e produtores. Vi um pequeno grupinho com três pessoas e me aproximei. Nele estavam o diretor do programa, um tal de Melão que eu já tinha visto em algum programa de entrevistas, o amigo do Rei e a Princesa. O diretor olhava para mim e o Amigo percebendo minha presença disse:

– Ei, você é o Batman? Que bom te ver por aqui!

Eu achei aquilo muito legal e deu pra entender porque o Rei gostava dele e o chamava de Meu Amigo. A Princesa Léa apontou seus enormes olhos verdes em minha direção, aproximou seu rosto lindo do meu para me beijar. Nesse instante, eu, por reflexo, virei o rosto para o lado direito e os seus lábio macios estalaram um beijo de bochecha na minha boca! Ela riu gostosamente e disse:

– Que gracinha você é! Está sozinho? Não é melhor voltar para sua mãe?

Ela me virou na direção da abertura da cortina e eu segui como um robô, voltando para as garotas que me esperavam ansiosas. Queriam saber onde eu havia me metido, onde estava e com quem? Mas eu não tinha nada pra dizer, havia vivido um momento muito especial, só meu, tinha tido uma lição e compreendido uma coisa muito importante que moldaria meu comportamento para sempre. Na minha simples infantilidade, havia percebido que aquelas pessoas eram pessoas comuns em papéis extraordinários. Que desempenhavam suas funções em resposta a milhares de pessoas que assim os viam e, assim, os faziam existir. E isso valia para artistas, políticos e líderes de qualquer espécie. Sem querer, humildemente, ali eu havia superado toda a idolatria, com o selo de um beijo.

CaMaSa