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Tudo estava milimetricamente calculado. Haviam passado meses estudando mapas, horários e possibilidades. Avaliaram todas as variáveis, antecipando movimentos como num jogo de xadrez. Exatamente para que não fossem parar no xadrez! Genaro, Mané e Tanaka sabiam que não tinham alternativa e que o dinheiro do patrão, o judeu Baruch, aguardava-os de braços abertos. Os três trabalhavam na fábrica de sapatos da Rua Dom Bosco, que ficava embaixo da fábrica de celuloides para relógio de pulso. Era um armazém pequeno, de dois andares, com 10 metros de frente por 40 de profundidade. O couro dos sapatos chegava em rolos, era liso de um lado e acamurçado do outro. Era aberto sobre bancadas de madeira e funcionários treinados marcavam a giz os defeitos, que eram recortados cuidadosamente com estiletes afiados como bisturi. A menor imperfeição, um furo feito em cerca de arame farpado ou a marca de um berne, era sumariamente extirpada. Depois, a peça de couro era posicionado em bancadas lisas, de madeira macia, e eram cortados habilmente com o auxílio de moldes pré-determinados, de acordo com o modelo de sapato. A peça era aproveitada ao máximo, restando somente pequenas tiras da matéria-prima, que eram acumuladas em tambores para descarte. Os moldes recortados eram furados, pespontados e costurados, esticados sobre modelos de madeira, compostos de duas partes unidas por um sistema de parafusos que, depois de um certo tempo, eram reaproximadas e retiradas do interior da peça de couro. Esta era colada à palmilha e posteriormente fixado ao solado de couro grosso para finalmente ser dado o acabamento.

Genaro emigrara da Itália nas primeiras levas da década de quarenta, e trouxera de lá a técnica dos “scarparos” apreendida do pai e do avô. A falta de oportunidades no país natal, trouxera ao Brasil um jovem idealista, beirando o anarquismo, cheio de fome e ambição. Imaginou que viria para uma terra de sonhos e dinheiro fácil, mas só encontrou dificuldades e condições de trabalho precárias. Conheceu a esposa mineira numa viagem de bonde, seduziu-a com seu bigodinho fino à Clark Gable e, rapidamente, colocaram mais quatro bocas famintas no mundo.

Mané era o intelectual do grupo. Viera de Rabaça, distrito da Guarda, província de Beira Alta, aos 17 anos, fugido de um pai enraivecido de uma menina linda, com os primeiros pelos do buço surgindo e o ventre cada vez mais volumoso. Ele penteara o buço, a boca, o pescoço e tudo mais que o desejo lhe dizia, com seu farto bigode preto e brilhante como piche. Pé rapado, sem eira nem beira, lançou-se ao mar em direção ao distante Brasil, onde tinha um tio-avô que nem conhecia, de quem dizia-se ser rico e influente no negócio de pães e farinha. Quando o encontrou, velho e maltrapilho, descobriu que o tio era faxineiro na padaria, e o seu negócio com farinha era varrê-la do chão!

O Tanaka era o mais jovem, tinha 20 e poucos anos, bonito e com o corpo bem delineado, imberbe, não tinha bigode. Era nissei de primeira geração e do Japão tinha somente um olho puxado. O outro havia perdido num acidente doméstico e, por conta disso, usava um de vidro que dava ao olho um formato mais arredondado, ocidentalizado. Seja por causa do trauma do acidente na infância, tinha 3 anos de idade, seja por questões genéticas, ou porque o Criador assim quisera, o japa tinha uma leve defasagem entre a idade biológica e a mental, que o mantinha razoavelmente mais sorridente que o normal, além de muita dificuldade para compreender a realidade que o cercava. Era extremamente tímido, nunca havia namorado e, talvez, nunca tinha conversado com alguma garota.

Genaro porque precisava, Mané porque ainda amava a mãe do filho que não conhecera e Tanaka, porque não entendia muito bem o que fariam, cada um com sua razão, juntaram-se no objetivo comum de tomar do velho Baruch uma parte do dinheiro que lhes cabia. O judeu passou mal bocados na vida! Era um dos poucos anciãos que haviam estado em campos de concentração nazista e saiu vivo de lá para esquecer. Usou de muita astúcia e malícia para sobreviver. Comeu unhas, ratos e insetos. Negociou, fingiu, lambeu botas, traiu e delatou. Não tinha amigos e parentes quando lá chegou e ganhou inimigos de ambos os lados quando saiu. Mas sobreviveu. E ainda saiu de lá com um tesouro! Uma moeda de ouro, que surrupiou de um sargento alemão e acusou um companheiro de cela pelo roubo. Este pagou com a vida, mas a morte já o esperava de qualquer maneira, Baruch só antecipou o encontro algumas semanas.

Quando chegou ao Brasil, o velho judeu encontrou um mundo de oportunidades de negócios numa terra de gente indolente e lasciva, mais interessada no que fazer nos fins de semana do que ter lucro na compra e venda de mercadorias. Em pouco tempo descobriu os melhores fornecedores, conseguiu maiores prazos e as condições mais favoráveis para juntar um pequeno capital. Não gastava, só acumulava. Pouco comia, estava habituado a passar fome, não bebia, não tinha luxos. As roupas puídas e manchadas disfarçavam um personagem que enriquecia rapidamente na cena paulistana do pós-guerra. Pelo contrário, faziam dele um comerciante que a concorrência acreditava ser fácil de enganar, mas na realidade era uma aranha que pacientemente tecia sua teia de empréstimos a juros exorbitantes, à espera das moscas, de roupas finas e nomes pomposos, que seriam devoradas sem misericórdia. Quebrava-os tomando suas fortunas, seus bens, seus imóveis e sua honra. Em pouco tempo estava milionário, bilionário, mas mantinha a mesma rotina miserável. Morava sozinho numa mansão de 36 aposentos na Avenida Paulista, quase em frente à dos Matarazzo, na época em que a avenida ainda não havia sido completamente tomada pelos arranha-céus do império financeiro. Seu único prazer era passar a noite polindo, com uma velha flanela, as moedas de ouro que havia acumulado, à luz fraca e baça de uma lâmpada a óleo que tremeluzia na escuridão da mansão fantasmagórica.

Naquela noite amaldiçoada, Genaro, Mané e Tanaka saíram, cada um de sua casa, em direção à Avenida Paulista, na altura do número 1400, para um encontro marcado à meia-noite. Genaro estava tenso e irritado, nervoso e preocupado que algo pudesse dar errado e eles saíssem da casa sem o dinheiro. Mané estava frio e tranquilo, havia feito todos os cálculos e projeções matemáticas, apesar de que, em sua terrinha natal, havia aprendido somente três operações, não sabia dividir… Tanaka trazia no rosto um sorriso de superioridade oriental, reforçado pela imobilidade vítrea, escura e fria do olho artificial. A chuva fina apertara bastante e os primeiros raios começavam a estourar no céu escuro de nuvens carregadas. Cumprimentaram-se rapidamente e repassaram os próximos passos. Construída em 1896, a residência foi projetada pelo escritório de Ramos de Azevedo a pedido de Luiz Anhaia. Por alguma razão Anhaia não ficou no casarão e em 1911 o imóvel foi vendido ao industrial e banqueiro de origem italiana, Alexandre Siciliano. O imóvel ficava localizado no número 1412 da Avenida Paulista. Tratava-se de uma enorme construção de quatro andares, no meio de uma grande área verde. Tinha vários cômodos muito amplos, sala de leitura, sala de jantar, salão de jogos e dependências externas para acomodação de empregados, além da garagem. O imóvel passou por várias mãos, até chegar a Baruch como pagamento de uma dívida do então proprietário.

A mansão era ladeada por outras duas amplas residências e a construção principal era cercada de alamedas arborizadas. Nos fundos, de frente para as garagens, havia uma pequena escada que dava acesso a uma porta de ferro, fechada por um único cadeado apodrecido, conforme Mané havia observado numa das vezes em que viera à casa do patrão para entregar documentos da empresa. A ronda noturna cobria apenas dois dos imensos quarteirões, dando uma volta completa a cada 18 minutos. Tanaka e Mané entrariam pelo muro lateral da casa à esquerda, desocupada há alguns meses, enquanto Genaro seguiria o guarda noturno por toda a ronda, para se certificar que ele completaria o percurso no tempo estimado. Nesse período, os dois teriam o tempo necessário para serrar o cadeado com o mínimo de ruído possível, entrar pela porta de serviço, atravessar toda mansão no escuro e abrir a porta principal para o Genaro, que deveria ultrapassar o vigia a tempo de chegar e desligar, pelo lado de fora, o sistema de alarme que acendia uma lâmpada vermelha quando a porta era aberta pelo lado de dentro. 

Tudo havia funcionado com a precisão de um relógio suíço, os três amigos já estavam no interior da mansão, o velho Baruch polia silenciosamente suas moedas em seu quarto e a ronda noturna havia passado pela calçada sem perceber nada de anormal. A chuva torrencial e os raios prateados afastavam qualquer possibilidade de intromissão. Genaro estava quase calmo, mas havia somente um pequeno detalhe que poderia pôr abaixo tudo o que tinha sido tão bem planejado. A mansão havia sido invadida por outros três assaltantes naquele exato momento!

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