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Brigas

Roubil

Recentemente foi anunciada com grande estardalhaço a luta entre um ex-boxeador campeão mundial e um ex-big brother fanfarrão. A publicidade exaltava o caráter conflituoso do embate, muito mais uma briga de rua do que um combate pugilístico, definido por regras específicas. A tal luta do século terminou de forma vexaminosa em 36 segundos, com um dos oponentes estatelado no chão. Eu não vi, mas a enxurrada de vídeos e memes replicados nas redes sociais, me trouxe à lembrança brigas verdadeiras, dessas de partir narizes e corações. Uma em especial aconteceu debaixo do meu nariz, ou melhor, sobre mim, nos meus tenros e inocentes primeiros anos de vida. Havíamos recém mudado para um novo endereço, numa rua qualquer da Mooca, próximo ao centro da cidade de São Paulo. O imóvel alugado era um pequeno galpão no andar térreo de um prédio de 3 andares, o Edifício Marly, onde meu pai instalou sua marcenaria. Nossa moradia era nos fundos, um quarto, sala e cozinha, bem apertados.

Meu pai era um excelente artesão marceneiro. Ele não tinha, digamos, delicadeza, seus móveis eram maciços e pesados, feitos para “durar para sempre”. Aprendeu o ofício em sua terra natal, num pequeno vilarejo da Itália, no alto de uma montanha, na província de Salerno, ao sul de Nápoles. Teve como mestre um paisano que o arrastou para o Brasil anos mais tarde, em busca de sonhos de riqueza. Ou pelo menos de comida na barriga. Já era casado e deixou para trás minha mãe, grávida da segunda filha, e a minha irmã mais velha, então com 3 anos. O pós-guerra deixou a parte mais pobre da Europa sem esperanças e ele acabou embarcando numa aventura sem volta, atravessando o Atlântico num navio escuro e enferrujado em direção a uma terra distante e desconhecida.

Quando aqui chegou, fez o que qualquer jovem cheio de energia e mal orientado faria. Meteu-se em confusões cada vez mais complicadas, até que minha mãe, desesperada e muito mais consciente, veio em seu socorro com duas crianças a tiracolo, livrá-lo das malhas do destino das quais ele mesmo teceu e se enrolou. Evidentemente, depois de 3 anos e meio tinham muitas contas para acertar, muita mágoa enraizada difícil de arrancar do peito. Do silêncio raivoso e velado, passaram às cobranças dolorosas e às ofensas explícitas. A pouca cultura era facilmente suplantada pela necessidade de respostas a perguntas que jamais seriam completamente respondidas, e os bate-bocas iam tornando-se cada vez mais altos, à medida que o molho de tomates para o macarrão feito em casa subia na panela e borbulhava, preenchendo a pequena cozinha onde se almoçava e jantava, com um aroma suave e saboroso, saudoso de Itália.

Nesses momentos em que a gritaria ganhava cada vez mais volume, eu, aos 5 para 6 anos de idade, pegava meu caderno e me escondia debaixo da mesa para fazer a lição de casa. Essa é minha primeira lembrança do entendimento do que meu pai fazia para nos sustentar. A mesa tinha o tampo de fórmica verde-água, com minúsculos pontinhos dourados brilhantes. Era a novidade americana dos anos 50 que havia chegado ao Brasil dos anos 60. Os pés eram de madeira maciça com 90 centímetros de altura, cônicos, com cerca de 12 centímetros de diâmetro no topo e afinando para uns 5 centímetros na base. Pintados com alguma espécie de tinta preta, própria para a madeira. Estavam firmemente fixados ao tampo em sapatas de madeira com muita cola e parafusos, impossível de soltar.

Era embaixo dessa obra de arte robusta, marca registrada do meu pai, que eu resolvia as primeiras contas aritméticas aprendidas no primeiro ano primário, à meia luz difusa sob a mesa, enquanto do lado de fora da minha cabana improvisada os gritos e xingamentos atingiam decibéis muito acima do tolerável. Absorto nos meus cálculos de complexidade infinita, eu me apartava da confusão entre meus pais, sem absorver nada do que se diziam um ao outro. Nem percebi quando a certa altura, o molho cansado de ferver e gemer, agarrou-se ao fundo da panela, queimando um pouco. Seja porque os nervos estavam à flor da pele, ou porque os sonhos de riqueza haviam se transformado num pesadelo de desilusões, ou porque o cheiro de tomate queimado lembrou seu estômago de que a fome não seria justamente aplacada naquela noite, meu pai atirou a panela com violência contra a parede de azulejos brancos, amarelados pelo tempo.

O molho fervente espalhou-se pela parede como sangue borbulhante de raiva. O barulho do impacto, ao invés de arrefecer os ânimos, multiplicou o ódio dos corações ressentidos. Diante da situação desoladora e encurralado pelos gritos de minha mãe, meu pai fez exatamente o que lhe cabia naquele momento: arrancou um dos pesados pés da mesa e golpeou com ele várias vezes o tampo de fórmica. Eu, alheio a tudo que se passava, despertei do meu estado de torpor estudantil e saí às pressas do abrigo que desmoronava sobre minha cabeça. Surpresos e espantados com minha aparição em cena de modo tão estapafúrdio, meus pais pararam imediatamente a discussão. Corri para os braços de minha mãe, que me acolheu com seu manto de proteção, como só as mães sabem fazer. Um misto de alívio e paz invadiu o pequeno recinto e eu fiquei com a sensação que poderia ser um portador de paz a todos os conflitos, através da minha imparcialidade, distanciamento e calma.

Não que naquela época eu tivesse alguma ideia do que pudesse ser imparcialidade, distanciamento ou até mesmo calma. Conceitos que foram sendo absorvidos e compreendidos durante a jornada de toda uma vida. Mas são as primeiras lembranças e impressões fixadas na memória, mesmo 60 anos depois. Para minha sorte, não me lembro dos conflitos anteriores, que talvez tenham sido muito piores do que esse. Deus, em sua infinita bondade, poupa os pequeninos dos gritos, discussões e agressões verbais, tão doídos como tapas na face ou socos no estômago, para que não os carreguem pela vida como traumas sem explicação. Há o Bem e o Mal em nossos corações. Escolhamos o Bem. Falemos baixinho uns aos outros, como num sussurro de amor e compreensão. As crianças agradecem.

CaMaSa

O Crime da Irmã Amara

Roubil

Esta é uma estória do tempo em que as fofocas eram ditas a boca pequena, ainda não existia internet e redes sociais, e as pessoas, entre as quais padres e freiras, não podiam amar livremente. Ela é, como sempre, baseada em trechos de conversas interrompidas, sem conclusão, um ou outro nome meio esquecido, uma ou outra palavra perdida nos vãos da memória e da confusão. Ouvindo essas coisas entro numa espécie de transe, ouço atento nem pisco, olho a pessoa mas já não estou lá. Vejo-me entre os personagens descritos, vagueio entre eles sentindo seu cheiro, seu gosto e suas cores. Claro que trocarei os nomes dos envolvidos, nossa freira não se chamava Amara e, pelo contrário, ela era muito doce e gentil. 

O colégio, palco do nosso drama, também não se chamava Colégio Divino Coração em Chamas e para ser o mais verossímil possível, digo que se localizava em São Paulo, em bairro nobre e elegante. Pelos extensos corredores de ladrilhos hidráulicos absurdamente limpos, polidos e brilhantes, circulavam diariamente alunos, professores, serventes e funcionários da administração, todos e tudo regidos com mão de ferro pelas freiras Marianas. Cada setor da escola, da biblioteca ao jardim, tinha uma irmã responsável pelo gerenciamento das atividades de cada funcionário contratado e nada fugia desse controle. Lâmpadas, fechaduras, carteiras, bancos, lousas sempre limpas para as aulas do dia seguinte, com a quantidade exata de giz a ser usado de acordo com a matéria, exaustivamente preparada pelos professores e supervisionada pela freira encarregada da correspondente disciplina. Os fundamentos cristãos eram cuidadosamente inseridos nos conceitos científicos, permeando todas as disciplinas, da Matemática à Língua Portuguesa, da História à Geografia, da Física à Química, do Francês ao Latim. Isso não desmerece tais fundamentos, vez que são aplicados por seres humanos humanos sujeitos a erros como qualquer um, ainda que freiras. Errare humanum est, perseverare autem diabolicum!

Entre erros e acertos (milhares de acertos para pouquíssimos erros), dedicavam-se aos serviços na Secretaria do colégio, duas jovens irmãs recém-casadas, cujos filhos Laís, Pedro e Paulo, de Ana, e Rita e Lúcia, de Joana, puderam frequentar uma escola de tão alta qualidade, devido ao trabalho das mães. Ana deslocava-se com seu Fusquinha pela cidade aos primeiros raios do Sol, levando consigo as cinco crianças. Uma escadinha de 10, 9, 7, 6 e 5 anos. Começava o trabalho às seis horas da manhã e terminava o turno ao meio dia. Ana deixava o carro para Joana e voltava de condução. Sua irmã dava início então, indo até às seis da tarde e voltava para casa com as crianças que passavam o dia na escola, entre aulas, estudos, tarefas e períodos de inatividade. Num desses períodos ociosos, o pequeno Paulinho, arteiro da planta dos pés até a ponta dos cabelos loiríssimos, quase platinados, deixou irmãos e primas estudando na biblioteca com a desculpa que ia ao banheiro. Seguiu pelo corredor vazio, desceu as escadas e foi em direção ao imenso jardim interno, nos fundos do colégio. Gostava de vaguear entre as árvores frutíferas do pomar, caçando mangas maduras no pé. Avistou uma amarelinha no alto da copa e trepou rapidamente por entre os galhos. O fruto soltou fácil, com um leve puxãozinho. Deu a primeira dentada e puxou a casca com os dentes, sentido o perfume delicioso exalado. Nesse exato momento ouviu um barulho. Passos e vozes aproximaram-se afobados do tronco da mangueira. O menino ficou em silêncio, prendeu a respiração para não ser descoberto. Reconheceu a irmã Rosinha, seguida pelo motorista da escola, o Tobias. Os dois se abraçaram bem abaixo do garoto estupefato, agora de olhos arregalados. Quando os amantes se beijaram, suas mãos perderam as forças e a manga escorregou entre os seus dedos, indo se estatelar na cabeça do motorista!

Tobias nem teve tempo de levar a mão à cabeça. Paulinho perdeu o equilíbrio e caiu por cima do pobre, rolando os dois pelo chão. Não se sabia dizer qual dos três estava mais surpreso e assustado. O menino pela confusão, a freira pelo constrangimento ou o motorista que pensava estar sendo punido por Deus! O casal, refeito do susto, encontrou uma rápida solução. Ralharam com a criança, ameaçando-o com o castigo divino caso ele falasse com alguém sobre coisas que ele imaginava ter visto e, por trepar em árvores pondo a vida dos outros em perigo, seria trancado no barraco de ferramentas da irmã Amara, responsável pelo jardim. E lá ficou o garoto trancado no escuro, sozinho, com medo e arrependido de ter visto coisas que não compreendia e não deveria ter visto. 

Joana procurou o sobrinho por todo o colégio com o auxílio dos demais funcionários e freiras, até que finalmente chegaram ao pequeno depósito de ferramentas. Abriram a porta que estava trancada por fora com um simples trinco e encontraram Paulinho sentado no chão, o rosto entre as pernas, chorando baixinho. O menino não falava nada, estava completamente mudo, sem explicar como havia sido trancado lá. A tia concluiu que ele havia feito alguma traquinagem e a irmã Amara castigou seu sobrinho, trancando-o no pequeno galpão. Procurou a freira para saber o que havia se passado, mas soube que ela e a irmã Rosinha haviam sido levadas pelo motorista Tobias ao Mappin, no centro da cidade, para fazer algumas compras. Reuniu a criançada, embarcou todos no Fusquinha e voltou para casa ao encontro da irmã. Resumiu em poucas palavras o que havia ocorrido e entregou o garoto aos cuidados da mãe. 

Ana não conseguiu arrancar explicação alguma do filho e prometeu que no dia seguinte tiraria essa história a limpo. Não conseguia pregar os olhos. O que mais lhe doía era a traição. Amava a irmã Amara, sempre carinhosa com as crianças, sempre disposta a ajudar, amiga e verdadeira, uma grande inspiração. Como ela podia ter feito isso? Passou a noite acordada pensando no que diria à freira. Acusaria, ofenderia e ameaçaria ir à polícia. Não foi necessário. Ao acordar no dia seguinte, encontrou o marido imóvel, xícara de café suspensa no ar, diante da televisão. O jornal da manhã noticiava o caso da freira que na tarde anterior havia sido presa por furto no Mappin. Ela havia sido pega roubando uma calcinha, escondida em seu hábito. Era a irmã Amara!

* * *

Naquela tarde, depois de trancarem o menino no galpão de madeira, Tobias e a irmã Rosinha encontraram a irmã Amara em frente ao colégio. As duas foram encarregadas de comprar toalhas e guardanapos de linho para a mesa de jantar do restaurante oficial, reservado a visitantes ilustres. Irmã Amara sentou-se no banco da frente ao lado do motorista e não percebeu quando este e a noviça de vinte e poucos anos, metade de sua idade, trocavam olhares apaixonados e suspeitos. Eles haviam decidido, em parte pela tensão ocorrida horas antes, em parte porque a paixão já não cabia em seus corações, fugir para o Rio de Janeiro e dar início a uma nova vida juntos. Rosinha sentia vergonha de consumar seu amor pela primeira vez, usando calcinhas largas e puídas de linho grosso que compunham a vestimenta das freiras. Imaginou entregar-se desnuda, mas considerou isso um pecado. Circulando pela loja, ao passar pela seção de moda feminina, pegou uma calcinha vermelha de rendas e, temendo ser vista, enfiou rapidamente no bolso da companheira sem que essa percebesse.

Flagrada, assustada e absolutamente inocente, sem entender o que estava acontecendo, irmã Amara foi fichada e condenada, sendo preciso a intervenção de advogados da arquidiocese paulistana para liberá-la da prisão. Foi transferida para uma pequena e desconhecida diocese no interior do Estado, no meio de uma enorme fazenda, onde pôde cuidar de plantas e flores. Quanto a Rosinha e Tobias, tiveram seis filhos, seguindo fielmente o preceito cristão: “Crescei e multiplicai-vos”.

CaMaSa

Ladrões

Roubil

A dor da fome é cruel. Não estou falando da inanição, que tira todo ânimo e te derruba no chão, sem forças para lutar. Falo da fome que ronca dolorida no estômago, amaldiçoa a existência e te faz um ladrão. Ele perambulava pela vida há pelo menos trinta e poucos anos, pisara terras roxas, secas, agrestes e espinhosas, os macacos de pedra, os cimentos e os asfaltos escuros de todo este país. Já não tinha mais laços, família e amigos, nem nome ou identidade. Era só um fantasma em forma de gente, um conjunto de ossos forrado por uma pele fina, queimada de Sol e lavada de chuva. Os vira-latas famintos das ruas, com os quais disputava os restos de comida nos lixos, tinham mais carne e gordura que ele.

Não cabe aqui sua história explicando os erros que o trouxeram até aqui. Talvez tenha sido somente um, grande o bastante para afogar-se na culpa sem fim, sem volta e sem perdão. Aqui estava, cumprindo seu destino, diante dessa casa bonita, de sonho, do outro lado da rua, com cerca pintada, gramado verdinho pincelado com flores coloridas, amores-perfeitos lindos de viver. De vez em quando, passando pelas vitrines das lojas, via nas telas das televisões casas como aquela, cheias de vida, felicidade e comida. Nessas horas sua boca aguava de vontade, babando a cada prato fumegante de sopa, macarrão com molho de tomate e queijo, arroz com feijão e bifes, grossos, macios e acebolados.

Notou um movimento na entrada da casa, a porta da frente se abriu e dela saíram o pai e a mãe, um casal de filhos pequenos loiros e rechonchudos e um cãozinho branquinho como a neve saltitando entre as crianças. Os pais carregavam malas, maletas e sacolas e colocavam tudo no porta-malas do carro. Acomodaram as crianças e o cachorro no banco traseiro, a mãe sentou-se no banco do passageiro enquanto o pai verificava as trancas das portas e janelas. Quando deu-se por satisfeito, assumiu o volante e partiu com a família sem olhar para trás.

Ele observou tudo à distância, longe, em seus pensamentos de tristeza e desolação. Aos poucos voltou ao seu mundo concreto e físico, com suas entranhas clamando por uma solução. A necessidade, mãe da invenção, lhe trouxe uma ideia esquisita e arriscada de pura tentação. Viu a casa vazia de gente, de vida e de donos, à sua disposição. Deu passos indecisos em sua direção, pulou a cerca baixinha, rodeou pelo corredor lateral até o quintal no fundo e quebrou o vidro da porta com um soco. Com a mão sangrando o sangue ralo abriu o trinco interno da porta e entrou pela cozinha ampla e perfumada de limpeza e frutas. Atacou ferozmente uma banana ainda verde, quase sem tirar-lhe a roupa. Chupou uma laranja e, na sequência, uma manga fiapenta. Mas a fome não aplacava. Acalmava mas não passava.

Olhou para a caixa branca enorme que ronronava baixinho. Puxou a alça da porta lentamente e sentiu o bafo frio de encontro ao seu rosto. Viu uma grande fartura de verduras e legumes, potes diversos e garrafas variadas. Estava cheia. Ele poderia passar um ano com o que tinha ali. Abriu o freezer e olhou para os potes de sorvete encantado. Percebeu um saco transparente envolvendo uma massa vermelha escura. Era carne. Retirou sem pensar o pacote da geladeira e colocou sob a água corrente da torneira da pia. Deixou-a ali até que aquele pedaço de carne, dura como uma pedra, amolecesse devagarinho e voltasse a ser macia. Pingava sangue! Ou ainda era de suas mãos que o fluido vital escorria? Não sabia. Só conseguia pensar no bife. E nas cebolas douradas que o acompanhariam. Procurou nos armários e gabinetes da cozinha alguma panela. Encontrou uma frigideira grande, bonita, marcada por milhares de frituras saborosas que alimentaram aquela família. Cortou duas cebolas em rodelas, picou dois dentes de alho, deitou fios de óleo sobre a frigideira vazia em cima de uma boca do fogão, deixou que esquentasse um pouco, jogou um bife enorme dentro. A carne gritou em contato com a chapa quente. Shhhh… Espalhou a cebola por cima da carne, salpicou sal branquinho e deixou-se invadir pelo aroma saboroso daquela combinação perfeita.

Apesar da urgência dessa fome implacável, teve tempo de raciocinar e concluir que aquilo era uma refeição e, como tal, merecia mesa posta, louças e talheres. Sacou um prato colorido e colocou sobre um guardanapo em cima da mesa ao lado de uma caneca de plástico. Encheu a caneca com um suco de uva encontrado na geladeira e despejou todo o conteúdo da frigideira, bem mal passado, no seu prato. Aspirou o perfume delicioso com imenso prazer, de olhos fechados, lembrando o tempo em que tinha um nome, amor e família. Cortou o primeiro naco de carne, espetou seu garfo e juntou pedaços de cebola, levando com cuidado até sua boca. Na primeira mordida, ouviu um barulho duro, metálico. Era a chave girando na fechadura da porta de entrada, logo depois o estalo da maçaneta e uma voz retumbante e assustadora gritando:

– Só um minuto querida! Vou confirmar se o fogão está apagado e retomamos a viagem.

Não condeno. Minha formação permite julgar, avaliar e pensar de maneira crítica, mas não condenar. Isso só pode ser feito quando calçamos os sapatos de alguém e vivenciamos sua experiência. Neste caso especificamente, tínhamos novíssimas botas de couro marrom com solas grossas de borracha de um lado, e um pé de sandália de tiras, muito gasta e ralada, do outro. Talvez porque no fundo no fundo, somos ainda animais selvagens cobertos por uma fina camada de verniz social, ou porque um pai de família, protetor dos seus, ao ver-se tomado de tamanha surpresa e atingido por uma forte descarga de adrenalina, parte para cima do inimigo perigosíssimo, franzino, esquelético e com a metade do seu peso, com tanta fúria ódio e descontrole que, ao arrastá-lo para fora de sua casa, coberto de socos e pontapés, não se dê conta, alguns momentos depois, que a multidão que acorreu ao local por causa dos gritos, batia sem parar naquele corpo inerte, já sem ar nos pulmões, com um estranho sorriso de felicidade na face encovada.

* * *

Naquele mesmo instante, saía para comemorar com a família e amigos, um ex-dirigente condenado por corrupção, libertado pelo saber jurídico e minúcias legais as quais somente os muito ricos e endinheirados têm acesso. Em um restaurante chique em Nova York, discutiam entre pratos caríssimos e vinhos de cinco dígitos, seu retorno triunfal à vida pública. Sentados à mesa com ternos bem cortados e camisas de linho brancas, de colarinhos sob medida, pavimentaram um futuro brilhante, com um discurso focado na defesa dos pobres e despossuídos, daqueles infelizes coitados que vagueiam pelas ruas do país sem ter o que comer e anseiam por um salvador que lhes dê o peixe, mas sem ensinar a pescar. Afinal, isso é muito perigoso, pois dessa forma eles podem sentir-se livres, com direito a escolher e pensar.

CaMaSa

Roubil

Roubil

Tão logo o mundo se curvou à nossa prodigiosa capacidade tecnológica de criar um sistema eleitoral de urnas infalíveis, demos um passo à frente de todos os sistemas jurídicos nunca antes elaborados na história humana, abolindo o crime de roubo. Esse superestimado sétimo mandamento, escrito a fogo em pedra por Deus, deixou de ser contravenção, da noite para o dia, por força do exemplo vindo de cima, em todo território nacional. O país passou a chamar-se Roubil, pátria de todos os roubileiros!

Graças a Alex, o Supremo, numa única canetada que uniu a elite jurídica, política, financeira, midiática, carcerária e zumbi de todo o país, roubar foi liberado, passando a ser ato tão corriqueiro e normal quanto comer. Irmão rouba de irmão, pai rouba do filho, patrão rouba do funcionário, cliente rouba do empresário, todo mundo rouba de todo mundo. De uma hora para outra milhares de ladrões inocentes, injustamente presos como bandidos, foram descondenados e postos em liberdade. A criminalidade diminui quase que totalmente, havendo até quem argumentasse sobre a inutilidade da polícia nesta nova era. No entanto, apesar de que alas mais radicais queriam inocentar também os assassinos, já que o ato de matar implica em retirar a vida de alguém, manteve-se a condenação pois ao roubar a existência do outro, não acrescia-se o infrator de objeto substancial e concreto. Sequestros eram casos especialíssimos pois ao tomar para si um ente querido, um filho por exemplo, de alguém, era sim o sequestrador beneficiado por um bem materialmente palpável, ainda que se tratasse de um simples ser humano. No entanto, eram raros os casos já que havia sido eliminada a necessidade de exigir resgate, uma vez que não era mais necessário dinheiro para se obter qualquer coisa. Bastava roubar!

Como se pode ver as mentes jurídicas divinamente privilegiadas tiveram muito trabalho para estabelecer essa nova ordem, esse novo Pacto Social. Evidentemente houve resistência. Alguns descontentes, homens e mulheres talhados no ferro e fogo da honestidade, incapazes de um leve furto, uma propina, uma mínima trambicagem, resistiram bravamente a essa onda de pilhagem e picaretagem, mas aos poucos, um a um, iam soçobrando no lodaçal de sacanagem, até que o último bravo, depois de centenas de vezes roubado e humilhado, faminto e sem perspectiva roubou uma maçã do amor de uma criança que a lambia.

O amor, sim o amor estava no ar. Esse período revolucionário era tão intensamente cheio de alegria e esperança, de norte a sul, leste a oeste, os desonestos cantavam e dançavam, pilhavam e saqueavam, destruindo tudo em seu caminho como uma ensandecida nuvem de gafanhotos humanos. Não era só a comida das quitandas, mercearias e supermercados, mas roupas de grife, joias e iPhones, 19, 20 e 21 Pro! Roubava-se gasolina nos postos e, quando não se tinha carro ou moto, roubava-se um veículo. Todos absolutamente felizes e empanturrados até a goela. O próprio Paraíso na Terra…

Mas em pouco tempo os estoques acabaram. O produtor não precisava produzir, mesmo porque se produzisse era roubado. O comerciante não precisava comprar e vender, só precisava ser roubado. Não havia mais energia elétrica, água e esgoto, serviços essenciais e hospitalares. Ninguém mais aprendia pois não havia escolas. Não havia salário! O país rumava a passos firmes para o colapso e, estranhamente, os países vizinhos antes alinhados com os rumos políticos e ideológicos, fecharam suas fronteiras por terra, por mar e por ar. Passaram a perceber o perigo que imigrantes roubileiros, habituados a esses conceitos extravagantemente libertários, representavam para suas populações e, principalmente, à ordem e passividade do povo, que os mantinha encastelados no poder. Por conta disso, um aliado histórico como Cuba reatou com os Estados Unidos, com quem estava rompido desde 1959, em busca de proteção!

Cada vez mais isolado e sem produção alguma, o Roubil em pouco tempo estava entregue às hordas de famintos liderados por facções armadas até os dentes. Os gestores da nova ordem foram sumariamente fuzilados e substituídos por novos líderes que eram imediatamente substituídos por novos líderes mais bem armados, numa sucessão de carnificina que fazia vergonha aos animais mais sanguinários da Terra. O país ficou retalhado em milhares de pequenos feudos em guerra permanente uns contra os outros. Não havia inocência, só dor, terror e morte. O sonho de uma humanidade livre da condenação pelo roubo, inspirada pela grandiosa verdade reveladora de que “roubar um celular para tomar uma cervejinha…” não era crime, precisava, para sobreviver, de sua expansão a todos os continentes, a cada país, cidade e vilarejo da Terra.

Os países vizinhos, apoiados pelas potências mundiais, invadiam avidamente o país, cientes das riquezas naturais disponíveis. Os roubileiros eram presa fácil, desorganizados, destruídos moralmente e abatidos. Argentina, Uruguai e Paraguai meteram-se numa guerra sangrenta, disputando o Sul. Mais uma vez o Paraguai não conseguiu levar suas fronteiras até o Atlântico. Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela partilharam o butim amazônico, enquanto a França tomava todo Norte e Nordeste através da Guiana Francesa. China e Estados Unidos dividiram entre si todo o resto.

Foi tudo muito, muito rápido. Em poucos meses o Roubil foi de um país do futuro ao ostracismo histórico. Porque as Constituições podem ser refeitas e reelaboradas, mal usadas e rasgadas, mas existem Leis naturais que definem a sobrevivência humana na Terra e no Universo, e estas não podem ser subvertidas. O homem não está separado da Natureza senão pelas suas ideias e pensamentos. É parte dela. É ela. 

CaMaSa

Escrita nas Estrelas

Sofrêncio

Ela veio de de Poá, desembarcando em São Paulo em plenos anos 70. Nasceu em um 3 de setembro clamando pela primavera próxima, com os chimarrões mais mornos estalando no céu da boca. Virginiana, atenta aos detalhes e à perfeição. Frequentou o Colégio Estadual Júlio de Castilhos na Avenida Piratini, bairro de Santana, na grande Porto Alegre, ali desfilou sua loirice e belezura de guria curiosa. Formou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma instituição pública a serviço da sociedade e comprometida com o futuro e com a consciência crítica, que respeita as diferenças, prioriza a experimentação e, principalmente, reafirma seu compromisso com a educação e a produção do conhecimento, inspirada nos ideais de liberdade e solidariedade, onde ela aprofundou sua visão humanista e igualitária do homem em sociedade. 

Terminado o curso, a cidade ficou pequena em sotaque e possibilidades. O espírito de aventura, próprio da juventude, falou mais alto e apontou mais para o norte ensolarado, mais precisamente Salvador, Bahia, e suas praias quentes e luminosas. Conheceu paixões alucinantes, dessas que viram a noite em conversas profundas e enamoradas, sob a luz da Lua, brilhante e amarelada. Num desses encontros ficou sabendo de uma novidade incrível, um Guru menino indiano, recém chegado ao Ocidente, capaz de revelar o verdadeiro sentido da vida e a verdadeira felicidade na Terra. Rejeitava essas ideias, claro, todas ficavam por ali, sem voltar para o sul, frio e gelado, vivendo somente em suas lembranças. Mas as diversas amizades formadas criavam um fluxo constante de visitas e hospedagens, do sul para o norte, do norte para o sul, numa miscigenação constante de ideias novas e revolucionárias, no sentido amplo. Era toda uma geração hippie querendo mudar o mundo além da própria perspectiva e compreensão, ciente que havia algo muito maior que a materialidade, mas que a barriga roncava de fome e o coração tinha sede de paixão.

Entre as muitas idas e vindas, entre o frio dos pampas e o Sol do Nordeste, rumou para o centro econômico do país, a capital do Estado de São Paulo. Não só as ofertas de trabalho seriam mais disponíveis, mas os relacionamentos, as experiências e, mais precisamente, o conhecimento seria mais amplo. Desembarcou do ônibus na antiga rodoviária Júlio Prestes, na Luz, assustada com o movimento e encantada com os painéis coloridos de acrílico, espalhafatosos e de gosto duvidoso. Tinha o endereço de uma amiga de Poá, instalada há alguns meses num apartamento compartilhado com mais duas colegas na Consolação. No papel tinha anotado as orientações para o transporte até o local, de ônibus, e dirigiu-se hesitante ao balcão de informações. Recebeu uma ajuda um pouco áspera para o seu gosto, mas que se mostrou ser bem eficiente. O ônibus indicado colocou-a na porta do número registrado no seu papel. No trajeto ficou impressionada com o gigantismo bruto da cidade e sua paleta de tons em cinza, do branco levemente sujo ao preto asfáltico das ruas. Pouco verde, raras cores e flores!

Instalada, viu-se imediatamente na obrigação de encontrar trabalho e pôs-se a bater pernas com o currículo nas mãos. Por indicação, encontrou uma porta aberta na Secretaria da Saúde que recém contratava estagiários para trabalhar no setor de estatísticas. Firmou-se rapidamente, extremamente focada em suas tarefas, sendo efetivada em pouco tempo. Passou a ter uma estabilidade econômica muito bem-vinda que lhe permitiu certos prazeres solitários, como frequentar as boas e variadas livrarias da época, fartas de material esotérico, em alta na época. Tarot, I-Ching, Cabala… Astrologia, com a qual criou um vínculo muito forte, fazendo dela seu hobby e, futuramente, sua segunda fonte de renda. Sua interpretação dos astros não era técno-científica, mas baseada numa intuição aguçada, quase nada mental, absolutamente coração. Passou a ser muito requisitada e indicada em todos os círculos descolados paulistanos e, numa dessas indicações reencontrou alguns amigos da turma de viajantes de alguns anos atrás. Perguntou sobre o tal Guru menino e a convidaram para uma reunião na Rua Coronel Oscar Porto, no Paraíso, onde haveria pessoas falando de suas experiências com o Conhecimento que ele revelava.

Desta vez foi tocada e logo recebeu seus ensinamentos. Já não era mais menino, mas um homem feito, casado e plenamente adaptado ao mundo ocidental, morando nos Estados Unidos com sua mulher e filhos. Não exigia nada, apenas compartilhava sua visão da Vida, tirando dos exemplos mais simples e cotidianos lições de inestimável valor. Ela passou a frequentar as reuniões e, sempre que podia, viajava para os locais onde Ele fazia eventos públicos. Dessa forma conheceu toda a América do Sul e do Norte, em eventos intimistas em teatros e centros de convenções, a Europa e o Leste Europeu, o sul da África, a Austrália e a Índia, onde participou de eventos com mais de 300.000 pessoas e os 2.000 ocidentais não passavam de uma pequena mancha, à esquerda do palco, em meio à multidão gigantesca. Em todas as viagens e eventos a mesma mensagem de Paz e autorrealização, afinando cada vez mais sua percepção das necessidades interiores humanas.

Essas experiências foram fundamentais na sua capacidade de interpretar as estrelas e a levaram a um feito extraordinário. Precisamente um ano antes do surgimento dos primeiros casos do Coronavírus, traçou um mapa astrológico identificando com precisão o local e a hora marcada do seu aparecimento e as terríveis consequências a que seríamos todos submetidos no planeta. Desacreditada e até acusada de charlatanismo pelos seus pares, manteve-se fiel à sua leitura até que finalmente o flagelo explodiu. À medida que a pandemia avançava e fazia seus estragos, sua popularidade aumentava e a colocava nos centros de discussão sobre a nova doença e o futuro da humanidade. Os líderes mundiais mostraram-se ineptos para enfrentar o problema, adotando medidas que aumentavam ainda mais os efeitos nocivos, dizimando, dia a dia, grande parte da população mundial. Todos queriam saber como ela havia previsto o problema e era convidada para dar entrevistas para jornais e revistas, programas de rádio e televisão.

Certa vez, durante um programa muito prestigioso e sério da maior rede do país, foi abordada por dois agentes do governo, devidamente identificados. Eles informaram que ela estava sendo convocada pelo Presidente para uma reunião extraordinária no Palácio do Governo, em Brasília. Ela tentou se desvencilhar de proposta tão absurda, mesmo porque sua simpatia pelo atual governante ultrapassava a antipatia, mas os policiais deixaram bem claro que não havia como recusar o convite. Viu-se conduzida por um carro oficial até o aeroporto de Congonhas e lá embarcar num pequeno jato em direção à capital do país. Contrariada, chegou ao Palácio do Planalto e foi devidamente “desinfetada” e mascarada da cabeça aos pés. Ao contrário do que a propagando oficial divulgava, a aproximação ao mandatário era cercada de segurança absoluta. Ela estava apreensiva e com cara de poucos amigos. Tinha preparado um discurso cheio de impropérios e xingamentos, afirmando sua posição em defesa das minorias, seu anti-racismo e anti-fascismo, mas estranhamente viu-se compreensiva diante daquele ser humano apavorado e desesperado suplicando algum tipo de ajuda.

Ela começou explicando que ele estava mais sensível ao Conhecimento. Era Mercúrio em ação. O planeta da razão e do intelecto, que também rege a ciência, fazia uma conjunção com Quíron, o asteroide ligado à cura, além de um sextil com Vênus. Isso indica, por um lado, medidas de contenção que todos nós já estamos vivendo, mas por outro, o esforço global pela busca de tratamentos e vacinas. E os agentes dessa conjuntura astral são os cientistas, merecedores de todo o nosso respeito, que estavam desenvolvendo mais de cem projetos contra a Covide-19. Que o encontro de Mercúrio e Quíron em conjunção nos deixa mais investigativos e ligados ao conhecimento intuitivo. Este trânsito estimula a abertura da mente, a ampliação de horizontes. Ficamos mais inclinados a novas maneiras de encarar os problemas ou a vida como um todo. Não deixe essa chance passar, já que a consciência repentina leva ao desenvolvimento pessoal. E prosseguiu por algumas horas até que os astros ficaram mudos e o Presidente pegou no sono e dormiu profundamente com a boca escancarada. Ela levantou-se, sacudiu os cabelos e deles se desprendeu uma semente de Dente de Leão flutuando pela sala e pousando na garganta do ilustre mandatário da nação. Saiu da sala e encontrou os dois agentes que a conduziram pelo trajeto de volta até sua residência, em São Paulo.

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Alguns minutos antes dela descer do carro oficial para subir ao 3º andar do Palácio do Planalto, um casal de namorados apaixonados passava pelos jardins ao lado do Espaço Cultural Niemeyer. Ele pegou sorridente um Dente de Leão e soprou suas sementes ao vento quente, contagiando cada uma delas com o hálito do COVID-19. Uma delas voou graciosamente até o outro lado da Via N1, pousando graciosamente nos cabelos sedosos da nossa astróloga gaúcha enquanto ela subia a rampa. Foi o suficiente para contaminar o Chefe de Estado do Brasil.

CaMaSa

Anjos

Sofrêncio

Todo mundo tem um anjo. Até os que não acreditam! O problema é que ninguém os vê. Quer dizer, ninguém não, seria muita pretensão afirmar que só eu vejo. Alguns poucos sabem sim da existência deles e mais ou menos como a coisa funciona. Eu mesmo descobri meio que por acaso, juntando algumas peças de entendimento aqui e acolá. O fato é que cada um tem o seu e cada um deles cumpre mais ou menos a função de anjo a que foi destinado. E eu vou explicar bem didaticamente todo processo de formação desses seres especialíssimos, desmistificando alguns conceitos milenares arraigados na cultura popular.

Pra começo de conversa anjo tem sexo sim. Tem anjo mulher, homem, lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e transgênero. Apesar desse esclarecimento, vou me referir sempre a esses seres iluminados como anjo, porque anja é realmente uma coisa meio esquisita que bate estranho no ouvido. Existem também anjos de todas as etnias possíveis e imagináveis, baseadas em detalhes específicos de cada anjo, como alguma das bilhões de trilhões de variações na forma física ou cor de pele, sendo que jamais, em tempo algum, existiu um anjo absolutamente igual ao outro. Essa é uma regra absolutamente divina, inquebrantável como qualquer outra Lei da Física, como a Lei da Gravidade ou “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço”. Pensando bem, esta última, como qualquer outra, tem sua exceção, já que por um breve período eu e minha mãe ocupamos o mesmo lugar no espaço!

Durante a gravidez, enquanto eu não respirava e era alimentado pelo cordão umbilical, usei o anjo da minha mãe, que aliás era muito forte e poderosa, sinceramente quase um Arcanjo de tanta vontade e determinação para enfrentar os obstáculos que vinham em sua direção. Esteve presente noite e dia durante os nove meses sem descansar um segundo sequer. Tinha sempre as melhores sugestões e conselhos para minha mãe, que sempre aceitava sem pestanejar, colhendo os melhores resultados menos para si própria e mais para mim. Não que eu entendesse o que falavam, mas conversavam muito entre si, a maior parte do tempo em forma de canções e orações. Até que de repente a água da minha banheira saiu pelo ralo e eu me vi consideravelmente desconfortável e incomodado lá dentro. Um instinto de sobrevivência me fez buscar uma saída e a única viável me pareceu ser bem estreita e justa! Para complicar o tal do cordão enrolou-se no meu pescoço, criando uma sensação inédita de que faltava alguma coisa bem importante para o jogo da vida continuar pra mim…

Seja pela pressão física que me fez sentir como três quilos de contra-filé passando pelo moedor de carne, ou o desgaste emocional pela expulsão da minha toca acolhedora, me percebi atordoado, exausto e sem forças neste mundo, cercado de mãos e olhos apreensivos, que aguardavam ansiosamente algum tipo de reação da minha parte. Passados alguns segundos, um sujeito grande e mal encarado me ergueu pelos pés, de ponta cabeça, dando um ardente tapa na minha bunda! O choque, a dor e a surpresa me fizeram explodir num grito de choro e revolta, fazendo passar por mim, através do nariz e da boca, um fluxo absurdamente congelante de ar em direção aos meus pulmões. Encantando e intoxicado pelo prazer da nova substância, tentei segurar dentro de mim o mais que pude mas explodiu num fluxo quente e contrário, para fora, deixando um enorme vazio em mim. 

Foi nesse momento, petrificado e sem saber o que fazer a seguir, que vi meu anjo pela primeira vez! Ele estava lá, parado, mais aturdido que eu. Não era aquela luminosidade branca brilhante das pinturas clássicas, nem tinha aquele par de asas que a gente sabe que todo anjo tem, mas algo me dizia que era um… e era o meu! Estava pelado e ensopado de uma gosma qualquer, tinha meu tamanho e a aparência de um bebê recém-nascido, com aquela típica carinha de joelho para não diferenciar alface de acelga. Então aconteceu! Ele falou comigo. Telepaticamente, como fazem os anjos, mas falou. Disse: – Ô burro! Inspira. E eu sorvi o ar novamente… e soltei… e inspirei novamente… sucessivamente. Foi bom. Muito bom!

Não nos separamos mais. Quero dizer, ele sempre esteve aí para mim nos momentos mais marcantes. Teve aquela vez que ele me disse pra não roubar aquela moeda da minha mãe pra tomar sorvete, mas eu roubei e tomei uma baita de uma surra! Ele rolava de rir enquanto eu rolava de dor de um lado pro outro. Teve também aquela outra vez, na aula de Educação Física do colégio Firmino de Proença, na Mooca, quando o professor Normando, um ex-militar aposentado, rígido e disciplinador, pediu aos alunos para correr até um colchão colocado no meio da quadra, girar sobre o corpo dando uma cambalhota e sair rapidamente pelo outro lado; na minha vez, imaginei fingir um tropeção ao chegar próximo do alvo e simular uma queda de cara no colchão. Meu anjo pediu aflito: Não faça isso, por favor! A classe explodiu em gritos e gargalhadas e o professor apoplético e vermelho como um pimentão me deu uma suspensão!

Mas teve momentos bem dramáticos em que a influência dele foi decisiva para minha salvação e sobrevivência. Quando o clube do Juventus foi construído no Alto da Mooca, no início dos anos 1960, seu entorno era de muito mato e área verde. Imobiliárias se instalaram na região para negociar terrenos para construção de casas onde ainda não haviam ruas e qualquer tipo de saneamento. Meus pais conseguiram comprar um pequeno lote na face oeste do clube, que na época era cercado por uma cerca de arame, com 2 metros de altura. Nessa cerca sempre faziam cortes que funcionavam como passagem para quem não era associado ao clube ou para quem não queria dar toda a volta para entrar pela portaria principal no lado leste. Esse era o meu caso. Eu tinha uns 12 anos na época e naquela manhã, tomei um café com leite e comi um pão com manteiga e fui para as piscinas do clube passando pelo buraco escondido pelo mato alto. Atravessei o campo oficial de futebol, contornei as piscinas pela arquibancada e fui para o vestiário. Me troquei rapidamente e entrei no parque aquático pela roleta, lavando os pés no tanque de água com cândida.

O dia era bem nublado, ameaçando uma chuva fraca e intermitente a qualquer momento. A semana toda havia feito um calor infernal e eu havia sonhado muito com a água fresca e azul durante as intermináveis aulas de geografia e matemática. Dei o primeiro salto de cabeça na água escurecida pelo céu cinzento e frio, nadei até a escada e corri para o segundo salto. Repeti o processo e pulei mais uma vez, agora sem entusiasmo. Subi a escada de tubos de metal polido e já me preparava para saltar novamente quando meu amigo anjo postou-se diante de mim dizendo: – Não pule! Hesitei. Olhei para meus pés, que pareciam estar roxos e enrugados, como se estivessem esvaídos de sangue e vida. Dobrei os joelhos e me deitei na borda da piscina olímpica, olhando para a água, o prédio de pastilhas brancas da administração do outro lado e os apartamentos fora do clube, mais atrás. Tudo à minha volta pareceu rodar como num carrossel, com os prédios altos girando a uma velocidade cada vez maior. Levantei zonzo e trôpego sai do conjunto, descendo as escadas em direção ao posto médico. Não tive tempo. Vomitei o café da manhã envergonhado. Não havia ninguém por perto, só meu anjo apoiando minha cabeça.

Me senti melhor e voltei para casa refletindo sobre o que havia ocorrido e o que teria acontecido se ele não tivesse me aconselhado a não saltar novamente. Certamente eu teria passado mal dentro da piscina, engoliria muita água e poderia ter passado muito tempo até que alguém percebesse que eu estava me afogando. Apesar de intenso, confesso que a lição não foi suficiente para que eu aprendesse e entrasse em muitas situações perigosas ao longo de toda juventude principalmente. Mas tive sorte, muita sorte. Ele sempre esteve ao meu lado, alertando, prevenindo, dando os conselhos certos. Nossa relação evoluiu,  amadureceu e hoje conversamos sempre, a qualquer momento, sempre que queremos.

Claro que a esta altura você deve estar questionando minha sanidade, dizendo que essa coisa de anjo não existe e coisa e tal, que só estou inventando. Mas eu vou te revelar o maior segredo da humanidade. Uma técnica para revelar seu próprio anjo! Siga corretamente minhas orientações. É infalível! Pegue uma superfície polida, não rugosa, pode ser o vidro de uma janela, um espelho, tem gente que consegue ver até na superfície de um lago, mas tem que estar bem tranquilo. Se você está lendo num computador ou celular, tente enxergar no vidro do monitor ou da tela… Isso, olhe bem… Você vai começar a perceber dois olhos olhando curiosamente para você, num rosto muito parecido com o seu… Esse é seu anjo!

CaMaSa