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Sofrêncio

Sofrêncio

Ele nasceu José Alguma Coisa e, como toda criança que nasce, cheio de potencial para viver a plenitude da vida. No entanto, por uma série de circunstâncias ou escolha, tomou o caminho da dor e do sofrimento. Seus pais eram normais, nem ricos nem pobres, e tinham a mesma dose de atenção e carinho para cada um dos quatro filhos. Amadeu, Regina, José e Ernesto formavam a ninhada dos Alguma Coisa, vivendo a vida comum dos irmãos que têm uns aos outros para se apoiar e incomodar. Naquela casa os bens eram suficientes, as roupas eram suficientes, a comida era suficiente. Nada faltava, nada sobrava. Algum excesso acontecia nos dias santos, Páscoa e Natal, com um frango mais encorpado metido a besta ou um pudim de claras branquinho com calda de açúcar queimado.

Sofrêncio foi José e o caçula até o dia que chegou o Ernesto. Isso durou pouco tempo, 7 meses e meio, porque além de tudo o guri quis chegar ao mundo adiantado e fraquinho, pouco mais de 1 quilo e meio de gente! A partir daí José foi jogado pra escanteio. Não era primogênito como Amadeu, nem a princesinha como Regina, nem o caçulinha como Ernestinho, o Tinho. Virou um Coisa meio sem rumo e definição, esquecido num canto qualquer da casa, como um pano de chão semi novo, mas ainda assim pano de chão.

Até que um dia aconteceu um fato interessante que deu sentido e direção para sua vida, além de cravar seu verdadeiro nome, não o de batismo, mas aquele para o qual fomos criados. Existe uma identificação natural que muitos passam a vida sem descobrir, mas evidentemente Marias não poderiam deixar de ser Marias e Paulos só poderiam ser Paulos mesmo, ainda que se chamem Jennifers ou Washingtons. O nome Sofrêncio veio ao mundo quando, numa data especialmente especial, seus pais levaram os filhos para tomar sorvete numa padaria próxima de onde moravam. Paramentados todos com roupa de missa de domingo, acomodaram-se os seis em quatro cadeiras de madeira numa mesa redonda com pés de tubo de ferro e tampo de fórmica verde água com minúsculos pontinhos dourados brilhantes. O pai dirigiu-se ao balcão e voltou de lá com quatro sorvetes de morango e chocolate apoiados em casquinhas crocantes. Sabe-se lá porque a alma da gente gosta tanto de sorvete de casquinha, mas o fato é que os olhos daquelas crianças brilhavam mais que lua cheia de tanta vontade e prazer. Foi então que aconteceu…

O ainda Zezinho encarou aquela iguaria nunca vista antes como um leão faminto se aproxima de sua presa. Foco e concentração absolutos no objetivo principal de devorar aquela massa gelada, doce de prazer, o mais rapidamente possível. Ele sabia que se fosse lento e seus irmãos terminassem primeiro os sorvetes, teria que dividir o que sobrava com os demais, como era o costume em casa. Escancarou a boca, esticou toda língua pra fora como um raio de músculos e lambeu as bolas coloridas com toda vontade que tinha… A massa ergueu-se um pouquinho, pendeu para o outro lado e lançou-se para o chão sujo da padaria, numa trajetória reta e objetiva, em câmera lenta, manchando de rosa e marrom claro aquela imundície acumulada a décadas.

Eu gostaria de ter a capacidade de descrever, sério. De verdade, colocar em palavras aquele sentimento tão intenso e profundo de dor e frustração. A surpresa desconcertante, a raiva dos irmãos rindo e gritando com seus sorvetes intactos nas mãos, o olhar duro do pai dizendo com a boca cerrada, se pedir outro apanha. A sugestão vergonhosa da mãe, sugerindo que pegasse uma pazinha de madeira e comesse a parte de cima, ainda tá limpinha, dizia ela! Mas não dá, realmente não dá! Deixo para cada leitor buscar em si mesmo a própria experiência para comparar. Talvez encontre razões muito mais fortes, mas nada que se compare à reação do garoto. Ele sofreu, sofreu muito e intensamente, num nível de dor incomum a qualquer um, mas, estranhamente, gostou do que sentiu. De uma forma ou de outra, ele, que sempre fora ignorado, tornara-se o centro das atenções. Gostou de sofrer!

Daquele dia em diante, passou a perseguir todas as formas de sofrimento, físico e emocional, encontrando nisso prazer e satisfação. Privava-se de coisas simples e banais, de companhia e afeto, amizades e diversões. Isolava-se completamente e quando era obrigado a interagir, na escola ou em alguma atividade, adotava uma postura belicosa e hostil. Brigava constantemente com os colegas de escola, não para bater, para apanhar. Voltava pra casa invariavelmente rasgado e machucado. Em casa apanhava mais. Adorava!

Na adolescência descobriu a paixão e as dores da paixão. Não era correspondido, era rejeitado e quanto mais era desprezado mais se apaixonava. Algumas moças, mais maternais, afeiçoavam-se dele, tentando acolher aquela alma amargurada, fora do mundo como um passarinho caído do ninho. Desprezava-as, perdia-as para em seguida sofrer a dor do arrependimento. Sua vida tornou-se uma série de decisões erradas que progrediam e multiplicavam-se em dores e sofrimentos e confusões cada vez mais complexas. A certa altura, completamente desiludido e perdido, tentou dar fim à própria vida atirando-se do alto do Viaduto do Chá! Estatelou-se num caminhão de alface que passava em direção ao Mercado Municipal. Salvou-se!

Um amigo de seu irmão, vendo situação tão desesperadora e lamentável, convidou-o para assistir uma palestra de um sábio. Disse-lhe que se ele desse uma chance ao homem e ouvisse com o coração, ele seria capaz de se livrar de todo sofrimento. Chegaram a um salão na Rua Oscar Porto, perto da Avenida Paulista. A sala de uns 200 metros quadrados estava apinhada de gente, de todas as idades, de todas origens. O tal sábio não estava ali presente, mas era apresentado através de um vídeo filmado durante uma palestra dada a uma grande audiência num auditório elegante. Falou durante quase uma hora sobre as coisas mais simples, belas e importantes. Sobre consciência, verdade e felicidade. Que o homem era como aquele cervo que procura um perfume enebriante em todos os lugares do mundo, mas o perfume vem do próprio umbigo. Falou das coisas mais maravilhosas e que esta vida era a chance, talvez única, de realizá-las.

Quando saíram para a calçada o amigo, com o coração cheio da paz daquela sabedoria, perguntou-lhe: 

– E então, o que achou?

– Para mim não fez sentido algum, respondeu Sofrêncio sofridamente.

Seguiu seu caminho religioso da forma mais tortuosa possível. Para ele os grandes Mestres do passado eram exemplos de sofrimento que não haviam deixado marcas de frivolidades de paz, amor e autocontentamento em suas passagens pela Terra. Krishna e Arjuna em sua guerra contra os irmãos, Buda trocando o luxo e opulência pela miséria absoluta, Maomé e a humilhação e fuga de Meca em sua Hégira, e Jesus Cristo, símbolo máximo do martírio em seu calvário de dor e sangue. Sonhava ele mesmo em ser pregado numa cruz e encontrar sua redenção definitiva. Mas cansou-se de tanta teoria e virou ateu!

Enveredou por todo tipo de questionamentos, lutas e discussões sócio-políticas. Era a favor dos fracos, não porque simpatizava com eles, mas porque via nas causas motivos para sofrer mais e mais. Chegou aos 30 e poucos anos e deu de cara com o Covid-19. Já havia passado por caxumba, varíola, catapora, meningite e gripe H1N1. Viu nas recomendações de prevenção da doença mais um motivo de contestação e uma porta para mais sofrimento. Saiu para as ruas sem máscara, sem proteção, de peito aberto para mais essa gripezinha. Tossiu, teve calafrios, ardeu em febre e foi parar numa maca qualquer do SUS. Os atendentes, enfermeiros e médicos fizeram o possível com os parcos recursos. Conseguiram entubá-lo num respirador meia bomba. Sofreu a dor na garganta, a alimentação intravenosa, a flexão dos pulmões através da máquina… Sobreviveu por 2 meses em meio às próprias fezes e urina, num estado comatoso e sem esperança de retorno. Lutou, desta vez para perder, definitivamente. No seu último momento, lembrou-se das palavras do sábio do vídeo da Rua Oscar Porto e entendeu onde estava a felicidade. Mas levou para si o segredo.

CaMaSa

Mamma

Mamma

Mamãe, mamãe, mamãe…
o avental todo sujo de ovo…

Eu não lembro bem a música, tenho a impressão que era de um tipo meio brega, bem sentimental, feita para exaltar qualidades daquelas que são unanimidade no coração de todos, as Mães. Devia ser uma sexta-feira, o fim de semana era Dia das Mães, eu tinha sete ou oito anos, acho que estava no segundo ano do antigo primário e, seja pelos acordes emotivos ou pela saudade de casa, fui surpreendido por uma torrente de lágrimas e soluços tão intensos que foi necessário interromper a música e ser atendido carinhosamente pela professora. Minha emoção era muito maior que a vergonha de chorar diante dos colegas de classe que, entre assustados e surpresos, divertiam-se com a cena. 

Um deles, chamava-se Raul, um desses amigos que fazemos nos primeiros anos de colégio, simpatizamos mas somos separados pelas futuras divisões das classes e turnos escolares, acompanhando a trajetória um do outro até onde é possível. Acabam nos marcando de alguma forma e ele, neste caso, tornou-se inesquecível para mim com o seguinte comentário: – Mas você deve ter aprontado muito para estar arrependido assim!

Olhei para ele ainda com a visão turva, sem entender o significado de suas palavras. Eu nunca havia feito nada tão errado assim, nem poderia naquela altura da vida. Eu simplesmente a amava completamente, como todo filho ama sua mãe. E a amei por toda vida, como amo até hoje. Tivemos nossos altos e baixos, ambos taurinos, cheios de razão. Tive minha adolescência com suas dúvidas e inseguranças, uma pós-adolescência conturbada, típica da época, ávido por expandir os limites do que era formalmente estabelecido. Trabalhamos juntos, fomos sócios por grande parte de minha vida profissional e, muitas vezes, perdemos a paciência um com o outro. Mas esse vínculo inquebrantável que une duas pessoas que se amam sempre esteve aí. Por que?

Não sou melhor do que ninguém, não posso afirmar que amei mais ou menos. Cada um sabe o que sua mãe representa em sua vida, não é possível comparar. Ela é a porta de entrada para este mundo e isso já deveria ser suficiente para explicar tudo. Meu pai veio alguns anos antes para o Brasil, com o ofício de marceneiro e a cabeça inundada de sonhos. Minha mãe chegou depois, com duas filhas pequenas e os pés plantados na realidade. Dessa separação momentânea, cheia de queixas, mágoas e muita nostalgia, porque minha mãe ainda não conhecia a palavra saudade, eu vim ao mundo.

Era uma noite fria de julho, não tão fria quanto as noites rigorosas do inverno europeu, mas suficientemente fria para a necessidade da junção de corpos aquecidos pela paixão, ainda que reprimida. Biologicamente meu pai amou minha mãe, inundou-a com seu desejo e ela, receptiva, no momento certo do seu ciclo, me aguardava em seu único óvulo. Eu nasceria 9 meses depois. Há muitas teorias sobre o início da vida, católicos entendem que é a partir do momento da fecundação, os islâmicos entendem que é após algum tempo. Os judeus acreditam que não ocorrendo o nascimento o espírito do feto volta para Deus. Os espíritas entendem que o espírito vem ao corpo a mando de Deus e tem uma missão para com os futuros pais. Ciência e religião divergem sobre o momento em podemos ser considerados um ser humano, mas eu sou vida a bilhões e bilhões de anos, muito antes da existência do espaço, do tempo e de tudo. Sabia que essa era minha chance e tinha que aproveitá-la.

Consciência plena, pus-me a correr em direção a essa promessa de vida e segurança, deixando para trás companheiros da viagem intrauterina. Com muito esforço cheguei a essa massa enorme de alimento e guarida. Ao contrário do que alguns pensam, chegamos vários de nós mas somente eu fui aceito e acolhido. Em pouco tempo nos fundimos, nos dividimos e nos multiplicamos freneticamente, construindo um terceiro indivíduo a partir de nós mesmos. Ligado à minha mãe por um cordão, dela recebi tudo o que necessitava para evoluir, desenvolver minha humanidade física e crescer. Meu mundo ia ficando cada vez mais apertado à medida que o tempo passava e chegou um momento em que as leis da física foram imperativas e era necessário que dois corpos não ocupassem o mesmo lugar no espaço.

Fui expulso, expelido, daquele lugar quente e acolhedor, repleto de paz e amor. É necessário um esforço gigantesco, de ambas as partes, mãe e filho, para um bebê aterrissar neste mundo. O maior e mais potente foguete já construído é uma simples biribinha perto do nascimento. Há muito querer envolvido, muita força e paixão, absoluta confiança e total agradecimento. Em meio à dor, sangue, suor e lágrimas de alegria, o cordão que nos alimentava e sustentava é cortado, dando início à minha grande aventura. O primeiro gole de ar sorvido, é um enorme salto no escuro, tomado de incerteza e pavor, sem garantia alguma de que encontraremos terra firme e apoio. Por temor ou obrigação, esperança ou falta de opção, inspiramos desesperadamente o ar bendito, inflamos os alvéolos pulmonares cheios de vida e expiramos uma prece de agradecimento por tanto cuidado e bondade.

E assim seguimos, inspirar e expirar, confiar e agradecer, por toda a vida nesta Terra, por toda a existência, trazendo em nossos corações esse laço, essa lembrança da união, de uma vida compartilhada por alguns meses, de um período milagroso onde essa energia criadora se manifesta em toda sua compaixão. Se você está lendo isto é porque teve uma mãe, um ser de luz que possibilitou a sua experiência deste mundo. Ame sua presença, ame sua lembrança, simplesmente ame.

CaMaSa

Pascoal

Naquele fim de tarde de sexta-feira da paixão, quando minha mãe foi me buscar no colégio Dom Bosco, me encontrou de mãos dadas com aquele padre jovem e simpático. Eu estava com os olhos inchados de chorar e o padre explicou para ela o que havia se passado durante a exibição do vídeo da Paixão. Trocaram sorrisos cúmplices e despedidas, e voltamos calados para casa. Quando chegamos à comodidade e segurança do nosso lar simples e modesto, minha mãe me abraçou ternamente e perguntou porque eu havia chorado? Tentei explicar mas a emoção tomou novamente meu peito de assalto e as palavras começaram a rolar umas sobre as outras, engasgadas e confusas.

A Mãe, afagando carinhosamente meus cabelos, começou a me explicar o significado de todo aquele tormento, mas que eu não me preocupasse porque no domingo, de Páscoa, esse homem tão bom ressuscitaria, trazendo esperança para todos os homens! Que se eu acreditasse nisso de coração, no domingo pela manhã eu teria a prova, ganhando um grande e saboroso presente! 

Ouvi aquilo com ouvidos destampados e olhos arregalados… Como poderia alguém renascer dos mortos? Ela mesma, e todos que me cercavam, viviam gritando para mim: – Cuidado menino, sai de perto do balcão! Olha o carro! Cuidado pra atravessar a rua! Quer morrer? Se morrer, nunca mais vai jogar bola, chupar bala e sorvete! A verdade é que fiquei muito contente pelo Homem Bom, mas confuso como passarinho que caiu do ninho! Além disso, o tio do Alvinho, meu amiguinho da rua, tinha morrido de tanto tossir e nunca mais ninguém viu ele por estas bandas! Teve também o caso muito triste do cachorro da Dona Candinha, companheiro inseparável, cheio de truques de saltar, andar sobre duas patas, dar cambalhotas, tudo por causa de umas bolachinhas. Um dia, durante uma exibição rotineira diante de uma plateia de crianças sujas do pó da alegria da rua e olhos ansiosos para ver o mesmo truque sendo repetido pela enésima vez, o vira-lata preto e branco de rabo cortado fingiu-se de morto pela última vez.

Perguntei para a Irmã mais Nova que correu atrás de mim com a vassoura com a qual ela tinha acabado de varrer o piso da sala e eu estava sapateando com os sapatos sujos. Depois tentei a Irmã mais Velha que pacientemente me deu uma explicação longa e comprida, cheia de palavras difíceis que eu não entendia. Disse também para que eu não me preocupasse porque no dia seguinte, Sábado de Aleluia, a justiça seria feita pois seria “malhado o Judas”, o homem que havia traído o Homem Bom. Fui dormir com a esperança que nessa malhação eu pudesse encontrar algumas respostas e, principalmente, no domingo eu tivesse a prova do renascimento, ganhando o tal presente.

Acordei no sábado bem cedinho e corri pra rua engolindo rapidamente o leite com Toddy e o pão com manteiga Paulista. A rua estava tomada por um burburinho diferente, uma excitação em torno de um boneco engraçado, parecendo um espantalho. Haviam juntado roupas variadas, cada um trouxe uma peça, calça, camisa, paletó e chapéu, tinham arranjado até uma gravata de bolinhas vermelhas, dando ao boneco uma aparência muito distinta! Costuraram firmemente as barras das calças e os punhos da camisa, e enchiam o interior com palha e jornal picado até que a figura ficasse completamente gordo e estufado. A cabeça era improvisada por uma velha bola de plástico, tão velha que a pintura dos hexágonos pretos imitando bola de capotão já haviam desaparecido. No seu lugar haviam pintado olhos, nariz e boca, uma franja rala, dando ao rosto improvisado uma aparência boba, de quem não estava entendendo o que se passava.

Penduraram o boneco no poste de concreto dos fios da Light, recém plantado na rua, e o cercaram com tacos de madeira e ferro, num alarido crescente de excitação. Quando o Sol já estava quase a pino, com a sombra do poste escondida sob ele mesmo, o Seo Pafúncio, dono da fábrica canetas tipo Bic, da Rua Luiz Gama, subiu numa escada de madeira e despejou querosene sobre o boneco Judas, que ficou completamente encharcado. Com a turba de adolescentes e crianças afastada em segurança pelos mais adultos, ele ateou fogo no infeliz, lançando sobre ele um fósforo aceso.

Todos urravam de prazer vendo aquelas roupas cheias de palha e papel arderem numa enorme bola de fogo. Depois de um tempo o fogo diminuiu de intensidade e os mais valentes se aproximaram e se puseram a espancar o boneco queimado, até que ele caiu no chão inerte. A pancadaria aumentou, com pancadas e chutes vindos de todos os lados. Um desses golpes atingiu a cabeça bola de futebol que saiu rolando pela rua, atravessando-a, em minha direção. Parou bem diante dos meus pés, toda chamuscada e deformada, num sorriso triste de quem pede perdão com toda sinceridade e coração. Perdoei, na esperança de que no dia seguinte aconteceria o tal milagre da Ressurreição, como havia me repetido duas centenas de vezes minha Irmã.

No domingo pela manhã acordei com os gritos e palmas da Irmã mais Nova, que pulava em volta da mesa da cozinha, em cujo centro havia um enorme ovo de Páscoa embrulhado num brilhante papel celofane vermelho, preso por fitas coloridas num laço. O Pai havia comprado ou ganhado numa rifa, não sei, mas o seu sorriso de satisfação ao ver nossa alegria, tornou-se inesquecível para mim. Não faço a menor ideia do tamanho ou peso real daquele tesouro. Para mim, à época, era o maior ovo de chocolate que eu jamais havia visto! Tenho a impressão que eu poderia entrar dentro dele para comer as centenas de bombons ali guardados. Lembro que somente o rígido controle da Mãe pode mantê-lo afastado de nossas bocas vorazes por muitos meses, mas que na verdade como eu não tinha a menor noção de tempo naqueles tempos, podem ter sido só alguns dias. Naquele domingo comi mais chocolate do que havia comido em toda minha vida até então, e fui dormir com a barriga cheia de cacau e açúcar, completamente esquecido do Homem Bom e sua ressurreição.

Naquela noite tive um sonho fantástico! Eu era um jovem de 16 anos, quase adulto para o padrão da época em que o sonho aconteceu. Eu vivia numa região desértica e arenosa, cercado de pessoas que falavam uma língua estranha, mas que eu compreendia completamente. Minha família e os que nos eram próximos discutiam de modo sigiloso, quase sussurrando, os últimos acontecimentos e a morte por crucificação daquele que era tão amado e querido. Eu e o primo Efraim tínhamos subornado os guardas romanos na porta do túmulo e levado o corpo dali. Seria preparado com todo respeito e carinho e enterrado longe, num lugar secreto onde somente aqueles que o amavam saberiam onde era. Já era domingo, todos ainda choravam sua ausência quando uma pequena criança, nos seus 6 ou 7 anos, pôs-se a falar e consolar a todos. Explicou que aquele que se fora estava vivo e eternizado em nossos corações, que celebrássemos pois o Mestre estará sempre, em sua forma humana, junto aos seus discípulos, para todo o sempre.

Algumas das pessoas presentes acusaram o menino de blasfemo e lhe viraram as costas, mas outras reconheceram em suas palavras e em seu olhar a mesma sabedoria e doçura daquele que os deixara. Seguiram seus passos e ensinamentos, agora discretamente sem chamar a atenção dos inimigos, interessados somente na Verdade guardada em segredo no peito. E assim tem sido de geração em geração, ao longo dos séculos, o encontro do Mestre e seus discípulos para aqueles que pedem com o coração de uma criança e, sinceramente, desejam ter seu Conhecimento.

CaMaSa

Mazé na Disney

Os olhos do neto Pedrinho brilhavam de alegria diante daquela pessoa vestida de Mickey, com as calças vermelhas e dois grandes botões brancos, camisa branca, gravata amarela e fraque preto. As enormes orelhas e um sorriso permanente no rosto faziam desse personagem, cheirando a limpeza, simplesmente inesquecível. E era exatamente isso que ela queria proporcionar ao neto, momentos gravados na memória para sempre, definindo na galeria de experiências que ele teria por toda vida um lugar ao Sol para a avó. Exatamente o oposto do que ela mesma havia passado na infância pobre e miserável, sujeita desde o nascimento, e até mesmo antes, aos caprichos e maldades de pessoas que muitas vezes estavam ao seu lado para protegê-la. Piscou os olhos e por um instante voltou para Itacarambi, hoje São João das Missões, ao norte de Minas Gerais, numa das regiões mais pobres do Estado.

Maria José Sem Pai Declarado da Silva veio ao mundo como toda mulher negra e pobre, em grande desvantagem na corrida pelo sucesso da vida. Era a décima de uma prole de doze, chegando na família quando não havia mais leite disponível nas tetas, nas garrafas de vidro ou sacos de plástico. Havia no desabastecido posto de saúde local, vez ou outra, uma lata de leite em pó, economicamente diluído em latas de água barrenta. Ainda bem que no mato tem muitas folhas, plantas, raízes e frutos que passam despercebidos aos olhos sem prática, mas que podem alimentar um rebanho para quem já passou pelos ensinamentos da fome. E nisso sua mãe era catedrática, sabendo pela cor e pelo cheiro o que alimentava e o que matava. Os diversos e sucessivos maridos abandonavam a mulher e as crianças antes, ou tão logo, elas nasciam, deixando para sua mãe o encargo da sua própria sobrevivência e dos filhos. Perdeu alguns, vingou outros, entre os quais Mazé, que cresceu forte e saudável, cada vez mais preparada para o trabalho pesado e os infortúnios da vida.

São João das Missões fica a uma distância de 687 km de Belo Horizonte (capital) e a 247 km de Montes Claros, cidade pólo do norte de Minas, sendo o acesso realizado através da BR-135. Posiciona-se a 18 km do rio São Francisco e é marcado pelo Rio Itacarambi que banha quase todo o território do Município. A divisão administrativa do município constitui-se do Distrito da Sede, do Distrito de Rancharia, 32 Aldeias e a Terra Indígena Xacriabá. O Município ocupa uma área territorial de 679,89 km². Situa-se na micro-região do Vale do Peruaçu (Alto Médio São Francisco), norte do Estado. É a cidade mineira mais pobre, com o PIB mais baixo de toda Minas Gerais.

O município está sujeito a um clima tropical úmido de savanas, com inverno seco, em transição, no sentido nordeste, para um clima quente e seco, com chuvas de verão. A relativamente pequena variação da temperatura ao longo do ano, nestes climas, faz da variável precipitação, o principal parâmetro hidroclimatológico do Município, sob o ponto de vista de exploração agrícola. A variação mensal das precipitações e a existência de um período bastante seco, nos meses de maio, junho, julho, agosto e setembro. O tipo de vegetação predominante em São João das Missões, expressa-se por cerrado com áreas mescladas de caatinga ao centro-oeste. Ainda estão perenes, mas em visível agonia, os seguintes cursos de água: Rio Itacarambi, Riacho do Brejo de Mata Fome e Olhos D’Água. 

A principal atividade econômica desenvolvida no Município, é agricultura e a agropecuária. A agricultura é representada no cultivo irrigado e de sequeiro. Faz parte da cultura irrigada, o plantio de feijão, milho, cana-de-açúcar e tomate. No sequeiro, a cultura do milho, feijão catador, mamona e mandioca. A pecuária é desenvolvida com o objetivo de produzir bezerros para a venda, sendo, também, praticada a pecuária leiteira, despertando, também, a criação de caprinos, ovinos e peixe. O feijão, mamona e o tomate, são responsáveis por 70% de toda produção. Soma-se a estas atividades, as pequenas fabriquetas de farinha, rapadura, cachaça, queijo, etc. Demais produtos abastecem o mercado interno e o restante é comercializado na região. 

Mazé começou a trabalhar por volta dos 4 anos de idade, catando mamona, crente que estava brincando com os demais irmãos. A pequena estatura permitia o acesso à parte baixa dos troncos, protegida pela densa folhagem dos galhos dos arbustos. As mãos pequenas arrancavam as bolotas verdes e espinhosas que eram colocadas em sacos de lixo de plástico e despejadas, posteriormente, em latas vazias de 20 litros, de óleo ou azeitonas. Os irmãos mais velhos e maiores a colocavam nos ombros para que ela alcançasse os galhos mais altos. Desse modo ela passava a maior parte do tempo acima das folhagens, sem a proteção das sombras, tostando ao sol implacável pele e miolos. Passou a infância entre essas e outras atividades produtivas, tão ou mais cansativas, e os serviços domésticos normais de varrer o chão de barro da casa de pau a pique, pegar água no poço, cozinhar o quase nada que se tinha e fazer render para todos, matar aranhas e escorpiões e, de vez em quando, destroncar o pescoço de uma galinha.

Quando todas as crianças ainda são crianças, por volta de 10 a 11 anos, ela já era uma mocinha, despertando, com seus olhos matreiros e rasgados e a pele brilhante como noite de luar, o desejo dos homens. Numa noite, voltando da roça para casa sozinha, foi abordada por dois sujeitos mal intencionados que lhe disseram um oi com um forte soco no rosto. A menina rolou no chão cuspindo dentes e sangue, sem entender o que tais homens pretendiam! A machucaram, uma e outra vez, onde mais dói a dor de uma mulher violada e, por sorte ou azar, a abandonaram viva ao relento. Voltou para a mãe aos prantos e ferida, tentando explicar o que havia ocorrido. Levou uma surra para aprender a não ser tão oferecida, como já havia prevenido o atual namorado da mãe, sempre de olhos compridos e sedentos sobre a Mazé. Por segurança, garantia ou ciúmes, sua mãe resolveu que era melhor afastar a menina dali, colocá-la em casa de família para ajudar nos afazeres de alguma sinhá rica. Melhor fosse longe dali, em São Paulo, junto a alguma tia que por lá vivia.

Foi para São Paulo de carona num caminhão de sementes de mamona que seriam levadas para uma fábrica de óleo em Guaianases, perto de Ferraz de Vasconcelos, onde morava a tal parente distante, prima de seu pai. Se encontraram na porta da fábrica, sem beijo ou abraço, e foram para a casinha da favela onde a tia morava. Ela era empregada doméstica em casa de família que morava no bairro da Mooca, mas já estava com idade avançada, tinha 66 anos, e já não dava conta do serviço. A patroa concordou em colocar uma menina para ajudar e ela levou sobrinha a tiracolo para ensinar a rotina da casa e do trabalho. Mazé nunca tinha visto um piso de cerâmica, uma parede de azulejos, pias com torneiras ou vasos de louça “pra obrar”… Lhe pareceu tudo muito simples e leve, fácil de fazer e limpar. A cozinha tinha caixas de madeira onde se guardava louças e talheres, fogão que acendia a chama apertando um botão e geladeira cheia de bebida e comida.

A sinhá era moça e linda, boa de coração e se divertia a valer com o jeito caipira e engraçado da menina. Ela estava “prenhe”, com a barriga redondinha, pelo jeito vinha por aí uma menina. O marido trabalhava muito e quando chegava em casa ela e a tia já haviam se recolhido. Quando nasceu a criança, decidiram que seria melhor que a Mazé ficasse morando com eles na casa, instalada num quartinho. Pouco depois a tia, já muito cansada, deixou o trabalho, ficando a responsabilidade toda da casa nas mãos da sobrinha. Ela adorava sua vida e cuidava da menina como se fosse a princesa que seus pais diziam. Só a partir de então Mazé conheceu brinquedos, bonecas e esse rato de nome engraçado, “Miki”, que a menina nunca largava e só deixava a Mazézinha dar banho! Um dia os patrões viajaram para os Estados Unidos, levando a princesinha para conhecer a casa do tal ratinho simpático. Voltaram com muitos presentes e fotografias, contando com muita alegria o quanto era bom esse lugar chamado Disneylândia, uma terra de sonho e fantasia, onde o “Miki” vivia.

Mazé naquela noite prometeu a Deus e a si mesmo que um dia ela também iria viajar para esse lugar, economizando e juntando cada centavo que ganhasse do salário, das férias, do 13º, de qualquer extra que fizesse. Os anos foram passando, ela arrumou um namorado e um filho, outro namorado e mais três filhos, ganhou netos e muita experiência. Viu o Brasil deixar de ser governado por militares, ter eleições, presidentes destituídos, aborrecidos e ladrões. E a cada ciclo promessas grandiosas de progresso, justiça e felicidade para ricos e pobres, com planos econômicos mirabolantes onde ela era sempre convidada a colaborar sem participar da festa. Mas fez sua parte, não esqueceu a promessa e juntou os tostões sem saber quanto valia o dólar, até que teve o suficiente para conversar com os patrões e pedir conselhos. Estes ajudaram no que foi preciso, passagens, transportes e hospedagens, pediram ajuda da filha que a essa altura já morava em Miami, com o marido e dois filhos, e a levaram para o aeroporto, onde ela e o neto, pela primeira vez na vida tiraram os pés do chão num busão com asas.

Mazé abriu os olhos e viu o neto que agora a olhava com orgulho, certa que para ele a avó era um exemplo, um símbolo de sucesso como o tal do “Miki”. A avó era alguém que mostrou ser sim possível realizar um sonho, por mais simples que pareça, desde que seja buscado com fé, perseverança, honestidade, respeito e amor no coração.

CaMaSa

Guto, o coala feliz!

No princípio os quatro elementos viviam isolados, terra, água, fogo e ar ocupavam cada um seu quadrado. Bilhões de milhões de anos eles assim viveram, cada um consigo mesmo ocupado, numa monotonia sem fim. Até que o criador de todas as coisas achou de achar que tudo estava muito sem objetivo e sem graça, era preciso agitar um pouco, movimentar e misturar para ver o que ia dar. E assim a Terra, que tinha água de um lado e terra do outro, foi violentamente abalada por maremotos e tempestades, terremotos e vulcões ruidosos, dilúvios de fogo e de gelo, por milhares de anos seguidos. Partiu-se em continentes e ilhas, montanhas, oceanos e rios, potencializando em sua nova fase multifacetada as mais variadas formas de vida. Uma dessas ilhas-continente, por seu tamanho isolamento e características, criou diversas formas muito exclusivas de animais peculiares, somente encontrados ali. Cangurus, Dingos, Vombates, Equidnas e Diabos da Tasmânia, entre outros, só existem e se reproduzem naturalmente na Austrália, o paraíso dos marsupiais.

Mas entre todos esses animais incríveis, há um muito mais que especial, o Coala. Na língua dos indígenas locais, Koala significa “animal que não bebe”. De fato, este marsupial, é bastante abstêmio: mata a sede com apenas o suco oleoso das folhas de eucalipto, praticamente o único vegetal que come.

O coala tem a cabeça pequena, o focinho curto e os olhos bem separados. O nariz é grosso e achatado, e está munido de grandes narinas em forma de V, com as fossas nasais muito desenvolvidas, que mexem no seu equilíbrio térmico. Tanto os membros anteriores como os posteriores possuem cinco dedos. O polegar das patas posteriores é bastante pequeno, não sendo dotado de garras. Os outros dedos são fortes e terminam em garras alongadas. Nas patas posteriores, apenas o polegar é oposto aos outros dedos. A pelagem densa e sedosa, desempenha papel importante na regulação térmica e na proteção dos agentes atmosféricos. Como o coala não constrói um abrigo, dorme exposto ao sol e à chuva. A pelagem do dorso é muito densa e de uma coloração escura que absorve o calor. Torna-se mais escassa durante o verão e mais comprida durante o inverno. Possui um bom equilíbrio e músculos possantes nas coxas, e quando escala uma árvore, a falta de cauda é compensada pelos dedos bastante largos e pelas garras muito desenvolvidas. 

Quando nosso amigo Guto nasceu pesava apenas 0,5 g e tinha menos de 20 mm de comprimento. O corpo era nu, cor-de-rosa e raiado de vasos sanguíneos; os olhos e os ouvidos estavam fechados; a boca, as narinas e as patas posteriores eram apenas um esboço. Somente as patas anteriores eram suficientemente robustas para lhe permitir executar sozinho o fatigante trajeto até a bolsa ventral da genitora e ali permanecer agarrado a uma das duas mamas de sua mãe. Por volta dos cinco meses e meio, ele começou a sair do seu tranquilo abrigo, mas sem se afastar muito da mãe e, ao primeiro sinal de perigo, tornava a entrar emitindo uma espécie de vagido. A permanência fora do refúgio materno foi aumentando e, aos 8 meses, tornou-se definitiva. A partir daí, ele só enfiava a cabeça no marsupial quando tinha fome e queria mamar. Durante as peregrinações noturnas, passeava agarrado sobre o dorso da mãe.

Os coalas todos viviam muito felizes, comendo e dormindo, dormindo e comendo. Seu único predador era o Dingo, mas mesmo esse, só atacava os muito idosos, já inertes no chão, despedindo-se das copas das árvores e da vida. Até que surgiu um novo bicho, estranho e nocivo, pelado, só com um tufo de pelos no alto da cabeça. Era o homem e toda sua selvageria vestida de domínio da tecnologia. Eles chegaram sorrateiros e silenciosos, em pequeno número, mas logo, em algumas dezenas de milhares de anos, dominaram toda a ilha. Os animais em geral e, principalmente os coalas, dos homens não se aproximavam, por desconfiança e medo. Aqueles que por ingenuidade ou ousadia cruzassem seu caminho, eram mortos ou enjaulados, perdiam a liberdade ou a pele e a vida. 

Guto, apesar dos constantes conselhos de sua mãe, tinha em si o vírus da curiosidade e gostava de explorar as matas e lagos das florestas em que viviam. À medida que crescia e se fortalecia, mais e mais ampliava suas pesquisas, conhecendo cada pedra, planta e flor do lugar. Um dia, envolvido com uma pequena fila de formigas que atravessavam o tronco de uma árvore tombada à beira de um rio, enfiou sua cabeça na água limpa e transparente para descobrir o que havia do outro lado da superfície. Nisso o tronco girou sobre si mesmo desprendendo-se da margem e derrubando o pequeno coala nas águas fundas do rio. Por instinto ele se agarrou ao tronco que começou a deslizar velozmente conduzido pela corrente. Apavorado, com a boca ainda cheia de água gelada, nem teve tempo de emitir um pedido de socorro. Foi levado para longe da segurança da mãe e do seu território, até que sua embarcação improvisada deteve-se numa curva mais estreita, há duas luas de distância.

Cansado e com fome o jovem coala começou a explorar o local em busca de folhas de eucaliptos para comer. Tudo era estranhamente quieto, não se ouvia o murmúrio dos bichos nem os cantos dos pássaros! Ele pensou que era porque estava num lugar desconhecido e distante, talvez tivesse poucos habitantes ou estivessem todos fazendo a sesta. Seus olhos estavam lacrimejantes, ele pensou que fosse sono, mas na verdade o ar estava denso e quente, difícil de respirar. De repente, viu uma coisa muito esquisita, que jamais havia visto. Era como uma pequena folha de outono, de pé, com cores vivas e brilhantes, amarela, laranja e vermelha, numa dança constante e inquieta. Aproximou-se curioso, lentamente, e tocou o nariz para cheirá-la. Saltou para trás de imediato, sentindo uma dor forte e profunda. Olhou ao redor e percebeu que muitas outras folhas como aquela pulavam de um lado para outro lançando uma fumaça cinza para o alto, deixando atrás de si um rastro escuro e fumegante de destruição!

Desta vez não era um ajuste da natureza, um desígnio do Criador. Era somente a inconsciência dessa criatura, o homem, fazendo mal à toda criação, seja através de uma bituca de cigarro jogada displicentemente, uma fogueira mal apagada, ou pela ganância desenfreada abrindo passagens e pastos, pondo a floresta no chão. Com o coração batendo forte e acelerado, Guto pôs-se a correr, na lenta velocidade dos coalas, buscando abrigo, mas viu-se cada vez mais cercado pelo fogo. Queimava as patas no chão tostado e sentia muita dor nos pulmões ao respirar a fumaça grossa, tossindo sem parar. Subiu num pequeno arbusto para se proteger mas a situação era terrível e insuportável. Pensou na mãe e nos seus conselhos, arrependido por ter se afastado dela. Chorou o choro triste dos coalas e as lágrimas de saudade misturaram-se às de ardência. Foi quando, entre lágrimas e fumaça, enxergou um vulto…

Viu, apavorado mas paralisado pela situação, que a coisa vinha em sua direção. Não conseguia distinguir com clareza, mas parecia ser muito alto, com pernas longas e braços compridos, andando ereto, conforme a descrição do bicho Homem, que sua mãe havia lhe fazia. Pareceu tirar a própria pele, uma capa, branca como neve, e veio lenta mas decididamente em sua direção, com a tal pele entre os braços erguidos. Envolveu-o com cuidado e o acomodou carinhosamente no peito, saindo de lá o mais rápido possível. Guto sentiu-se num marsupial e deixou-se levar sem resistência, desmaiando de exaustão.

A Ilha Canguru é uma área natural turística na costa do estado da Austrália Meridional, que abriga muitas espécies nativas, incluindo os coalas, cuja população local é estimada em 50.000 animais. Os incêndios catastróficos que assolam o sudeste do país por quatro meses mataram centenas de milhares de animais nativos, mais de 50% (da população) desapareceu. Outros (animais) ficaram sem habitat e morrerão de fome nas próximas semanas. Biólogos e voluntários lutam incessantemente para preservar esse habitat.

De acordo com um estudo da Universidade de Adelaide publicado em julho, os coalas da Ilha Canguru são especialmente importantes para a sobrevivência da espécie na natureza, pois são o único grupo importante que não sofre de clamídia, uma infecção bacteriana assintomática que pode causar cegueira, esterilidade e morte. Eles são uma espécie de seguro ou garantia para toda a população de coalas. Por não sofrerem de clamídia, os coalas da ilha não podem ser transferidos. Esses incêndios estão varrendo os animais do mapa. É uma das maiores tragédias para a população desses animais desde o final do século XIX, quando foram caçados por suas peles.

* * *

Algumas semanas de intensos cuidados devolveram a Guto todas suas habilidades motoras. As queimaduras e ferimentos estavam curados, com sua pele regenerada brilhante e sedosa. Ele havia se afeiçoado a todos ali. Descobrira que havia muitos homens bons, e que na verdade eles são a grande maioria. São pessoas que se importam com a vida de todos os seres do planeta, que se sentem parte integrante da natureza e lutam por sua preservação. Mas ele sentia falta da vida em liberdade e de sua mãe, e as pessoas ali compreendiam suas necessidades. 

Até que finalmente chegou o grande dia em que ele foi colocado em liberdade, para reencontrar o próprio caminho. Afastou-se dos amigos humanos sem olhar para trás e embrenhou-se na mata, já recuperada e verde. Não precisou andar muito até avistar uma figura muito conhecida. Era sua mãe que ainda o procurava com todo o amor que só as mães possuem no coração. Abraçaram-se apertadamente com imensa alegria, certos de que sua felicidade é a esperança para todos os coalas e todos os demais seres da Terra, em essência, todos irmãos.

CaMaSa

Flores da Sé

A temperatura estava amena, entre 22 e 24 graus centígrados, com poucas nuvens no céu. A Praça da Sé estava absolutamente limpa e cheirosa, com aroma de maçã, pêssegos, jabuticabas e tantas outras frutas que lotavam os galhos das árvores ali plantadas. Enchendo ainda mais o ar puro e fresco com aromas diversos, floresciam por todo canto álissos, madressilvas, rosas, cravos, lavandas, gardênias, jasmim-dos-açores, manacás-de-cheiro e jasmins-da-noite entre outras flores. O calçamento impecável de pedras portuguesas, brancas como leite e pretas como piche, sem um única falha, ideal para os passeios familiares e flertes juvenis, harmonizava-se com o projeto arquitetônico composto de jardins, passarelas e espelhos d’água enfeitados por monumentos. Eram tantos e tão bem cuidados que faziam da praça um museu a céu aberto. Tudo incrivelmente limpo e perfumado! Mas a que preço?

A Praça da Sé é um espaço público localizado no bairro da Sé, no distrito homônimo, no Centro do município de São Paulo, no Brasil. É considerado o centro geográfico da cidade. Nela, localiza-se o monumento marco zero do município. A partir dele, contam-se as distâncias de todas as rodovias que partem de São Paulo, bem como a numeração das vias públicas da cidade. Considerada quase um sinônimo para o Centro Velho, a praça é um dos espaços mais conhecidos da cidade e foi palco de muitos eventos importantes para a história do país. A praça abriga diversos monumentos e esculturas, entre eles o célebre Marco Zero no centro da praça e que indica o “coração” da cidade de São Paulo. À frente do Marco Zero, encontra-se o monumento a José de Anchieta, fundador de São Paulo e “Apóstolo do Brasil”, inaugurado em 1954 por ocasião do quarto centenário da cidade. Com a reforma de 2006, a praça recebeu diversas novas intervenções artísticas, de maioria abstrata; entre elas as esculturas “Condor” e “Diálogo”, entre outras. As esculturas foram espalhadas pela praça, e interagem com o espaço reformado. Apenas em 2009 foi instalada na praça um monumento em homenagem a São Paulo, apóstolo de Jesus e santo que dá nome da cidade.

Há um fluxo constante de turistas, de várias partes do país e do mundo, sempre fazendo questão de tirar uma foto ao lado do marco zero, de costas para a Catedral da Sé. Esta era em si um espetáculo à parte, com seu estilo neogótico. A catedral atual foi construída por iniciativa de Dom Duarte Leopoldo e Silva, primeiro arcebispo de São Paulo. Os trabalhos começaram em 1913 no local da catedral colonial demolida. O arquiteto responsável foi o alemão Maximilian Emil Hehl, que projetou uma enorme igreja em estilo eclético, por possuir vários elementos de estilos distintos, como a cúpula e o arco ogival, mas que predomina claramente o neogótico, inspirada nas grandes catedrais medievais europeias. Todos os mosaicos, esculturas e mobiliário que compõem a igreja foram trazidos por navio da Itália. Entretanto, devido às guerras mundiais, houve grande dificuldade para se concluir a obra. Assim, a inauguração da nova catedral ocorreu somente em 1954, com as torres ainda inacabadas, mas a tempo para a celebração do quarto centenário de São Paulo, no dia 25 de janeiro. As torres foram inauguradas em 15 de novembro de 1969. As obras foram tocadas inicialmente por Alexandre Albuquerque, e, a partir de 1940, por Luís Inácio de Anhaia Melo.

Era impossível não admirar a beleza da construção e o cuidado com a manutenção da igreja. Tudo nela brilhava de limpeza e cheirava a assepsia. Mármores, bronzes, mosaicos e madeiras absolutamente bem conservados e agradáveis de se olhar. Era a cereja do bolo da praça e ambas irradiavam uma sensação de paz, tranquilidade e segurança por todo o entorno composto pelas ruas e avenidas que a cruzavam ou ladeavam: Rua Anita Garibaldi, Avenida Rangel Pestana, Rua Roberto Simonsen, Rua Venceslau Brás, Rua Irmã Simpliciana, Rua Santa Tereza, Rua Floriano Peixoto, Rua Boa Vista, Rua 15 de Novembro, Rua Direita, Benjamin Constant, Rua Senador Feijó, Praça Doutor João Mendes, Rua Conselheiro Furtado e Rua Tabatinguera. O mesmo sentimento espalhava-se pelos bairros adjacentes, por toda cidade, pelos municípios próximos, por todo o Estado de São Paulo e demais unidades da Federação, por todo o Brasil e demais países do planeta. Mas nem sempre foi assim…

Quando eu era pré-adolescente, por volta dos 12, 13 anos, costumava ir até o centro com meu amigo Gordinho. Tomávamos o ônibus quase na porta de casa, na Mooca, e descíamos no ponto final, na antiga Praça Clóvis, ao lado da Praça da Sé. Nosso objetivo era atravessar a praça, pegar a Rua Direita até a Praça Patriarca, atravessar o Viaduto do Chá, contornar o Teatro Municipal, seguir pela 24 de Maio até a Avenida Ipiranga e chegar no Cinema Marabá para assistir aos filmes de aventura e ação. Tinha também o Olido, o Metrópole, Comodoro, Marrocos, Metro, Regina e Ipiranga. Salas clássicas, cinemões de arquitetura e programação variadas, para todos os gostos. Passeávamos por toda região com bastante segurança, via-se meia dúzia de pedintes, de alguns já se sabia até os nomes. As pessoas que por ali circulavam estavam a trabalho ou passeio, para comprar ou vender, atender ou ser atendido. 

Era o início dos anos 1970 e as dificuldades da época pareciam ser contornáveis, passíveis de solução. Mas o que se viu dali para frente foi uma espiral de problemas, locais e mundiais, em todos os níveis. Crises e mais crises político-sócio-econômicas foram se acumulando, agravadas pela poluição e esgotamento de recursos naturais, gerando conflitos sem precedentes. Em alguma décadas as populações de países inteiros se viam obrigadas a iniciar ciclos migratórios sem rumo certo, na esperança de sobrevivência. A concentração de riquezas e o poderio econômico criaram um cenário composto por avanços tecnológicos e luxo em contraste a hordas de famintos e desprovidos das mínimas garantias. O Brasil não estava livre disso e, no início de 2020, me lembro de ter voltado ao centro da cidade após muito tempo. Era estarrecedor a quantidade de lixo, sujeira e pessoas vagando desnorteadas pelas ruas históricas. Havia ainda muita atividade produtiva, com lojas e comércios variados e escritórios, mas a quantidade de indigentes espalhados pelo chão era proporcional à de pessoas ativas economicamente. Então aconteceu…

O ano de 2020 foi um marco na história da humanidade graças ao Corona, o vírus. No início daquele ano ninguém poderia imaginar as reais consequências que a rápida transmissão do vírus – apelidado de “coronavírus de Wuhan” – traria para todo planeta. O termo “coronavírus” se refere, na verdade, a um grande grupo viral formado por diversos vírus já conhecidos e identificados. O nome da família foi dado devido à forma desses organismos, que analisados em microscópios, têm a aparência de uma coroa. Os coronavírus são um grupo de vírus de genoma de RNA simples de sentido positivo (serve diretamente para a síntese proteica), conhecidos desde meados dos anos 1960. Pertencem à subfamília taxonómica Orthocoronavirinae da família Coronaviridae, da ordem Nidovirales. A maioria das pessoas se infecta com os coronavírus comuns ao longo da vida. Eles são uma causa comum de infecções respiratórias brandas a moderadas de curta duração. Entre os coronavírus encontra-se também o vírus causador da forma de pneumonia atípica grave conhecida por SARS.

O coronavírus de Wuhan, no entanto, teve um desempenho letal devastador. A estimativa da população mundial era de cerca de 7.761 bilhões de pessoas. Aproximadamente ¼ da população mundial, pouco menos de dois bilhões de seres humanos perderam a vida, por relação direta ou indireta com a doença, em pouco mais de oito meses. Não houve critérios de seleção. Bastava ter cabeça, tronco e membros, mente e alma, bastava ser humano! Assim como chegou, desapareceu. Do nada! Milhares de teorias científicas e religiosas tentaram explicar fato tão apocalíptico, mas a verdade é que nenhuma se ajustou à força e violência, assim como à consciência e inteligência aplicadas à nova era imposta a partir de então. Todos os recursos passaram a ser disponibilizados para o bem comum, sem barreiras ou fronteiras, entre todos. A busca pela solução da doença deu início a um projeto de educação e saúde global, sem deixar de fora nem mesmo as pessoas vivendo nos lugares mais remotos e afastados, graças a toda tecnologia de comunicação disponível. Atingiu-se um nível de conhecimento globalizado, onde a vida humana passou a ser a prioridade. 

Hoje, passados quase 40 anos desse ano fatídico e inesquecível, os que sobreviveram à experiência mais traumática da história da humanidade, colhem o resultado do maior flagelo vivido pelo Homo Sapiens: o absoluto respeito pela natureza e ao próximo, como a si mesmo.

CaMaSa