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Os Assaltos – Parte 4

Enquanto Baruch dava seu último suspiro, Ruby deixava a cozinha e a despensa vazias para trás. Estavam tão abandonadas que nem os ratos ainda permaneciam por lá. Comida e bebida não frequentavam aqueles aposentos há muito tempo! Andou lentamente por toda sala de estar, cheia de sofás puídos, mesas empoeiradas e abajures mortos, deixando pegadas na poeira suja acumulada no chão. Subiu lentamente a grande escada principal, iluminada eventualmente por raios e relâmpagos cada vez mais intensos.

Mané havia deixado Tanaka de guarda no topo da escada caracol e tateava as paredes procurando por Genaro. Chegou ao grande parapeito circular e o percorreu até chegar ao lado oposto da escada. Encontrou uma reentrância na parede onde havia uma pia de pedra com metais dourados. De cada lado dessa bancada havia  banheiros com vasos sanitários e portas decoradas com figuras, femininas e masculinas, de madrepérola. Experimentou a torneira que cuspiu uma água fria e de gosto ruim. Matou a sede assim mesmo e enquanto limpava a boca na manga da camisa, sentiu uma fedentina pavorosa de esgoto. Se perguntou se viria do ralo da pia, quando ouviu um gemido assustador vindo de uma das portas. Arrepiou-se de pavor e, mais por medo do que por coragem, perguntou:

– Quem está aí?

– Uma alma, respondeu Zé, de olhos arregalados, todo cagado. 

– Que queres? Pelo fedor de enxofre vens dos quintos dos infernos. Devolveu o portuga de pulso acelerado.

– Sou de Garanhuns, seu lazarento. Poucos são os que me desafiaram e sobreviveram pra contar! Revidou o Zé, já pensando em pão quente com manteiga, um pingado e uma salada de frutas com groselha e aguardente.

– Pois vá-te daqui, infeliz! Aqui tens um cristão de dois dobrados, protegido da Virgem da Lata de Azeite e de São Bacalhau Salgado.

Aquilo atingiu Zé como um soco no estômago. Ele não teve outra alternativa senão lançar uma longa e potente bomba de gás. Mané atingido no nariz, saiu de lá cambaleante, em busca de ar puro. O outro aproveitou a oportunidade e abandonou o pobre vaso de porcelana à própria, e lastimável, sorte.

Nesse exato momento, sem que percebesse a presença dos dois homens, Tanaka chegava ao lado esquerdo do balcão, notando a ampla escada de madeira que se esparramava para baixo. Andou no escuro até o centro dela, no mesmo instante em que Ruby vinha do lado oposto em sua direção. Quando estavam a menos de meio metro um do outro, quase trocando suas respirações, um raio potentíssimo iluminou o ambiente, com clareza prateada,  por três longos, e quase eternos, segundos. Perceberam-se, viram-se, olharam-se e amaram-se intensamente como ninguém antes havia se amado. A magia da tempestade, a cega paixão dos olhos de vidro, a carência aguda de toda uma vida de incertezas, juntaram-se, tramaram e arrebentaram as máscaras e os mitos. Nunca haviam visto rostos tão ávidos de amor, e tão bonitos. Ruby viu-se menina inocente, nos seus 13 anos, diante de um príncipe. Tanaka viu dois olhos azuis, um normal e um de vidro, assim como ele. O tempo parou, congelou-os naquela paixão infinita que dura o espaço de tempo entre o inspirar e o expirar do ar nos pulmões.

Alheios a tanto amor e paixão, Zé e Mané, por razões próprias, deixavam o lugar em que estavam o mais rapidamente possível. Na pressa, nosso companheiro Zé pisou no rabo de um gato preto e magro que dormia o sono dos justos. O bichano, pela dor e pelo susto, soltou um grito apavorante, de gelar os ossos, que ao Mané pareceu Belzebu tomando um chute no saco, e ao Zé, a sirene de uma rádio patrulha. Correram 100 metros rasos em 8 segundos, cada um percorrendo o parapeito circular em direções opostas. Quando estavam a menos de 2 metros de se chocarem, bateram nas costas de dois corpos em transe, Ruby e Tanaka, que estavam bem no meio da escada. Os dois amantes chocaram-se tão violentamente que, com o impacto, os olhos de vidro saltaram das órbitas e desceram a escada, quicando os degraus. Tec, Tec… Tec Tec, Tec Tec… Tec Tec Tec, Tec Tec Tec… até rolarem no piso lá embaixo, parando cada um em um lugar. 

Apavorados e envergonhados, os dois enamorados desceram a escada desesperados, tropeçaram e rolaram até o chão. Ruby engatinhava procurando a bola de vidro com as mãos, enquanto Tanaka jazia desacordado nos últimos degraus. Quando ela encontrou um olho, foi agarrada pelos braços por Alfa Berto e Zé, que gritavam alucinados:

– Corre Ruby! A casa caiu… É a polícia. Cooorre!

Ela tentou resistir, mas o medo da prisão e a força dos dois homens, foram muito maiores. Deixou-se levar até o DKW estacionado diante da mansão e aos poucos deixou-se controlar pela razão.

Genaro deixou o aposento do falecido Baruch e, com a lamparina iluminando o caminho, encontrou Mané tentando reanimar o amigo japonês. Tanaka acordou com o Genaro explicando o que o ex-patrão tinha dito e o que havia acontecido, e calmamente saíram da casa, já noite alta, rumo ao próximo dia. 

Cada um dos seis tomou uma direção na vida…

Genaro tornou-se um pequeno empresário, sustentou algumas famílias de funcionários driblando as dificuldades da compra e venda, dos impostos altos e lucros baixos. Juntou em torno de si filhos, netos e bisnetos, até que amanheceu um dia em sua cama duro e gelado, no rosto uma expressão de missão cumprida.

Zé deixou o emprego de servente de pedreiro e conseguiu uma vaga na indústria automobilística. Com as sementes teóricas plantadas pelo companheiro Alfa Berto na cabeça, vinculou-se ao movimento sindical e evoluiu, chegando à liderança de uma importante categoria de trabalhadores, reivindicando melhores condições de trabalho e uma sociedade mais justa. Mas não assumiu a responsabilidade por nada.

Mané vendeu sua parte na sociedade para o amigo e voltou para a terrinha, onde o aguardavam sua mulher e seu filho, seu sogro e sogra, com festa e terno de casamento prontos. Fez mais alguns filhos, investiu e prosperou com o capital recebido, plantando oliveiras e parreiras, sonhando sempre com um Brasil que deixou para trás.

Alfa Berto voltou a ser simplesmente Alberto, entrou para a faculdade de Administração de Empresas e assumiu os negócios da família. Levou os negócios do pai a um patamar muito elevado, formou cartéis, comprou políticos, juízes e presidentes. Construiu um império de corrupção multinacional e estádios de futebol, entre outras obras monumentais.

Ruby foi presa numa batida rotineira. Identificada como subversiva, foi deportada junto com outros conterrâneos para a Argentina. Lá enfrentou a violência de uma ditadura implacável que não mascarava a situação de conflito interno, declarando a guerra abertamente aos inimigos. Alguns meses depois de confinamento em porões insalubres, foi convidada para um passeio de avião. A 4.000 pés de altura, com a porta da aeronave aberta, pediu ao algoz um último desejo. Que lhe tirassem o capuz da cabeça. Foi lançada para um vôo solitário na noite escura e gelada, com as mãos firmemente amarradas às costas. Abriu os olhos, um azul e um negro de vidro, para admirar a paisagem, com a coragem infinita dos que acreditam num mundo mais livre e justo, e mergulhou sem volta no mar profundo.

Tanaka também pegou sua parte da sociedade e caiu no mundo à procura de sua amada. Perguntava a todos se haviam visto uma deusa de olhos azuis que havia roubado seu olhar e seu coração. Começou a pichar mensagens em postes e muros, placas e monumentos, até que foi preso e interrogado. Consideraram suas frases desconexas subversivas e o prenderam sem direito à defesa, por questões de segurança nacional. Sofreu, apanhou, foi afogado em tambores de água suja, pendurado em pau de arara e tomou choque nos testículos. Nada confessou porque nada tinha para confessar, somente sua paixão pela moça da mansão. Cansaram-se dele e o transferiram para o manicômio, onde sofreu, apanhou e foi mais maltratado e dopado. Passado algum tempo, o puseram na rua, mais confuso e doente do que quando entrou. Foi socorrido por um parente muito idoso, um tio que morreu lhe deixando ferramentas de marcenaria da mais alta qualidade. Serrotes, martelos, formões, chaves-de-fenda e plainas de precisão. Um dia bateu à porta da oficina do meu pai que o aceitou prontamente. Trabalhava a madeira com perfeição, mas tinha o hábito de escrever em pedaços de madeira suas mensagens que ninguém compreendia. Não conversava com ninguém e se alguém tentasse uma aproximação era repelido com violência verbal. Falava somente o necessário comigo, quando aos 12 anos eu fazia o pagamento dos funcionários. Sentava-se diante de mim, eu apresentava as contas e, se tudo estivesse do seu agrado, repetia a história da linda moça que roubara seu olho numa noite sem fim.

* * *

Dois meses depois da morte de Baruch, um grupo de agentes da C.I.B. – Central de Inteligência Brasileira, fora designado para uma missão numa mansão abandonada na Avenida Paulista. Havia suspeitas de movimento terrorista no local e o proprietário, um judeu bilionário, havia desaparecido deixando toda sua fortuna para instituições de caridade. Invadiram o local arrombando a porta principal e deram início às buscas. Chegaram a um pequeno aposento, onde jazia um corpo em decomposição, cheirando muito mal e esparramando fluidos já ressecados pelo chão.

– É sempre assim. A gente sempre chega quando a merda já aconteceu, disse o sargento Moura.

– É… a gente que vai ter que limpar isso daí… respondeu o Cabo Naro.

CaMaSa

Ensina

Ensina

 

Quem lê o que escrevo 

compreende e se fascina

nem imagina como é bom 

aquele que me ensina

 

É o sol chovendo luz

sobre uma tela escura

em cima dela reproduz

cores de beleza pura

 

É a paz em movimento 

ele é o poeta e a poesia 

retira de um só momento 

a lição que eu já sabia

 

É o aluno e o professor

do que importa nesta vida

mostra o verdadeiro amor

até para quem duvida

CaMaSa

Processo

Processo

 

Cada um tem o seu caminho 

desde sempre desde o ninho 

é um processo muito incrível 

único pessoal intransferível

 

Cada um veste a sua pele

fina sensível ao que se rele

e abaixo dela vive o inverso

de todo o resto do universo

 

Cada um aprende de alguém

aquilo que mais lhe convém

tem quem ensina a perfeição

a experiência da paz em ação

CaMaSa

Os Assaltos – Parte 3

O que era para ser um assalto comum, desses de entrar, pegar e sair assobiando, se transformou numa montanha russa de emoções e surpresas. Não dessas Six Flags americanas, seguras e antissépticas, onde a gente tem absoluta certeza que vai chegar são e salvo ao final. Não, estou falando de montanha russa raiz, de madeira, tipo Parque Shangai, localizado na divisa entre a Mooca e o Glicério, na década de 60. O carrinho de ferro carcomido pela ferrugem,  pintado em cores vibrantes e espalhafatosas, com rodas ensaboadas de banha animal suja e mau cheirosa, voando a não-sei-quantos por hora sobre os trilhos trepidandes e mal fixados por pregos e parafusos muito gastos, a milímetros de se soltarem. Quem andou, sabe…

Genaro e Alfa Berto, Mané e Zé, Tanaka e Ruby, estavam todos na casa de Baruch, ao mesmo tempo,  sem que cada grupo soubesse da presença do outro. Espalharam-se como ratos pela mansão labiríntica escurecida pela noite tempestuosa. A entrada principal tinha um amplo saguão com piso em mármore, onde nascia uma larga escada, toda em carvalho americano, subindo para o andar superior num enorme arco que se abria para ambos os lados num corredor circular, o qual dava acesso a vários aposentos.

O companheiro Zé começava a sentir os fortes efeitos da feijoada, com macarrão e moqueca da hora do almoço, e deu prioridade, na sua busca, ao encontro de um banheiro, com total urgência. Genaro atravessou a sala principal em direção à biblioteca, certo que encontraria o cofre secreto entre as estantes, onde estariam guardados os bens mais preciosos. Ruby foi até a cozinha para vasculhar a despensa e alguma passagem secreta de um porão no subsolo, enquanto Alfa Berto subiu a escada principal e começou a examinar cada um dos quartos com muito cuidado. Mané e Tanaka encontraram uma outra escada, de ferro fundido, em caracol, que acessava uma segunda ala de dormitórios, mais ao fundo do casarão. Subiram silenciosamente, tateando no escuro os degraus com os bicos dos pés.

Genaro nunca tinha visto tantos livros em sua vida! As estantes iam do chão ao teto alto, muito alto, provavelmente com mais de 4 metros. Era uma infinidade de lombadas coloridas, pardas no lusco-fusco da penumbra, de várias espessuras e texturas. Será que o patrão havia lido todos aqueles livros? Idade ele tinha, pensou. Estranhamente, era o lugar da casa que menos cheirava a mofo, podridão e ruína. Certamente se riqueza significava viver naquele ambiente, ele preferia o cheiro da luz do sol do seu humilde lar. Mas ele precisava de uma pequena parte do que Baruch possuía, tão pouco que o velho nem perceberia, mas o suficiente para realizar a operação do seu caçula. Não havia outro jeito, ele tinha que conseguir! Pôs-se a procurar ansiosamente, puxando cada um dos livros do lugar, buscando por algo que desconhecia. Até que tocou um livro diferente, duro, de madeira. Puxou-o e este fez um clique… O falso livro tinha o canto da base fixa na prateleira, com uma espécie de dobradiça, e quando ele girou completamente sobre esse eixo, abriu uma estreita porta de correr que dava acesso a um corredor escuro e gelado. Genaro acendeu seu isqueiro e avançou por uma rampa curva, muito íngreme.

O companheiro Alfa Berto já revistava o terceiro quarto e não havia encontrado nada nem ninguém. Estava cada vez mais desconfiado que a missão era uma armadilha ou um tipo de treinamento a que haviam sido submetidos pela organização. Não sabia o que procurar e o que fazer se encontrasse alguma coisa. Mas gostava da sensação de aventura, do risco e do perigo. Eram experiências que não podia viver sob o teto burguês da família, suas tradições e propriedades. Seus pais já eram muito ricos quando nasceram e ficaram milionários quando juntaram suas fortunas em matrimônio. Poderosos no ramo da construção, viviam recebendo em casa, para jantares e reuniões, membros do alto escalão do governo. Ele, por rebeldia juvenil, tímido e introspectivo, encontrou nas teorias revolucionárias a válvula de escape para suas frustrações. Tinha nessa dupla identidade, a realização de uma fantasia, brincando de agente secreto, de mocinho e bandido, na vida real.

Quando abriu a porta do sexto dormitório, percebeu uma luz fraca e bruxuleante vinda através de uma porta com molduras envidraçadas. Aproximou-se cuidadosamente e olhou para dentro do que parecia ser uma pequena câmara, em cujo centro havia uma pequena mesa de madeira. Sobre a mesa uma pequena lamparina a óleo iluminava pobremente o ambiente e, sentado diante dela, olhando fixamente para uma moeda dourada à sua frente, estava um homem muito velho, com ralos cabelos brancos caindo sobre os ombros. Do outro lado do aposento, viu uma porta igual a que ele estava e, por trás dela, a figura de um homem forte e rude, olhando para ele espantado. Ambos tiveram a mesma reação, abrindo a porta rapidamente, correndo em direção ao velho homem e pegando em seus braços. Genaro pela direita e Alfa Berto pela esquerda.

Teve início uma intensa disputa onde o velho Baruch era puxado de um lado para o outro, feito um fantoche de pano. Os dois oponentes reconheceram-se imediatamente adversários ideológicos e se puseram a trocar ofensas que começaram com um “Porco Fascista” daqui, um “Comunista Ladrão” de lá, descambando para uma cantilena interminável de palavras de ordem e chavões políticos. O infeliz judeu, enjoado com os chacoalhões e irritado com o discurso dos dois lados da mesma moeda em suas orelhas, juntou as mirradas forças que lhe restavam e gritou um “Basta”, cheio de ira. Os dois inimigos, surpreendidos, olharam para o ancião, prestando atenção no que ele dizia: 

– Vocês chegaram atrasados, seus idiotas! Se estão atrás do meu dinheiro, saibam que não existe mais tesouro algum nesta casa. Tudo, absolutamente tudo, agora está em mãos seguras, sendo administrado por organismos internacionais especializados em gestão de entidades assistenciais, sem fins lucrativos.

Os dois olharam-se embasbacados, enquanto Baruch contava sua história, desde o princípio:

– Nasci numa família muito rica, descendente direta da comunidade asquenaze, desde o século V, sobrevivente do massacre de Tréveris, cidade histórica da Alemanha e também a mais antiga, localizada no estado da Renânia-Palatinado. Com negócios diversificados em alimentos, tecidos, ouro, ferrovia e siderurgia, tínhamos escritórios por toda a Alemanha e sede em Berlim. Financiamos, durante a Primeira Grande Guerra, a participação de judeus-alemães, onde foram mortos mais de 12.000 soldados judeus. Lucramos sobre a morte de cada um deles. Chegamos aos primórdios nazistas como uma das maiores fortunas alemãs e do planeta. Em nosso castelo recebíamos toda cúpula do futuro governo, em conchavos regados a champanhe e caviar, da futura máquina de guerra do III Reich. Goebbels, Mengele, Pohl… o Führer em pessoa bebericou licores em nossa sala de jantar! Quando as armas se voltaram definitivamente contra nosso povo, somente os muito abastados, e bem relacionados, conseguiram deixar o solo alemão em busca de segurança nas Américas. Uma parte de nossa família fugiu, outra parte foi assassinada, e alguns, entre eles eu, ficou para auxiliar os oficiais de alta patente e ministros alemães, a compreenderem os mecanismos de gestão de nossas empresas. Quando não tínhamos mais utilidade, nos despachavam para os campos de concentração. Cheguei em Sobibor com 68 anos, e fui talvez o único em idade tão avançada, a sair com vida de um campo. Em parte por conta dos meus contatos com a elite alemã, em parte porque a fortuna escondida que me aguardava lá fora valia qualquer sacrifício. Dirigentes do campo de concentração me deram a função de espião, levando para eles informações sobre qualquer tentativa de insubordinação de prisioneiros. São centenas de inocentes dos quais tenho responsabilidade sobre suas mortes… Não tenho peso na consciência. Fiz o que me cabia ter feito. Recentemente, duas semanas atrás, tive minha sentença de morte declarada por um médico especialista e, a partir de então, tive uma espécie de revelação…

– Esse menino, esse nazareno que vocês tanto veneram… somente agora compreendi o seu significado. Ele não tinha intenção de destruir os romanos, a Lei de Moisés, a Torah… Nem muito menos queria fundar uma nova religião para vender passagens para o Paraíso. Não queria ser chefe, mestre, ídolo ou deus de coisa nenhuma. Ele só compreendeu o significado, encontrou as respostas para as perguntas não feitas, a Paz, dentro, e tentou ensinar aos homens como alcançá-la, sem pedir nada em troca. Simples, verdadeiro e real. Só esse é meu arrependimento. Não ter experimentado, a cada dia, uma e outra vez, esse infinito interior da existência, pois nos tornamos excelentes naquilo que mais praticamos.

– Quando compreendi isso, doei tudo que tinha para instituições que farão o bem aos mais necessitados, crianças e inválidos, doentes e velhos sem recursos. Com esse mesmo dinheiro que usei para comprar políticos e administradores corruptos do erário público, ou financiei a oposição a governos que não quiseram dobrar seus joelhos aos meus interesses, armando patifes sem alma para criar confusão e instabilidade, com essa mesma riqueza, farei aquilo que jamais tive intenção de fazer. Ajudar o próximo!

O velho judeu respirava com dificuldade e pesava bem as palavras antes de dizê-las, como se fizesse um testamento oral. Prosseguiu:

– A pequena fabriqueta de sapatos que usei como disfarce para fugir de perseguidores implacáveis, caçadores de recompensas, deixei para você Genaro, para o Mané e o Tanaka. Divirta-se administrando uma empresa no Brasil, com as inúmeras dificuldades e entraves burocráticos. É minha vingança pelas horas de trabalho roubadas, pelas matérias-primas descartadas sem necessidade e pelos produtos extraviados. Quero que você sinta na carne o que é ser patrão e tentar não se tornar pior do que eu.

Calou-se, pegou a moeda sobre a mesa com sua mão direita e cerrou-a firmemente. Havia reconhecido um Messias, mas, por garantia, era melhor ter alguma coisa para barganhar do lado de lá do umbral. Apoiou a mão esquerda sobre a mesa, deslizou lentamente para a frente apoiado nela e tombou a cabeça sobre a mesa, num baque surdo, já sem respirar.

CaMaSa

Sabe

Sabe

 

Eu poderia falar das dores

o vazio de quando te fores

mas prefiro olhar as flores

falar das coisas de amores

 

É certo um dia chegará o fim

nele veremos a raiz do capim

prefiro falar da parte em mim

que aceita agradece e diz sim

 

Antes até que tudo se acabe

e somente de ter fé me gabe

recebo a parte que me cabe

como quem conhece e sabe

CaMaSa