Um conto de Natal
Lembro de um Natal, eu era muito pequeno, devia ter 7 ou 8 anos, e nossa família morava no primeiro andar do Edifício Marly, na Rua Dom Bosco, no bairro da Mooca. Naquela época, a Mesbla enfeitava o imenso prédio de tijolos e sua torre redonda, na Avenida do Estado, com os motivos natalinos, e fazia uma grande exposição das últimas novidades em artigos para o lar e, principalmente, de brinquedos. Eu, apesar da idade, já havia compreendido que não ganharia do Papai Noel, nem de perto nem de muito longe, aquilo que eu realmente queria ganhar. Assim que me contentava em passear pela imensa loja, morrendo de amor e paixão pelos autoramas, ferroramas e bolas de capotão, sabendo que, com muita sorte, ganharia dos meus pais meias, shorts e camiseta. Mas aquele Natal teria um componente que mudaria minha percepção das coisas pelo resto da vida.
Em 1966, o Brasil seguia sua rotina: em 5 de fevereiro era decretado o Ato Institucional Nº 3, que instituiu as eleições indiretas para governadores e vice-governadores e a nomeação de prefeitos; no dia 21 de fevereiro o jogador de futebol Pelé casava-se com Rosemari; em 5 de junho o governador de São Paulo, Ademar Pereira de Barros, era cassado pelo presidente Castelo Branco; no dia seguinte, Luís Carlos Prestes, líder do Partido Comunista Brasileiro, era condenado a 14 de anos de prisão; em 25 de julho um atentado a bomba contra o marechal Artur da Costa e Silva, candidato a presidente do Brasil, no aeroporto de Guararapes, em Recife, Pernambuco, deixando três mortos e vários feridos; no dia 13 de setembro o presidente Humberto de Alencar Castelo Branco sanciona a lei, que estabelece o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e, em 3 de outubro, o candidato da Aliança Renovadora Nacional, Artur da Costa e Silva, é eleito presidente do Brasil pelo Congresso Nacional com 295 votos na eleição presidencial indireta. Tudo muito normal e brasileiro.
Desse modo chegamos ao fim de 66 com a expectativa que era melhor não ter muitas expectativas. Evidentemente, um pirralho como eu não teria a menor ideia ou interesse sobre o significado desses acontecimentos. Meu único interesse era encontrar o tal do bom velhinho, de barba branca e vestido de vermelho, e que ele tirasse alguma coisa que valesse a pena do seu enorme saco. A rotina nas casas era alterada para uma frequência diferente, mais rápida e cheia de uma intensidade amorosa, com preparativos especiais de decoração e alimentação, como quem prepara uma festa para um convidado muito especial. Eu compreendia porque esse senhor Noel aparecia tão gordo em todas as imagens. Porque, se ele tinha que passar em todas as casas entregando presentes e experimentar, nem que fosse um cafezinho, só podia ficar gordo mesmo, como uma baleia! Os outros garotos, amigos inseparáveis da rua, também estavam concentrados em seus mundos particulares, dentro de suas casas, acompanhando cada detalhe dos preparativos. Eu ficava em meio à minha mãe e irmãs, atrapalhando e levando broncas.
– Tira a mão daí, menino!
– Olha a farinha! Não vai sentar no ovo!
– Sai daqui, moleque. Vai caçar o que fazer!
Era trabalho de adultos… e isso só fazia aumentar cada vez mais a ansiedade. O que será que vai acontecer? Será que vem? Será que não vem? O ano passado ganhei um estojo de madeira, com tampa deslizante multicolorida… Para a escola… Oh céus! Será que a carta chega nas mãos certas este ano? Sim, porque esse homem deve ter uma legião de ajudantes, uns dizem anões, outros dizem gnomos ou duendes. Seja lá o que for, o que recebeu minha carta devia ser um analfabeto (tinha acabado de aprender essa palavra na escola, usava para qualquer situação). Eu soletrei muito claramente para a Irmã Mais Nova: – Bi…ci…cre…ta. Não tinha erro! Será que ela me pregou uma peça e trocou por Es…ton…jo? É possível. Irmãs e irmãos pregam-se peças por toda a vida, até a despedida final.
Mas aconteceu que no dia 24, às 19, 20, 21 e 22 horas, até então, o bom velhinho não apareceu. E, estranhamente, não só eu estava ansioso, mas o Pai, a Mãe, a irmã Mais Velha e até a Irmã Mais Nova, todos estavam ansiosos e tensos, como alguém que desconfia que o peru assando no forno é frango, que a azeitona da farofa é uva passa ou que o bolo recheado de creme e chocolate é de banana. Algo que tinha que acontecer não estava acontecendo e isso não era bom. Às 23 horas definitivamente não era nada bom mesmo e às 23h30 já era quase caso de polícia. Eu, barata tonta em meio a tanta expectativa, dividido entre a deles e a que realmente importava, a minha, andava de um lado pro outro em busca de respostas. O que estaria acontecendo?
Era uma noite chuvosa, como são chuvosas as noites de verão na cidade de São Paulo e, naquela época, pré luz de mercúrio, os postes sustentavam uma fraca luz amarelada, formando abóbadas de claridade riscadas por pingos prateados de água limpa. Ela não chegou num trenó puxado por renas majestosas, comandadas por um intrépido capitão de roupas escarlates. Veio num velho e abrutalhado caminhão baú FNM, cheio de caixas. De uma delas surgiu a maravilha das maravilhas. Um gigantesco carregador em mangas de camisa descarregou essa enorme caixa de papelão e a abriu, diante dos meus olhos reluzentes, tirando do seu interior uma bicicleta Falcon, verde, aro 20! Era tão linda! Diferente das bicicletas que os amigos tinham ganhado no ano anterior, essa era uma miniatura das bicicletas dos adultos, com todos os detalhes copiados à perfeição. Praticamente dormi com ela naquela noite, sem comer, sonhando com as pedaladas do dia seguinte e meus amigos babando de inveja de um presente tão especial.
Pulei da cama antes dos primeiros raios de sol e a primeira coisa que ouvi foi a Mãe dizendo: – Não vai andar de bicicleta enquanto a chuva não parar.
Caramba! Olhei pela janela e a chuva seguia firme e forte, com cara de que levaria uns 2 a 3 meses para parar! Entre resmungos e tentativas de argumentação, bater de pé e o primeiro tapa na bunda, cheguei à conclusão que o melhor seria esperar. Na cozinha a atividade seguia intensa, agora com os preparativos do almoço de Natal, agora sim com a presença de convidados, tios e primos, para confraternizar e comemorar, não sei bem o que, já que a única coisa realmente importante era meu presente. Eu descia e subia as escadas até o portão da rua, a cada 15 minutos, para avaliar as possibilidades climáticas. A cada puxão no avental da minha Mãe, recebia um: – Nó… Nó… Nó…
Até que finalmente, pouco antes da chegada das visitas, ganhei uma fatia de rocambole de queijo e presunto, com massa fina e corada de gema de ovos, desses que só as mães sabem fazer, porque vai na receita um ingrediente especial que só elas conhecem. Percebi que meu estômago roncava de fome e o perfume da cozinha tinha um sabor de Natal que ficaria gravado na memória para sempre. Peguei meu pedaço e desci a escada para saborear o salgado sentado no degrau do portão de entrada do prédio, esperando que a chuva sem fim terminasse. Quando eu ia dar a primeira dentada, percebi um homem diante de mim, me olhando com olhos escuros e tristes. Fiquei surpreso, mais porque não parecia ser um mendigo, mas suas roupas estavam bem surradas e ele parecia não ter tido acesso a um banho, comida ou qualquer outro tipo de conforto há um bom tempo. Ele balbuciou entre os dentes sujos da boca sem força do rosto encovado:
– Moço, me desculpe, estou há vários dias sem comer, venho do interior e tenho muita fome…
Eu olhei pra ele, olhei pro rocambole, olhei de novo para ele e fiz que não com a cabeça. Ele me retribuiu com uma tentativa de sorriso, virou-se e foi embora. Não refleti por mais de 3 segundos antes de dar uma mordida naquela iguaria, mas, estranhamente, formou-se um bolo em minha garganta e a massa não desceu. Fui invadido por uma tristeza profunda, percebi não sei como que aquele homem era eu e eu era ele. Levantei em pânico e subi para minha casa. Entrei na cozinha e sem que ninguém percebesse peguei um dos rocamboles inteiro, recém saído do forno. Desci correndo para a rua, buscando pelo homem. Pude vê-lo dobrando a esquina, à esquerda da Rua Luiz Gama, em direção à Avenida do Estado.
Naquela época as ruas eram pouco movimentadas, mais seguras, e eu saí correndo em sua direção, sem nem mesmo saber o por quê. Virei em direção à avenida e, quando cheguei no meio fio, vi o homem no centro da pinguela de madeira usada para atravessar o Rio Tamanduateí, que separava a avenida em duas margens. O rio, normalmente calmo com suas águas sujas e escuras, estava furioso e perigoso, com a água barrenta trazida de longe. Me aproximei devagarinho, com o rosto escorrido de lágrimas misturadas com gotas de chuva. Pude de alguma forma entender sua dificuldade e aflição, olhando desoladamente para as águas perigosas do rio abaixo. Um mergulho ali seria fatal. Cheguei ao seu lado sem que ele percebesse, toquei de leve sua manga e estendi o rocambole em sua direção.
O homem tomou a oferta sem cerimônia de minhas mãos e deu duas dentadas desesperadas. Protegeu o restante da água da chuva, repensou suas opções, virou-se e atravessou a pequena ponte, em direção ao seu destino.
CaMaSa