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Um conto de Natal

Lembro de um Natal, eu era muito pequeno, devia ter 7 ou 8 anos, e nossa família morava no primeiro andar do Edifício Marly, na Rua Dom Bosco, no bairro da Mooca. Naquela época, a Mesbla enfeitava o imenso prédio de tijolos e sua torre redonda, na Avenida do Estado, com os motivos natalinos, e fazia uma grande exposição das últimas novidades em artigos para o lar e, principalmente, de brinquedos. Eu, apesar da idade, já havia compreendido que não ganharia do Papai Noel, nem de perto nem de muito longe, aquilo que eu realmente queria ganhar. Assim que me contentava em passear pela imensa loja, morrendo de amor e paixão pelos autoramas, ferroramas e bolas de capotão, sabendo que, com muita sorte, ganharia dos meus pais meias, shorts e camiseta. Mas aquele Natal teria um componente que mudaria minha percepção das coisas pelo resto da vida.

Em 1966, o Brasil seguia sua rotina: em 5 de fevereiro era decretado o Ato Institucional Nº 3, que instituiu as eleições indiretas para governadores e vice-governadores e a nomeação de prefeitos; no dia 21 de fevereiro o jogador de futebol Pelé casava-se com Rosemari; em 5 de junho o governador de São Paulo, Ademar Pereira de Barros, era cassado pelo presidente Castelo Branco; no dia seguinte, Luís Carlos Prestes, líder do Partido Comunista Brasileiro, era condenado a 14 de anos de prisão; em 25 de julho um atentado a bomba contra o marechal Artur da Costa e Silva, candidato a presidente do Brasil, no aeroporto de Guararapes, em Recife, Pernambuco, deixando três mortos e vários feridos; no dia 13 de setembro o presidente Humberto de Alencar Castelo Branco sanciona a lei, que estabelece o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e, em 3 de outubro, o candidato da Aliança Renovadora Nacional, Artur da Costa e Silva, é eleito presidente do Brasil pelo Congresso Nacional com 295 votos na eleição presidencial indireta. Tudo muito normal e brasileiro.

Desse modo chegamos ao fim de 66 com a expectativa que era melhor não ter muitas expectativas. Evidentemente, um pirralho como eu não teria a menor ideia ou interesse sobre o significado desses acontecimentos. Meu único interesse era encontrar o tal do bom velhinho, de barba branca e vestido de vermelho, e que ele tirasse alguma coisa que valesse a pena do seu enorme saco. A rotina nas casas era alterada para uma frequência diferente, mais rápida e cheia de uma intensidade amorosa, com preparativos especiais de decoração e alimentação, como quem prepara uma festa para um convidado muito especial. Eu compreendia porque esse senhor Noel aparecia tão gordo em todas as imagens. Porque, se ele tinha que passar em todas as casas entregando presentes e experimentar, nem que fosse um cafezinho, só podia ficar gordo mesmo, como uma baleia! Os outros garotos, amigos inseparáveis da rua, também estavam concentrados em seus mundos particulares, dentro de suas casas, acompanhando cada detalhe dos preparativos. Eu ficava em meio à minha mãe e irmãs, atrapalhando e levando broncas. 

– Tira a mão daí, menino!

– Olha a farinha! Não vai sentar no ovo!

– Sai daqui, moleque. Vai caçar o que fazer!

Era trabalho de adultos… e isso só fazia aumentar cada vez mais a ansiedade. O que será que vai acontecer? Será que vem? Será que não vem? O ano passado ganhei um estojo de madeira, com tampa deslizante multicolorida… Para a escola… Oh céus! Será que a carta chega nas mãos certas este ano? Sim, porque esse homem deve ter uma legião de ajudantes, uns dizem anões, outros dizem gnomos ou duendes. Seja lá o que for, o que recebeu minha carta devia ser um analfabeto (tinha acabado de aprender essa palavra na escola, usava para qualquer situação). Eu soletrei muito claramente para a Irmã Mais Nova: – Bi…ci…cre…ta. Não tinha erro! Será que ela me pregou uma peça e trocou por Es…ton…jo? É possível. Irmãs e irmãos pregam-se peças por toda a vida, até a despedida final.

Mas aconteceu que no dia 24, às 19, 20, 21 e 22 horas, até então, o bom velhinho não apareceu. E, estranhamente, não só eu estava ansioso, mas o Pai, a Mãe, a irmã Mais Velha e até a Irmã Mais Nova, todos estavam ansiosos e tensos, como alguém que desconfia que o peru assando no forno é frango, que a azeitona da farofa é uva passa ou que o bolo recheado de creme e chocolate é de banana. Algo que tinha que acontecer não estava acontecendo e isso não era bom. Às 23 horas definitivamente não era nada bom mesmo e às 23h30 já era quase caso de polícia. Eu, barata tonta em meio a tanta expectativa, dividido entre a deles e a que realmente importava, a minha, andava de um lado pro outro em busca de respostas. O que estaria acontecendo?

Era uma noite chuvosa, como são chuvosas as noites de verão na cidade de São Paulo e, naquela época, pré luz de mercúrio, os postes sustentavam uma fraca luz amarelada, formando abóbadas de claridade riscadas por pingos prateados de água limpa. Ela não chegou num trenó puxado por renas majestosas, comandadas por um intrépido capitão de roupas escarlates. Veio num velho e abrutalhado caminhão baú FNM, cheio de caixas. De uma delas surgiu a maravilha das maravilhas. Um gigantesco carregador em mangas de camisa descarregou essa enorme caixa de papelão e a abriu, diante dos meus olhos reluzentes, tirando do seu interior uma bicicleta Falcon, verde, aro 20! Era tão linda! Diferente das bicicletas que os amigos tinham ganhado no ano anterior, essa era uma miniatura das bicicletas dos adultos, com todos os detalhes copiados à perfeição. Praticamente dormi com ela naquela noite, sem comer, sonhando com as pedaladas do dia seguinte e meus amigos babando de inveja de um presente tão especial.

Pulei da cama antes dos primeiros raios de sol e a primeira coisa que ouvi foi a Mãe dizendo: – Não vai andar de bicicleta enquanto a chuva não parar.

Caramba! Olhei pela janela e a chuva seguia firme e forte, com cara de que levaria uns 2 a 3 meses para parar! Entre resmungos e tentativas de argumentação, bater de pé e o primeiro tapa na bunda, cheguei à conclusão que o melhor seria esperar. Na cozinha a atividade seguia intensa, agora com os preparativos do almoço de Natal, agora sim com a presença de convidados, tios e primos, para confraternizar e comemorar, não sei bem o que, já que a única coisa realmente importante era meu presente. Eu descia e subia as escadas até o portão da rua, a cada 15 minutos, para avaliar as possibilidades climáticas. A cada puxão no avental da minha Mãe, recebia um: – Nó… Nó… Nó…

Até que finalmente, pouco antes da chegada das visitas, ganhei uma fatia de rocambole de queijo e presunto, com massa fina e corada de gema de ovos, desses que só as mães sabem fazer, porque vai na receita um ingrediente especial que só elas conhecem. Percebi que meu estômago roncava de fome e o perfume da cozinha tinha um sabor de Natal que ficaria gravado na memória para sempre. Peguei meu pedaço e desci a escada para saborear o salgado sentado no degrau do portão de entrada do prédio, esperando que a chuva sem fim terminasse. Quando eu ia dar a primeira dentada, percebi um homem diante de mim, me olhando com olhos escuros e tristes. Fiquei surpreso, mais porque não parecia ser um mendigo, mas suas roupas estavam bem surradas e ele parecia não ter tido acesso a um banho, comida ou qualquer outro tipo de conforto há um bom tempo. Ele balbuciou entre os dentes sujos da boca sem força do rosto encovado:

– Moço, me desculpe, estou há vários dias sem comer, venho do interior e tenho muita fome…

Eu olhei pra ele, olhei pro rocambole, olhei de novo para ele e fiz que não com a cabeça. Ele me retribuiu com uma tentativa de sorriso, virou-se e foi embora. Não refleti por mais de 3 segundos antes de dar uma mordida naquela iguaria, mas, estranhamente, formou-se um bolo em minha garganta e a massa não desceu. Fui invadido por uma tristeza profunda, percebi não sei como que aquele homem era eu e eu era ele. Levantei em pânico e subi para minha casa. Entrei na cozinha e sem que ninguém percebesse peguei um dos rocamboles inteiro, recém saído do forno. Desci correndo para a rua, buscando pelo homem. Pude vê-lo dobrando a esquina, à esquerda da Rua Luiz Gama, em direção à Avenida do Estado. 

Naquela época as ruas eram pouco movimentadas, mais seguras, e eu saí correndo em sua direção, sem nem mesmo saber o por quê. Virei em direção à avenida e, quando cheguei no meio fio, vi o homem no centro da pinguela de madeira usada para atravessar o Rio Tamanduateí, que separava a avenida em duas margens. O rio, normalmente calmo com suas águas sujas e escuras, estava furioso e perigoso, com a água barrenta trazida de longe. Me aproximei devagarinho, com o rosto escorrido de lágrimas misturadas com gotas de chuva. Pude de alguma forma entender sua dificuldade e aflição, olhando desoladamente para as águas perigosas do rio abaixo. Um mergulho ali seria fatal. Cheguei ao seu lado sem que ele percebesse, toquei de leve sua manga e estendi o rocambole em sua direção.

O homem tomou a oferta sem cerimônia de minhas mãos e deu duas dentadas desesperadas. Protegeu o restante da água da chuva, repensou suas opções, virou-se e atravessou a pequena ponte, em direção ao seu destino.

CaMaSa

Conhecimento

Conhecimento

 

Olha meu irmão já é chegada a hora 

de declarar a guerra contra a guerra 

pois a paz está presente no coração 

de todos os seres viventes desta Terra

 

Sob uma embalagem visível de ilusão 

reside o vazio que infla e faz pressão 

expande sem razão o ar pelo pulmão 

um finito movimento cheio de paixão

 

E somos todos iguais nesse momento 

diferentes só em sonho e pensamento

mas ao ver que a divisão é só conceito

sabemos que essa confusão tem jeito

 

Prática e gratidão tornam acessível 

o infinito então impossível possível

faz crescer respeito e entendimento 

para viver com Paz e Conhecimento

CaMaSa

Tudo

Tudo

 

E por mais que eu conheça 

essa coisa tão simples dentro, 

a mente diz que não é nada.

 

Embora essa simplicidade 

mantenha todos e o universo,

questiono, critico e duvido.

 

Esse é um caminho solitário,

mais ninguém cabe ali comigo,

dentro é pleno de companhia.

 

Quanto mais nele se transita,

mais claro e compreensível fica,

sou grato por quem nele habita.

 

O coração diz que isso é tudo.

CaMaSa

Um conto de pré-Natal

Eteu não era ateu, acreditava em tudo, no Bem e no Mal. Foi assim desde que nasceu. Era praticamente um São Tomé às avessas. Ao contrário do santo, que de tudo duvidava, ele tinha Fé absoluta em tudo e todos. Acreditou quando sua mãe misturou água ao leite da mamadeira para que ele ficasse mais forte. Também acreditou quando ela cantarolava uma canção de ninar que contava como seu pai, um homem rico e poderoso, havia partido deixando-a à míngua, sem ter como se sustentar, nem ao filho. Não que ele tivesse escutado de sua mãe essas coisas. Isso quem lhe diziam eram as freiras do orfanato em que havia sido abandonado, com 4 dias de vida, dentro de uma lata de azeitonas de 20 litros, forrada com jornal. As freiras que o acolheram, acostumadas com a dureza e solidão do coração dos homens, souberam que somente um milagre faria vingar aquela fraca e minúscula plantinha neste mundo.

Mas vingou! Talvez porque ele cria em tudo que lhe diziam, talvez porque uma força maior assim o queria. Aceitava qualquer sobra de alimento que ali restasse, porque eram dezenas de bocas sempre famintas e subnutridas. Sobreviviam da caridade, que é sempre muito menor do que a necessidade. Mas Eteu cresceu aceitando o pouco, e aceitava os remédios também, pois lhe diziam que faria bem. Acreditava nas peças e brincadeiras que os mais velhos lhe pregavam, e nos contos de horror assustadores que lhe contavam antes de dormir. Ficava a noite toda de olhos arregalados, na vigília, pois haviam dito que dessa forma não seria atacado pelos monstros e assombrações. Assim, passou a infância na cama, entre doenças várias e muito, muito sono.

Ele acreditou em Papai Noel, no Coelho de Páscoa, no nascimento pela virgem, na cruz e na ressurreição. Mais tarde também acreditou em Krishna, Buda, Maomé, Olodumaré e todos os orixás. Foi devoto praticante de todas as correntes religiosas que lhe cruzaram o caminho. Mas também homem de ciência, fiel à exatidão dos cálculos e dos números, da comprobabilidade das leis físicas e químicas. Coexistiam dentro de si a fé religiosa e a razão científica, como esses sorvetes bicolores de casquinha, que misturam os dois sabores no céu da boca. A quem lhe questionasse sobre a falta de prática do seu modo de ser, respondia que ambas eram lados da mesma moeda, bastava crer.

Na escola primária acreditava em cada coisa que lhe ensinavam os professores, absorvendo tudo com grande interesse e alguma confusão. Misturava as matérias em sua cabeça e as respostas, na maior parte das vezes, não se encaixavam ao gabarito exigido. Ralhavam com ele e o chamavam de burro, o que ele cria plenamente, assim como havia momentos de intenso brilho, nos quais o elogiavam com nomes de sábio e gênio, que também aceitava naturalmente. Praticava esportes como quem defendia a própria vida, sempre com resultados muito aquém do esperado, mas acreditava piamente nos resultados das partidas de futebol, basquete ou vôlei, em que invariavelmente suas equipes eram derrotadas. Adquiriu paixões fanáticas por vários times de futebol, Palmeiras e Corinthians, Flamengo e Fluminense, Cruzeiro e Atlético, Inter e Grêmio. Todos eram fruto de sua intensa alegria e sofrimento. E quando lhe perguntavam como podia ele ser apaixonado por duas equipes adversárias, respondia que eram apenas dois lados da mesma moeda…

Para comprovar sua teoria, certa vez, numa ensolarada tarde de domingo, resolveu assistir a uma partida de futebol entre Corinthians e Palmeiras, no Pacaembú, homenageando os dois times vestindo uma camiseta, confeccionada por ele mesmo, metade verde e branca, metade preta e branca, com os escudos de cada agremiação bordados sobre a cor do adversário. Entrou no estádio com uma jaqueta azul, e quando estava bem  no meio da divisa entre as duas torcidas, tirou o abrigo revelando sua louca invenção. É um pouco difícil explicar o que aconteceu naquele dia. Pessoas de estômago fraco talvez não consigam acompanhar os detalhes. Então me limito a dizer que nunca antes na história deste país alguém apanhou tanto, de tanta gente! Até os guardas e seguranças aproveitaram para dar umas bordoadas. Era tanto safanão, tapa e pontapé, que nem a bola do jogo apanhou tanto naquele dia! Sobreviveu por milagre e saiu do hospital direto para a delegacia, onde depois de prestados todos os esclarecimentos, acreditou que era justa a prisão por 4 semanas que o delegado lhe condenava.

Na prisão, confiou em todos os prisioneiros, vendo-os completamente inocentes de suas acusações. Ninguém ali havia roubado, estuprado ou matado, sendo vítimas de uma estrutura social decadente e intolerante, que não respeitava os direitos básicos daqueles cidadãos. Organizou motins e greves, fez jejum em protesto, até que se cansaram dele e o puseram na rua. Não se deu por satisfeito e voltou para a delegacia exigindo explicações. O delegado de plantão pacientemente lhe explicou quem eram aquelas pessoas e porque estavam presos, e ele acreditou sem sombra de dúvida!

Teve namoradas, e sempre acreditou plenamente nelas. Amava-as com todo coração e confiava em tudo que lhe diziam. Uma vez, cheio de entusiasmo, resolveu fazer uma surpresa à namorada da vez, que passava férias na casa de uns tios no interior, indo ao seu encontro sem avisar. Saiu pela manhã, pegou o busão que seguiu pela estrada até o anoitecer. Lá chegando, encaminhou-se para o endereço informado e, no caminho,  passou pelo coreto da praça central. Viu a amada à beira do quiosque, com os braços enlaçados no pescoço de outro rapaz, olhando-o com os olhos apaixonados e os lábios entreabertos num sorriso convidativo. Eteu postou-se diante dos dois de braços cruzados, abalado mas crente de que havia uma explicação plausível.

Semi-abalado em sua fé amorosa, Eteu ouvia mudo as explicações da garota, muito justas porém! Aquilo era somente a demonstração do quanto ela o amava, sujeitando-se aos encantos de outro homem, mas resistindo, firme e fiel ao seu verdadeiro amor. Ele aceitou as explicações, e inclusive se recriminou por ter sido tão imprudente e desconfiado, coisa que não era de seu feitio. Casaram-se, estabeleceram-se ali mesmo na pequena cidade do interior, e viveram sempre às voltas com essas provas de amor que ela se impunha, sempre testando seu caráter e honra, envolvendo-se com diversos homens para conhecer seus limites, em respeito ao marido. Ele nunca duvidou da honestidade da esposa, apesar de que nenhum dos quatro filhos era levemente parecido com ele, sendo cada um, bem diferentes entre si. E ainda compreendeu quando ela lhe disse que estava indo embora com aquele outro homem, numa missão de caridade, pois este tinha poucos tempo de vida e precisava dela numa viagem ao redor do mundo em seu iate de 200 pés… 

Passado algum tempo, no entanto, sozinho, com um filho de um ano, um de dois, uma de três e outro de quatro, viu-se numa tremenda dificuldade para sobreviver e ganhar o sustento das crianças. Perdeu o emprego porque faltava muito cuidando dos filhos, e acreditou quando o patrão lhe disse que a empresa passava por um momento de crise e eram necessários ajustes e cortes. Não tinha parentes próximos e acreditou quando os amigos lhe disseram que estavam em situação muito pior que a dele. Os dias foram passando, as crianças foram emagrecendo até o ponto de não mais reclamar da fome, e ele tomou a decisão de voltar para a capital em busca de algum apoio. Aqui chegando, foi imediatamente para o antigo orfanato que, para sua surpresa, agora era um edifício alto e moderno, todo envidraçado. Lhe disseram que o orfanato fechara há muito tempo e ninguém tinha alguma referência das irmãs de caridade.

Era o ano de 1966. Eram tempos difíceis para todos e não havia oportunidades disponíveis para um pai com quatro filhos pequenos a tiracolo. As portas estavam fechadas e, quanto mais perambulava e o tempo passava, mais se aproximava do desespero. Havia saído de casa no início de janeiro, já estavam no fim de dezembro, e até o momento só havia conseguido restos e abrigos sob pontes. Eteu tinha trinta e poucos anos mas aparentava muito mais. Tinha o rosto encovado, a pele seca e enrugada de sofrimento, os cabelos desgrenhados tingiam-se precocemente de branco.  Naquele dia, no auge do desespero, deixou as crianças sob a guarda de uma colega de rua e saiu na busca insana por comida uma vez mais. Seguia crendo, firme em sua fé inabalável. Passou diante de uma casa e percebeu um pequeno garoto, não mais de 8 anos. Em suas mãos um imenso pedaço de torta ou o que fosse, cheirando o perfume de boa comida. Olhou com desejo, pensou em roubar, mas pediu. O menino olhou para ele surpreso e fez que não, balançando a cabeça.

Foi a gota d’água! De repente, viu-se sem fé. Em nada mais acreditava e não tinha mais o que fazer. Virou as costas e saiu andando sem rumo, até que viu-se sobre uma pequena ponte de madeira, sobre um rio de águas volumosas e raivosas. Chovia muito, e os pingos da chuva nas águas do rio o convidavam para um passeio sem volta pelo rio barrento adentro. Eteu estava decidido. 

Só um milagre poderia salvá-lo…

CaMaSa

Amigo

Amigo

 

Eu tenho um amigo que ninguém vê

é de carne e osso humor e simpatia

a mais pura luz sua presença irradia

só enxerga quem sabe não quem crê

 

Eu tenho um amigo que ninguém ouve

seu discurso explode em amor e poesia

fala como quem toca uma linda sinfonia

só escuta quem paz aos homens louve

 

Eu tenho um amigo que sinto em mim 

ensinando um caminho livre de perigo

nele encontro a paz é por ele que sigo

conheço uma grande aventura sem fim

 

Eu tenho um amigo que será teu amigo

sem nada em troca sem alguma exigência

e uma amizade sincera além da aparência 

porque ele foi é e existirá sempre contigo

CaMaSa

Na Lata

Na Lata

 

Esta é pra quem pensa que eu estou

falando de algodão doce e goiabada,

contando estorinha de conto de fada.

 

Estou cuspindo a verdade nua e crua,

mesmo sendo um infinito grão de nada,

sou cria de quem manda na coisa toda.

 

Sem ilusão, pois só estamos nesta Terra,

porque uma mulher foi amada, abençoada,

e essa coisa, sem pé nem cabeça, gerada.

 

Depois de um tempo, à força foi escorregada,

e tem início nossa jornada na primeira inalada,

pois não existe alguma outra porta de entrada.

 

E o segredo da curta e breve caminhada,

é compreender o que há em cada respirada,

ou seremos só adubo da terra, e mais nada.

CaMaSa

Cartas do Futuro

Daqui do futuro é possível, graças à evolução tecnológica, escrever para você! Vou tentar ilustrar o alto grau de civilidade que a humanidade alcançou, descrevendo as atividades banais do cotidiano dos habitantes deste belo planeta azul cinza. Realmente muita coisa mudou desde que fomos plantados por aqui e andávamos em harmonia com os demais bichos, quase nos confundindo com alguns. Sobreviver, buscando alimentação e abrigo, era extremamente braçal e cansativo, exigindo sujar as mãos de terra ou sangue. Além do que, grande parte das vezes, nós éramos o alimento! Felizmente o dom da inteligência colocou as coisas nos seus devidos lugares e hoje, daqui do futuro, colhemos os frutos da paz, harmonia e tranquilidade. Então, vou contar pra você como vive uma família comum nestes dias, sua rotina e as suas inter-relações com o todo, quando isso é necessário.

Basicamente vivemos em “células de sobrevivência”, que nada mais são do que abrigos super equipados com os mais variados recursos tecnológicos. Bem, uma pequena minoria é totalmente equipada. Algumas tem poucos equipamentos… outras não tem equipamento algum… E também tem muita gente que não tem “célula de sobrevivência” e sobrevive nas ruas mesmo. Mas, na média são construções seguras, amplas e arejadas, com grandes áreas envidraçadas e sistemas de “oxigenação termo-controladas”, garantindo conforto tanto nos dias quentes quanto nos dias mais frios. Na realidade, as construções abaixo da média, que são a grande maioria, enfrentam todo tipo de dificuldade, mas cada um se vira como pode… Muitas dessas “células” contam com sistemas de alimentação muito eficientes, onde se pode conseguir todo tipo de alimento nas “cabines frigo-reguláveis”, com carnes, verduras, legumes e frutas em profusão. Tudo pode ser levado aos “equipamentos de cocção alimentadores” para saciar os apetites mais diversos e refinados. Temos também “sistemas de descarte automáticos” para sobras e restos, que são levados para não sabemos bem aonde e se são utilizados para reaproveitamento matando a fome de algo ou alguém. Mas isso não vem ao caso. O importante é que vocês percebam o quanto evoluímos e como tudo funciona bem.

Eventualmente saímos de nossa “célula de sobrevivência” para alguma atividade externa. Para isso utilizamos “cápsulas de transporte” sofisticadíssimas, verdadeiros receptáculos de metal e vidro, que nos transportam através de um engenhoso “sistema de flutuação a ar vaso-circular-comprimido de borracha”, pelas ruas e avenidas perfeitamente calçadas, iluminadas e sinalizadas. Praticamente corremos sentados, sem tocar o chão, confortavelmente acomodados em poltronas de couro legítimo, observando, de dentro de um ambiente climatizado e com música ambiente, a paisagem externa com eventuais cenas de pessoas, aparentemente, com um gosto estranho para se vestir e asseio duvidoso, andando a pé, o que é totalmente desaconselhável, já que para nos exercitar contamos com as “esteiras eletrônicas de atividade corporal”. Cada um sabe de si, mas como eu ia dizendo, temos também “cápsulas de transporte” coletivos, e até subterrâneos, onde, dependendo do grau de civilização do país, pode ser até chique utilizar. Existem também “cápsulas” aéreas e marítimas, de todos os tamanhos e capacidades, transportando milhões de pessoas de um lado para o outro, gerando uma quantidade gigantesca de monóxido de carbono, contribuindo para esse belo tom azul-acinzentado do nosso planeta. Existem variações utilizando eletricidade, hidrogênio e outras alternativas não-poluentes, mas que não são economicamente justificáveis para uso em grande escala.

Assim nos locomovemos de uma “célula de sobrevivência” para outra, ou para as diversas “estruturas sócio-psico-organizadas” de trabalho, saúde, educação e consumo ou lazer disponíveis. 

As “estruturas de saúde” são grandes e eficientes espaços para a solução de problemas aflitivos da composição biológica humana. Bem… alguns são muito eficientes, frequentados por aqueles que ocupam certos cargos e funções extremamente reduzidos e específicos. A grande maioria no entanto ainda utiliza atendimentos baseados em orações, fé e esperança. Há centros especializados em atendimento animal, com tratamento muito mais humanizado do que para a grande maioria dos seres humanos!

Já as “estruturas de educação” descrevo com o maior orgulho! Nelas são depositadas todas as crianças que aos poucos vão deixando de ser fofas e começam a falar, gritar e reclamar de tudo, deixando seus pais malucos. Então passam a fazer tudo isso, em conjunto com diversas outras da mesma idade, em salas hermeticamente fechadas, aprisionadas e quase controladas por profissionais altamente gabaritados, treinados para conviver em meio à algazarra e balbúrdia. Pouco a pouco as crianças vão evoluindo, passando pela encantadora fase da agressividade juvenil, com foco principal nos professores, até chegar aos grandes “centros universais de pré-adultologia”, onde é estimulado fortemente a prática de contestação estéril, de resultados constantes e improdutivos, e as experimentações, constantes e improdutivas,  de todas as substâncias psico-álcool-viajandólica disponíveis, possíveis e inimagináveis. Terminam essa fase prontos para enfrentar a vida adulta, comandando os funcionários do papai, fazendo todo tipo de arte e abreviando vidas. Prontos para o trabalho! Muitos acabam não oferecendo benefício algum para a sociedade e seguem a carreira política.

As “estruturas de trabalho” trazem uma solução muito inventiva. Todos os bens e serviços foram transformados em mercadorias, que são trocadas entre todos de acordo com a necessidade de cada um. Usa-se um engenhoso sistema de pagamentos através de valores numéricos proporcionais à quantidade de horas consumidas na produção e ao valor intrínseco do produto ou serviço em si. Os valores são transacionados por uma terceira estrutura que cobra uma taxa variável em cada transação. Existem diversas estruturas, públicas ou privadas, que também cobram taxas sobre as transações, de tal maneira que aquele que tem alguma coisa para receber, acaba recebendo uma porcentagem muito menor do que deveria realmente receber. Desse modo, cria-se uma grande ilusão de que quem trabalha acha que está trabalhando e quem paga pensa que está pagando, e tudo vai funcionando de tal forma que a riqueza segue um fluxo constante de concentração. Desculpe, esse tema deve ser muito complicado para você que vive no passado. Não era minha intenção! Vamos voltar para coisas mais simples.

As “estruturas de oxigenação”, por exemplo, são espaços amplos, com muitas áreas verdes e espaços para esporte e lazer. Saímos de nossa “célula de sobrevivência” com nossa “cápsula de transporte”, nos conduzimos até o “abrigo estacionário de cápsulas” e praticamos a “caminhada passo a passo em esteira” sem esteira. O que é extremamente saudável e revigorante! Evidentemente existem muitas outras “estruturas de oxigenação” gratuitas, sem manutenção e segurança, onde a grande maioria da população corre o risco de perder a vida, ou algo muito pior, como o “APP – Aparelho Particular Pessoal” de comunicação.

Assim é o futuro: uma intensa e contínua inter-relação entre “células de sobrevivências”, “cápsulas de transportes” e “estruturas sócio-psico-organizadas”, gerando o atendimento das necessidades animais, racionais e irracionais, desse resquício de projeto divino chamado Ser humano.

Espero ter contribuído de alguma forma, oferecendo uma visão ampla sobre este que tem sido motivo de dúvidas e apreensão de muitas pessoas: o Futuro. Infelizmente, ainda não encontramos uma maneira de receber um feedback das gerações passadas, que se encontram na pré-história da “Era da Comunicação”, ainda engatinhando nesse processo. Felizmente algumas tentativas, aqui e acolá, tem chegado até nós através de envios de ícones rudimentares, praticamente pictogramas pré-históricos representados por um Positivo, um Coração ou Palmas. Eventualmente recebemos uma expressão ou outra, como um “Lindo”, “Muito Bom” ou “Parabéns”! Mas raríssimos são aqueles que arriscam compor uma frase completa ou uma análise mais estruturada.

Na real, quando menos se espera, você está no futuro, pois ele, assim como o passado, está em você. De qualquer maneira, por trás de toda a evolução e tecnologia, avanços ou retrocessos, existe a base de tudo, em pele, carne, sangue e ossos, entendimento e essência. E deve ser este o objetivo principal de cada um: a consciência da verdadeira felicidade em seus corações, infinita e real. Esse é o poder das pessoas. Só assim podemos conseguir as mudanças. Pois o futuro é somente o resultado de um presente fruto de um passado.

CaMaSa

Imagem: MAUROCOR

Escuto

Escuto

 

E se um pedido apenas fosse concedido,

certeza, não seria ouro, incenso ou mirra.

Saber escutar, somente isso eu quereria,

é a base, o primeiro passo da sabedoria.

 

Quando o amante não escuta sua amada,

a paixão se vai, não está mais enamorada.

Quando o pai não ouve o que diz seu filho,

este sai da linha, perde o caminho, o trilho.

 

Quando um rei não sente o clamor do povo,

perde o respeito e reina sem ser obedecido.

Quando o povo não entende o que lhe é dito,

nada mais é bendito, tudo torna-se maldito.

 

Então na doce calma do silêncio da alma,

ouço um sussurro suave vindo do infinito.

Presto atenção e agora ouço a voz clara,

falar a mais pura verdade na minha cara.

CaMaSa

Mágico

Mágico

 

Sou mágico mas não muito bom,

ilusionista comum, com um só dom.

Não tenho varinha cartola coelho,

só um simples truque, muito velho.

 

Iludo com letras palavras e frases,

conto estórias com diversas fases.

Distraio a atenção daquele que lê

a mensagem, que sente e não vê.

 

Te arranco uns segundos da toca,

quebro a rotina que prende sufoca.

Lembro do ser verdadeiro e amado

amando você, dentro, ao seu lado.

 

Pois quanto mais dele se aproxima,

mais a vida se completa numa rima,

sem as dúvidas, tristeza ou lamento,

mas paz, amor, luz e conhecimento.

CaMaSa

Os Assaltos – Parte 4

Enquanto Baruch dava seu último suspiro, Ruby deixava a cozinha e a despensa vazias para trás. Estavam tão abandonadas que nem os ratos ainda permaneciam por lá. Comida e bebida não frequentavam aqueles aposentos há muito tempo! Andou lentamente por toda sala de estar, cheia de sofás puídos, mesas empoeiradas e abajures mortos, deixando pegadas na poeira suja acumulada no chão. Subiu lentamente a grande escada principal, iluminada eventualmente por raios e relâmpagos cada vez mais intensos.

Mané havia deixado Tanaka de guarda no topo da escada caracol e tateava as paredes procurando por Genaro. Chegou ao grande parapeito circular e o percorreu até chegar ao lado oposto da escada. Encontrou uma reentrância na parede onde havia uma pia de pedra com metais dourados. De cada lado dessa bancada havia  banheiros com vasos sanitários e portas decoradas com figuras, femininas e masculinas, de madrepérola. Experimentou a torneira que cuspiu uma água fria e de gosto ruim. Matou a sede assim mesmo e enquanto limpava a boca na manga da camisa, sentiu uma fedentina pavorosa de esgoto. Se perguntou se viria do ralo da pia, quando ouviu um gemido assustador vindo de uma das portas. Arrepiou-se de pavor e, mais por medo do que por coragem, perguntou:

– Quem está aí?

– Uma alma, respondeu Zé, de olhos arregalados, todo cagado. 

– Que queres? Pelo fedor de enxofre vens dos quintos dos infernos. Devolveu o portuga de pulso acelerado.

– Sou de Garanhuns, seu lazarento. Poucos são os que me desafiaram e sobreviveram pra contar! Revidou o Zé, já pensando em pão quente com manteiga, um pingado e uma salada de frutas com groselha e aguardente.

– Pois vá-te daqui, infeliz! Aqui tens um cristão de dois dobrados, protegido da Virgem da Lata de Azeite e de São Bacalhau Salgado.

Aquilo atingiu Zé como um soco no estômago. Ele não teve outra alternativa senão lançar uma longa e potente bomba de gás. Mané atingido no nariz, saiu de lá cambaleante, em busca de ar puro. O outro aproveitou a oportunidade e abandonou o pobre vaso de porcelana à própria, e lastimável, sorte.

Nesse exato momento, sem que percebesse a presença dos dois homens, Tanaka chegava ao lado esquerdo do balcão, notando a ampla escada de madeira que se esparramava para baixo. Andou no escuro até o centro dela, no mesmo instante em que Ruby vinha do lado oposto em sua direção. Quando estavam a menos de meio metro um do outro, quase trocando suas respirações, um raio potentíssimo iluminou o ambiente, com clareza prateada,  por três longos, e quase eternos, segundos. Perceberam-se, viram-se, olharam-se e amaram-se intensamente como ninguém antes havia se amado. A magia da tempestade, a cega paixão dos olhos de vidro, a carência aguda de toda uma vida de incertezas, juntaram-se, tramaram e arrebentaram as máscaras e os mitos. Nunca haviam visto rostos tão ávidos de amor, e tão bonitos. Ruby viu-se menina inocente, nos seus 13 anos, diante de um príncipe. Tanaka viu dois olhos azuis, um normal e um de vidro, assim como ele. O tempo parou, congelou-os naquela paixão infinita que dura o espaço de tempo entre o inspirar e o expirar do ar nos pulmões.

Alheios a tanto amor e paixão, Zé e Mané, por razões próprias, deixavam o lugar em que estavam o mais rapidamente possível. Na pressa, nosso companheiro Zé pisou no rabo de um gato preto e magro que dormia o sono dos justos. O bichano, pela dor e pelo susto, soltou um grito apavorante, de gelar os ossos, que ao Mané pareceu Belzebu tomando um chute no saco, e ao Zé, a sirene de uma rádio patrulha. Correram 100 metros rasos em 8 segundos, cada um percorrendo o parapeito circular em direções opostas. Quando estavam a menos de 2 metros de se chocarem, bateram nas costas de dois corpos em transe, Ruby e Tanaka, que estavam bem no meio da escada. Os dois amantes chocaram-se tão violentamente que, com o impacto, os olhos de vidro saltaram das órbitas e desceram a escada, quicando os degraus. Tec, Tec… Tec Tec, Tec Tec… Tec Tec Tec, Tec Tec Tec… até rolarem no piso lá embaixo, parando cada um em um lugar. 

Apavorados e envergonhados, os dois enamorados desceram a escada desesperados, tropeçaram e rolaram até o chão. Ruby engatinhava procurando a bola de vidro com as mãos, enquanto Tanaka jazia desacordado nos últimos degraus. Quando ela encontrou um olho, foi agarrada pelos braços por Alfa Berto e Zé, que gritavam alucinados:

– Corre Ruby! A casa caiu… É a polícia. Cooorre!

Ela tentou resistir, mas o medo da prisão e a força dos dois homens, foram muito maiores. Deixou-se levar até o DKW estacionado diante da mansão e aos poucos deixou-se controlar pela razão.

Genaro deixou o aposento do falecido Baruch e, com a lamparina iluminando o caminho, encontrou Mané tentando reanimar o amigo japonês. Tanaka acordou com o Genaro explicando o que o ex-patrão tinha dito e o que havia acontecido, e calmamente saíram da casa, já noite alta, rumo ao próximo dia. 

Cada um dos seis tomou uma direção na vida…

Genaro tornou-se um pequeno empresário, sustentou algumas famílias de funcionários driblando as dificuldades da compra e venda, dos impostos altos e lucros baixos. Juntou em torno de si filhos, netos e bisnetos, até que amanheceu um dia em sua cama duro e gelado, no rosto uma expressão de missão cumprida.

Zé deixou o emprego de servente de pedreiro e conseguiu uma vaga na indústria automobilística. Com as sementes teóricas plantadas pelo companheiro Alfa Berto na cabeça, vinculou-se ao movimento sindical e evoluiu, chegando à liderança de uma importante categoria de trabalhadores, reivindicando melhores condições de trabalho e uma sociedade mais justa. Mas não assumiu a responsabilidade por nada.

Mané vendeu sua parte na sociedade para o amigo e voltou para a terrinha, onde o aguardavam sua mulher e seu filho, seu sogro e sogra, com festa e terno de casamento prontos. Fez mais alguns filhos, investiu e prosperou com o capital recebido, plantando oliveiras e parreiras, sonhando sempre com um Brasil que deixou para trás.

Alfa Berto voltou a ser simplesmente Alberto, entrou para a faculdade de Administração de Empresas e assumiu os negócios da família. Levou os negócios do pai a um patamar muito elevado, formou cartéis, comprou políticos, juízes e presidentes. Construiu um império de corrupção multinacional e estádios de futebol, entre outras obras monumentais.

Ruby foi presa numa batida rotineira. Identificada como subversiva, foi deportada junto com outros conterrâneos para a Argentina. Lá enfrentou a violência de uma ditadura implacável que não mascarava a situação de conflito interno, declarando a guerra abertamente aos inimigos. Alguns meses depois de confinamento em porões insalubres, foi convidada para um passeio de avião. A 4.000 pés de altura, com a porta da aeronave aberta, pediu ao algoz um último desejo. Que lhe tirassem o capuz da cabeça. Foi lançada para um vôo solitário na noite escura e gelada, com as mãos firmemente amarradas às costas. Abriu os olhos, um azul e um negro de vidro, para admirar a paisagem, com a coragem infinita dos que acreditam num mundo mais livre e justo, e mergulhou sem volta no mar profundo.

Tanaka também pegou sua parte da sociedade e caiu no mundo à procura de sua amada. Perguntava a todos se haviam visto uma deusa de olhos azuis que havia roubado seu olhar e seu coração. Começou a pichar mensagens em postes e muros, placas e monumentos, até que foi preso e interrogado. Consideraram suas frases desconexas subversivas e o prenderam sem direito à defesa, por questões de segurança nacional. Sofreu, apanhou, foi afogado em tambores de água suja, pendurado em pau de arara e tomou choque nos testículos. Nada confessou porque nada tinha para confessar, somente sua paixão pela moça da mansão. Cansaram-se dele e o transferiram para o manicômio, onde sofreu, apanhou e foi mais maltratado e dopado. Passado algum tempo, o puseram na rua, mais confuso e doente do que quando entrou. Foi socorrido por um parente muito idoso, um tio que morreu lhe deixando ferramentas de marcenaria da mais alta qualidade. Serrotes, martelos, formões, chaves-de-fenda e plainas de precisão. Um dia bateu à porta da oficina do meu pai que o aceitou prontamente. Trabalhava a madeira com perfeição, mas tinha o hábito de escrever em pedaços de madeira suas mensagens que ninguém compreendia. Não conversava com ninguém e se alguém tentasse uma aproximação era repelido com violência verbal. Falava somente o necessário comigo, quando aos 12 anos eu fazia o pagamento dos funcionários. Sentava-se diante de mim, eu apresentava as contas e, se tudo estivesse do seu agrado, repetia a história da linda moça que roubara seu olho numa noite sem fim.

* * *

Dois meses depois da morte de Baruch, um grupo de agentes da C.I.B. – Central de Inteligência Brasileira, fora designado para uma missão numa mansão abandonada na Avenida Paulista. Havia suspeitas de movimento terrorista no local e o proprietário, um judeu bilionário, havia desaparecido deixando toda sua fortuna para instituições de caridade. Invadiram o local arrombando a porta principal e deram início às buscas. Chegaram a um pequeno aposento, onde jazia um corpo em decomposição, cheirando muito mal e esparramando fluidos já ressecados pelo chão.

– É sempre assim. A gente sempre chega quando a merda já aconteceu, disse o sargento Moura.

– É… a gente que vai ter que limpar isso daí… respondeu o Cabo Naro.

CaMaSa

Ensina

Ensina

 

Quem lê o que escrevo 

compreende e se fascina

nem imagina como é bom 

aquele que me ensina

 

É o sol chovendo luz

sobre uma tela escura

em cima dela reproduz

cores de beleza pura

 

É a paz em movimento 

ele é o poeta e a poesia 

retira de um só momento 

a lição que eu já sabia

 

É o aluno e o professor

do que importa nesta vida

mostra o verdadeiro amor

até para quem duvida

CaMaSa

Processo

Processo

 

Cada um tem o seu caminho 

desde sempre desde o ninho 

é um processo muito incrível 

único pessoal intransferível

 

Cada um veste a sua pele

fina sensível ao que se rele

e abaixo dela vive o inverso

de todo o resto do universo

 

Cada um aprende de alguém

aquilo que mais lhe convém

tem quem ensina a perfeição

a experiência da paz em ação

CaMaSa