Ana
A jovem Ana tinha um sonho. Uma casa cheia de crianças rechonchudas e coradas. Nasceu para ser mãe e para isso era necessário encontrar a pessoa certa. Sua mãe criou 6 filhos, a avó 12 e a bisavó 18! Gerações de mães, no sentido pleno da palavra, totalmente dedicadas aos filhos e ao lar. Essa equação necessita de um bom marido, de muitos predicados e poucos vícios. Ela sabia que não era tarefa fácil, mas nada a impediria de tentar. Poupou-se de namoricos e aventuras inconsequentes, preservando-se para aquele que se encaixaria em seu sonho tão bem quanto nela. Não faltaram pretendentes, pois ela tinha seus dotes. Magrela de menina, tomou corpo e forma já na adolescência, projetando a futura parideira, uma fêmea preparada para os futuros rebentos. Os cabelos eram castanhos tão claros que douravam à luz do Sol. O olhar era sereno, profundo, como o tom castanho, quase negros, dos seus olhos. Nenhum detalhe lhe escapava quando analisava um possível pretendente. O jeito de falar, de rir, de tossir ou de piscar. Observava o andar aproximando ou afastando, o alinhamento dos ombros, o pender da cabeça. Como bebiam, comiam, lambiam o sorvete ou cuspiam o caroço da mexerica. Não lhe importava a beleza, o físico ou a simpatia. Esquadrinhava por inteiro, dissecando cada um deles como um sapo de laboratório. Sabia que encontraria.
Passava os dias entre os estudos e o aprendizado doméstico. Cozer e coser, limpar e varrer, cerzir e servir eram tão importantes quanto somar e dividir, subtrair e multiplicar. Ia aos bailes e festas por insistência da mãe das irmãs e, quando ia, nunca dançava, apenas observava a elegância, o ritmo e a malemolência. Tudo era indício de um possível candidato, escondido num passo, numa mesura, num sorriso de canto do olho ou da boca. Certa vez pensou ter encontrado. O rapaz aproximou-se com delicadeza e num gesto ousado estendeu a mão em sua direção, suplicante, para uma dança. Ana surpreendeu a todos, esticando a mão na direção do moço, levantando-se para dançar. A bandinha local deu uma engasgada na melodia mas retomou apressadamente o ritmo para não deixar passar a oportunidade. O casal girou pelo salão, o rapaz dançava bem, circulando entre os demais dançarinos, postos ali apenas para compor o cenário. Quando a música parou, no exato segundo que durou a entrada da próxima, ela deu as costas ao moço e voltou para seu lugar. As irmãs, primas e amigas a rodearam, mortas de curiosidade. “O coração não bateu mais forte”, ela disse, e dela não tiraram mais nada. Esse era o sinal que lhe daria a certeza. Um pulsar mais intenso, o sangue correndo mais rápido, fervendo, a falta de ar e o arrebatamento. Nada menos que isso a faria aceitar alguém com quem compartilhar sua carne, sua alma, sua vida.
Certa tarde de verão, refrescando-se com as irmãs num sorvete de limão na pracinha da cidade, sentiu através de uma brisa calorenta um perfume adocicado, quase enjoado, à sua esquerda. Deparou-se com uma cigana, sem saber porque pensou assim, já que a mulher trajava elegantemente um tayer verde-água justíssimo, com uma camisa de seda branca e um lenço num tom verde escuro correndo pelo pescoço. Bateu os olhos nos sapatos de bico fino, combinados com a bolsinha a tiracolo. Tinha os cabelos loiros jogados para trás, sem nenhum fio solto. Lembrou Catherine Deneuve! Por um momento pensou estar diante dela. A mulher dirigiu-se a ela, ignorando o movimento da sorveteria ao redor. Tomada pelo encantamento, Ana estendeu-lhe a mão num gesto cortês e amigável. A mulher rejeitou sua mão direita e tomou a esquerda, girando a palma para cima. Estudou-a por alguns instantes, riscou com a unha bem esmaltada vermelho carmim as linhas ainda levemente marcadas pelo giro do tempo e pôs-se a discorrer sobre seu futuro. Via-a longe dali, na capital, trabalhando em um grande magazine. Conheceria o grande amor da sua vida num momento de muita dor e sofrimento, mas, fez uma longa pausa soltando um suspiro que congelou o ar e arrepiou sua espinha. Ana sentiu frio, muito frio, enquanto a mulher atirava sobre si um conselho: – Melhor não ter filhos… Tomou o sorvete das mãos de Ana, virou-se e desapareceu na próxima esquina.
Ana precisou de algum tempo para voltar à Terra. Suas irmãs disparavam uma saraivada de perguntas sem respostas. Não tinha certeza se aquilo havia acontecido ou não. As irmãs falavam da velha cigana, de cabelos brancos e dentes dourados, vestida de andrajos coloridos que havia roubado seu sorvete. Ela foi se recompondo aos poucos e achou melhor não contestar, guardando aquele breve delírio em segredo, com suas incertezas e dúvidas. Nunca falou a ninguém sobre o que ocorrera, mas manteve-se alerta, para confirmar, ao longo de sua vida, a veracidade dos prognósticos. Ansiou pelos aspectos positivos e temeu pelos negativos, rechaçando-os de tal maneira que quase os apagava da memória. Sem êxito! Eles voltavam em sonhos e pesadelos, no meio do nada, ao longo do cotidiano.
Seja como for, deu-se o momento de deixar a casa dos pais, as irmãs, primas e amigas, deixando para trás a cidadezinha que cabia na palma da mão. Partiu para São Paulo, capital, para ajudar uma tia nos serviços da casa, ampliar os estudos e conseguir um emprego. Sobrou muito pouco para estudos e emprego, já que o trabalho doméstico é infinito numa casa onde moravam os tios e seis primos, todos em idade escolar. Estava decidida a suportar a lida, queria vencer na cidade grande, sem voltar para trás. No fundo, tinha esperança de encontrar o seu grande amor, como lhe disse a tal mulher cigana, marcando a ferro e fogo com suas doces palavras de ilusão. Suportou mais desaforos e golpes do que jamais imaginara, amadurecendo para a vida, como todo mundo, certamente, tem que crescer. Entre as poucas folgas do lavar a louça, lavar os lençóis, passar as roupas, esfregar o chão e fazer a comida, conheceu a vizinha da casa ao lado. A dona Benta tinha uma filha, Chiquinha, que trabalhava no Mappin, no centro da cidade. Ficou sabendo por elas que havia uma vaga aberta para moças, no departamento de cosméticos. Ana entusiasmou-se com a possibilidade e perguntou aos tios se poderia tentar essa colocação? Disseram-lhe que sim, mas que se tivesse que trabalhar em período integral, deveria colaborar com as despesas da casa e cuidar dos afazeres domésticos durante a noite para continuar morando ali. Ana concordou sem nem pensar e foi com Chiquinha no dia seguinte ao encontro do seu primeiro emprego.
Ana acordou com uma fisgada no pé, mais precisamente no dedão do pé direito. Durante vários dias correu pra todo lado naquela casa varrendo, esfregando e faxinando. Usou o tempo todo um tamanco velho, duro e apertado, encavalando os dedos e encravando as unhas. Viu seu dedo inchado, com a borda da unha socada na carne, forçando uma ferida. Não teve tempo para si. Correu para a cozinha e preparou o café da família. Não queria dar motivo de arrependimento aos tios, que podiam encontrar alguma razão para que ela não fosse à entrevista de emprego. Ferveu o leite, coou o café, fritou os ovos e descascou as frutas. Cortou o pão em fatias e passou a manteiga. Esperou ansiosa todos terminarem para lavar a louça e guardar os talheres. Terminou tudo num piscar de olhos e correu para o seu quartinho. Tirou o vestido novo da mala e vestiu-se rapidamente. Calçou os sapatos de salto alto e sentiu que eles haviam encolhido. Mais provavelmente seus pés haviam inchado. Deixou de lado o incômodo e foi ao encontro da vizinha que a aguardava no portão. Andou, meio que manquitolando, até o ponto de ônibus e subiram no primeiro coletivo, em direção ao centro. Lá chegando, foi apresentada ao gerente que fez uma dúzia de perguntas e lhe deu algumas folhas de formulário para preencher com seus dados. Já estava empregada! Passou o dia correndo atrás de uma vendedora veterana da casa que lhe deu todos os tipos de incumbências. Subiu e desceu escadas, carregou pacotes, roupas, tecidos, linhas e fitas. Não teve tempo para um copo d’água e, quando terminou o dia, estava completamente destruída e desfigurada. Foi ao toilete e tirou os sapatos dos pés ardentes. O inchaço da unha era agora uma bola enorme de pus, prestes a se romper. Doía de olhar. Calçou cuidadosamente os sapatos porque não poderia voltar descalça para casa. Saiu da loja vagarosamente, com vontade de chorar, e buscou o ponto de ônibus para retornar.
Deixou passar o primeiro, o segundo e o terceiro. Era hora do rush e todos voltavam para casa no mesmo horário. Os coletivos estavam lotados e achou melhor aguardar um mais vazio. Subiu no próximo que estava bem mais vazio, mas sem lugar para sentar. Manteve-se de pé, temerosa, segurando firmemente nos apoios dos bancos, uma mão de cada lado. Duas paradas depois viu subir um rapaz alto e desengonçado, mas simpático. Esqueceu-se das suas dificuldades e dores podálicas e pôs-se a esquadrinhar o rapaz com suas habilidades costumeiras. Ele devia ser pelo menos um palmo mais alto que ela, magro mas forte, cabelos castanhos e olhos azuis assustados. Sem dúvida por conta dos dois engradados de ovos que carregava, um em cada mão. Absorvida pelo inusitado da cena, acordou do devaneio com o forte solavanco que o motorista dera no veículo ao arrancar do ponto. Ela agarrou-se no susto aos bancos, de frente para o corredor, um pé à frente e o outro, da unha encravada, para trás. Quando abriu os olhos viu dúzias de ovos bailando no ar em câmera lenta, com o rapaz sendo arremessado ao encontro dela, sem freio. Parou nela, encaixado em sua maciez juvenil, rosada e perfumada. Ficaram por 3 segundos colados, até que um raio de dor lancinante e insuportável avisou ao cérebro dela que aquele vulcabrás 43 bico largo estava pousado sobre seu dedão do pé! Ana desmaiou nos braços de Cleto e, quando acordou, não sentia mais dor alguma.
CaMaSa