Anjos
Todo mundo tem um anjo. Até os que não acreditam! O problema é que ninguém os vê. Quer dizer, ninguém não, seria muita pretensão afirmar que só eu vejo. Alguns poucos sabem sim da existência deles e mais ou menos como a coisa funciona. Eu mesmo descobri meio que por acaso, juntando algumas peças de entendimento aqui e acolá. O fato é que cada um tem o seu e cada um deles cumpre mais ou menos a função de anjo a que foi destinado. E eu vou explicar bem didaticamente todo processo de formação desses seres especialíssimos, desmistificando alguns conceitos milenares arraigados na cultura popular.
Pra começo de conversa anjo tem sexo sim. Tem anjo mulher, homem, lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e transgênero. Apesar desse esclarecimento, vou me referir sempre a esses seres iluminados como anjo, porque anja é realmente uma coisa meio esquisita que bate estranho no ouvido. Existem também anjos de todas as etnias possíveis e imagináveis, baseadas em detalhes específicos de cada anjo, como alguma das bilhões de trilhões de variações na forma física ou cor de pele, sendo que jamais, em tempo algum, existiu um anjo absolutamente igual ao outro. Essa é uma regra absolutamente divina, inquebrantável como qualquer outra Lei da Física, como a Lei da Gravidade ou “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço”. Pensando bem, esta última, como qualquer outra, tem sua exceção, já que por um breve período eu e minha mãe ocupamos o mesmo lugar no espaço!
Durante a gravidez, enquanto eu não respirava e era alimentado pelo cordão umbilical, usei o anjo da minha mãe, que aliás era muito forte e poderosa, sinceramente quase um Arcanjo de tanta vontade e determinação para enfrentar os obstáculos que vinham em sua direção. Esteve presente noite e dia durante os nove meses sem descansar um segundo sequer. Tinha sempre as melhores sugestões e conselhos para minha mãe, que sempre aceitava sem pestanejar, colhendo os melhores resultados menos para si própria e mais para mim. Não que eu entendesse o que falavam, mas conversavam muito entre si, a maior parte do tempo em forma de canções e orações. Até que de repente a água da minha banheira saiu pelo ralo e eu me vi consideravelmente desconfortável e incomodado lá dentro. Um instinto de sobrevivência me fez buscar uma saída e a única viável me pareceu ser bem estreita e justa! Para complicar o tal do cordão enrolou-se no meu pescoço, criando uma sensação inédita de que faltava alguma coisa bem importante para o jogo da vida continuar pra mim…
Seja pela pressão física que me fez sentir como três quilos de contra-filé passando pelo moedor de carne, ou o desgaste emocional pela expulsão da minha toca acolhedora, me percebi atordoado, exausto e sem forças neste mundo, cercado de mãos e olhos apreensivos, que aguardavam ansiosamente algum tipo de reação da minha parte. Passados alguns segundos, um sujeito grande e mal encarado me ergueu pelos pés, de ponta cabeça, dando um ardente tapa na minha bunda! O choque, a dor e a surpresa me fizeram explodir num grito de choro e revolta, fazendo passar por mim, através do nariz e da boca, um fluxo absurdamente congelante de ar em direção aos meus pulmões. Encantando e intoxicado pelo prazer da nova substância, tentei segurar dentro de mim o mais que pude mas explodiu num fluxo quente e contrário, para fora, deixando um enorme vazio em mim.
Foi nesse momento, petrificado e sem saber o que fazer a seguir, que vi meu anjo pela primeira vez! Ele estava lá, parado, mais aturdido que eu. Não era aquela luminosidade branca brilhante das pinturas clássicas, nem tinha aquele par de asas que a gente sabe que todo anjo tem, mas algo me dizia que era um… e era o meu! Estava pelado e ensopado de uma gosma qualquer, tinha meu tamanho e a aparência de um bebê recém-nascido, com aquela típica carinha de joelho para não diferenciar alface de acelga. Então aconteceu! Ele falou comigo. Telepaticamente, como fazem os anjos, mas falou. Disse: – Ô burro! Inspira. E eu sorvi o ar novamente… e soltei… e inspirei novamente… sucessivamente. Foi bom. Muito bom!
Não nos separamos mais. Quero dizer, ele sempre esteve aí para mim nos momentos mais marcantes. Teve aquela vez que ele me disse pra não roubar aquela moeda da minha mãe pra tomar sorvete, mas eu roubei e tomei uma baita de uma surra! Ele rolava de rir enquanto eu rolava de dor de um lado pro outro. Teve também aquela outra vez, na aula de Educação Física do colégio Firmino de Proença, na Mooca, quando o professor Normando, um ex-militar aposentado, rígido e disciplinador, pediu aos alunos para correr até um colchão colocado no meio da quadra, girar sobre o corpo dando uma cambalhota e sair rapidamente pelo outro lado; na minha vez, imaginei fingir um tropeção ao chegar próximo do alvo e simular uma queda de cara no colchão. Meu anjo pediu aflito: Não faça isso, por favor! A classe explodiu em gritos e gargalhadas e o professor apoplético e vermelho como um pimentão me deu uma suspensão!
Mas teve momentos bem dramáticos em que a influência dele foi decisiva para minha salvação e sobrevivência. Quando o clube do Juventus foi construído no Alto da Mooca, no início dos anos 1960, seu entorno era de muito mato e área verde. Imobiliárias se instalaram na região para negociar terrenos para construção de casas onde ainda não haviam ruas e qualquer tipo de saneamento. Meus pais conseguiram comprar um pequeno lote na face oeste do clube, que na época era cercado por uma cerca de arame, com 2 metros de altura. Nessa cerca sempre faziam cortes que funcionavam como passagem para quem não era associado ao clube ou para quem não queria dar toda a volta para entrar pela portaria principal no lado leste. Esse era o meu caso. Eu tinha uns 12 anos na época e naquela manhã, tomei um café com leite e comi um pão com manteiga e fui para as piscinas do clube passando pelo buraco escondido pelo mato alto. Atravessei o campo oficial de futebol, contornei as piscinas pela arquibancada e fui para o vestiário. Me troquei rapidamente e entrei no parque aquático pela roleta, lavando os pés no tanque de água com cândida.
O dia era bem nublado, ameaçando uma chuva fraca e intermitente a qualquer momento. A semana toda havia feito um calor infernal e eu havia sonhado muito com a água fresca e azul durante as intermináveis aulas de geografia e matemática. Dei o primeiro salto de cabeça na água escurecida pelo céu cinzento e frio, nadei até a escada e corri para o segundo salto. Repeti o processo e pulei mais uma vez, agora sem entusiasmo. Subi a escada de tubos de metal polido e já me preparava para saltar novamente quando meu amigo anjo postou-se diante de mim dizendo: – Não pule! Hesitei. Olhei para meus pés, que pareciam estar roxos e enrugados, como se estivessem esvaídos de sangue e vida. Dobrei os joelhos e me deitei na borda da piscina olímpica, olhando para a água, o prédio de pastilhas brancas da administração do outro lado e os apartamentos fora do clube, mais atrás. Tudo à minha volta pareceu rodar como num carrossel, com os prédios altos girando a uma velocidade cada vez maior. Levantei zonzo e trôpego sai do conjunto, descendo as escadas em direção ao posto médico. Não tive tempo. Vomitei o café da manhã envergonhado. Não havia ninguém por perto, só meu anjo apoiando minha cabeça.
Me senti melhor e voltei para casa refletindo sobre o que havia ocorrido e o que teria acontecido se ele não tivesse me aconselhado a não saltar novamente. Certamente eu teria passado mal dentro da piscina, engoliria muita água e poderia ter passado muito tempo até que alguém percebesse que eu estava me afogando. Apesar de intenso, confesso que a lição não foi suficiente para que eu aprendesse e entrasse em muitas situações perigosas ao longo de toda juventude principalmente. Mas tive sorte, muita sorte. Ele sempre esteve ao meu lado, alertando, prevenindo, dando os conselhos certos. Nossa relação evoluiu, amadureceu e hoje conversamos sempre, a qualquer momento, sempre que queremos.
Claro que a esta altura você deve estar questionando minha sanidade, dizendo que essa coisa de anjo não existe e coisa e tal, que só estou inventando. Mas eu vou te revelar o maior segredo da humanidade. Uma técnica para revelar seu próprio anjo! Siga corretamente minhas orientações. É infalível! Pegue uma superfície polida, não rugosa, pode ser o vidro de uma janela, um espelho, tem gente que consegue ver até na superfície de um lago, mas tem que estar bem tranquilo. Se você está lendo num computador ou celular, tente enxergar no vidro do monitor ou da tela… Isso, olhe bem… Você vai começar a perceber dois olhos olhando curiosamente para você, num rosto muito parecido com o seu… Esse é seu anjo!
CaMaSa