Escolha uma Página

A Dios

Juan era um jovem e impetuoso espanhol de Lanjarón, pequena vila situada entre Granada e Motril, na Andaluzia. É conhecida pelo seu castelo, e por ser uma das mais típicas aldeias de montanha das Alpujarras, na vertente meridional da Sierra Nevada. Também produz água mineral que é distribuída por toda a Espanha, o que acaba atraindo muitos turistas para a região. O clima quente arrefece nas montanhas e os hotéis e pousadas oferecem acomodações agradáveis, além dos bares e cafés com música e dança ao vivo.

O povo espanhol é latino radical, elevando à terceira potência as características de drama, sensualidade e paixão, expressas através da dança, música e da arte. Juan desde muito cedo mostrou ter habilidade musical, aprendendo a tocar de ouvido vários instrumentos, mas sua paixão era o saxofone. Logo ele estava integrando conjuntos da cidade e percorrendo as montanhas para tocar nas cidades próximas. Mas eram tempos difíceis para a música, para as artes e para todos. Estima-se que, entre 1884 e 1959, mais de 680 mil espanhóis imigraram para o Brasil. Apenas os portugueses e italianos chegaram em maior número. A Guerra Civil Espanhola formou um novo fluxo de imigrantes que fugiram para o Brasil. Franco comandava o país com mão de ferro, limitando as manifestações. O período entreguerras deixou a economia em frangalhos e eram poucas as oportunidades de emprego. Até que chegou o momento em que o espírito aventureiro, aliado às dificuldades e falta de esperança, empurraram-no, como tantos e tantos outros, para o mar, em busca de terras distantes e cheias de promessas.

Por relatos de parentes e amigos, ouvir dizer e estórias pouco prováveis, Juan veio provar os costumes e sabores do Brasil, mais precisamente na São Paulo progressista da metade do século, mais especificamente no bairro do Brás, reduto de imigrantes espanhóis, assim como, posteriormente a Mooca e o Tatuapé. Como a grande maioria, instalou-se nos cortiços da região, conhecendo além dos conterrâneos, italianos e portugueses que por ali também se encontravam. Encontrou uma cidade carente de tudo, de profissionais da construção civil, a profissionais liberais, artistas e músicos. Pôde assim, exercitar seu dom e ganhar um bom dinheiro, o suficiente para juntar um capital e investir em um ramo mais financeiramente sólido, o comércio madeireiro. Na região do Gasômetro, formou-se um centro atacadista de matéria prima para a construção civil, especializada em todo tipo de produtos para os marceneiros e construtores.

Em meio à sua jornada insana de trabalho, cuidando dos negócios durante o dia e tocando em bares e restaurantes do centro à noite, encontrou tempo para conhecer e namorar a bela Paloma, que “tenía su sangre, su gusto“. Jovem imigrante como ele, criada para respeitar e servir seu marido, em pouco tempo casaram-se e tiveram uma linda menina, Isabel, a razão de suas existências. Toda sua força e coragem para o trabalho, para superar as dificuldades encontradas, tinham agora uma perfeita justificativa. E assim, como quem pisca os olhos e ao abrir encontra-se num outro local, o fruto de todo trabalho e esforço do casal levou-os à uma situação boa e confortável, capaz de atender aos anseios de sua menina. Mas a sorte, madrasta, lhes pregaria uma peça terrível.

Numa manhã qualquer, ao se levantar da cama para se preparar para a escola, Isabel sentiu uma leve tontura e suas vistas escureceram, fazendo-a sentar-se novamente em sua cama. Ela já tinha 15 anos, estava acostumada às alterações de humor das meninas, identificou logo que algo não estava bem. Deitou-se novamente e só acordou quando a mãe ao seu lado, chamava seu nome. Isabel ardia de febre e sentia dores por todo o corpo, principalmente na nuca. Paloma chamou Juan que pegou a menina nos braços e correu com ela para o carro, disparando com este para o primeiro pronto socorro. Ali identificaram uma dúzia de possíveis causas, mas por segurança seria melhor que a levassem para o Hospital das Clínicas, onde poderia ser feita uma avaliação mais completa. Na época muito se comentava sobre a epidemia de meningite que eclodiu em 1971, e atingiu seu ápice em 1974. Essa epidemia surge na época em que o Brasil vivia sob o regime ditatorial e se encontrava no pior período, conhecido como “anos de chumbo” (1968- 1972). 

Chumbo… Chumbo derretido descendo pela boca e garganta, invadindo o estômago, dilacerando as tripas! Há tanta dor no mundo, mas nada se compara a perder um filho. A isso ninguém dá um nome, a isso ninguém deseja ao seu inimigo. Foram dias de angústia e desespero, promessas e orações, entre idas e vindas, dúvidas e internações. Numa noite, já no hospital Emílio Ribas, com a filha em coma e os médicos e enfermeiros entreolhando-se sem fé, Juan teve que sair para cumprir seus compromissos com o conjunto, não podia deixar os companheiros na mão. As notas do seu sax naquela noite foram tristes e lamentosas, não importando a música e o ritmo que tocassem. Eram acordes de um coração de aço, viril, mas sangrando de dor. Quando voltou pra casa, implorou a Deus, apesar de não ser um homem religioso, que salvasse sua menina.

Enquanto isso, Paloma, sua mulher, viu-se só e abandonada, acompanhando a filha ao seu destino ingrato, segurando sua mão na esperança de transmitir alguma força, algum sopro de vida. Era já muito tarde, os corredores já não mais tinham murmúrios de visitantes, nem passos apressados de enfermeiros, quando entrou de supetão um médico. Paloma pulou da cadeira em que cochilava, assustada com aquela irrupção, e olhou para o homem assustada, um olhar de indagação. Ele calmamente foi até sua filha, colocou o dorso da mão em sua testa e olhou para a mãe. Disse que era para ela não se preocupar pois ele trazia medicamentos que curariam sua filha, que confiasse, pois não havia outra solução. E pôs-se a fazer uma série de procedimentos que a ela pareciam ser os de um médico muito qualificado e ciente do que fazia. E, após um certo tempo que lhe pareceu ter levado alguns minutos, acomodou-a na cadeira, apertou sua mão e lhe disse que pela manhã outros médicos viriam, para completar o seu trabalho.

Quando acordou pela manhã, Isabel estava sentada em sua cama, sorridente e perguntando para a mãe o que estavam fazendo ali? Paloma sentiu uma alegria imensa, abraçou a filha e teve a certeza que a filha estava salva. Quando os enfermeiros do turno da manhã entraram no quarto, viram mãe e filha abraçadas, como se fosse a coisa mais normal do mundo alguém, naquele estado, estar naquela situação. Chamaram com urgência o médico de plantão, que chamou outros médicos, a enfermeira chefe e até o diretor do hospital. Nenhum deles conhecia o tal médico de acordo com a descrição de Paloma, havia visto alguém passar pelo corredor e entrar no quarto, ou ao menos sabia como e porque a menina estava curada…

Isabel teve uma leve sequela. Passou a ouvir um pouco baixo e, por consequência, falar muito alto. Isso não a impediu de conhecer um belo rapaz, descendente de espanhóis, para acalmar os ânimos de seu pai Juan. Pablo era chamado de Pablito, porque era magro como um palito! Quando o conheceu Juan disse a Paloma: 

Dale de comer que se está muriendo de hambre.

Juan teve a oportunidade de conhecer duas netas, ver o casamento da mais velha com a bisneta no colo, e honrou sua terra natal, que jamais voltou a ver,  com dignidade, respeito e honestidade. Abatido em sua saúde por uma crise renal que o levava a fazer hemodiálise uma vez por semana, deixava-se acompanhar pela filha Isabel, sabendo que esta assim se sentia feliz e recompensada. Numa das sessões, pediu que a filha prometesse uma coisa. Que ela iria conhecer sua terra natal, respiraria o ar puro das montanhas, beberia a água fresca, sentiria o sabor dos frutos e escutaria a música de ritmo quente e pulsante como um coração cheio de fúria e vigor. Nessa hora teve um vislumbre da bisneta Lupita dançando flamenco sobre um tablado de madeira no chão, fechou os olhos e nunca mais os abriu.

CaMaSa

Seria

Seria

 

Seria bem mais fácil seguir o padrão, 

acompanhar o rebanho, na manada, 

aceitar os dogmas, engolir os rituais, 

sem questionar comandos nem nada.

 

Seria muito mais fácil dopar a mente,

crer em imagens e figuras, nos textos,

em estátuas e símbolos de uma liturgia 

feita para se acreditar sem questionar.

 

Seria tão mais fácil fingir que acredito 

em modelos, em ritos, em guias cegos

conduzindo à certeza de não chegar

ao lugar devido para servir de abrigo.

 

Seria mais fácil explicar um Mestre,

só depois que Ele por aqui passasse,

do que reconhecer sua humanidade

simples, palpável e tão fácil de amar.

CaMaSa

Tolos

Tolos

 

Roubam as coisas

o ouro o dinheiro

os ovos chocados

e as frutas no pé

 

Furtam as roupas

secando no varal

umas fazem falta

cobre-se de jornal

 

Pilham os cofres

poupanças suadas

do velho o passado

da criança o futuro

 

Tiram o sossego

criando as guerras

nelas todos os tiros

atingem inocentes

 

Tomam para si

a ilusão da ilusão

não veem a riqueza

que têm e que são

CaMaSa

O Broche

Meu pai era um excelente marceneiro, muito requisitado. Trabalhava com instalações comerciais e residenciais, tendo uma clientela muito bem posicionada. Entre seus clientes havia muitos estrangeiros que aqui tinham chegado e constituído verdadeiras fortunas. Portugueses, italianos, espanhóis, árabes, judeus, alemães… Atendia a todos com grande respeito e qualidade, sempre deixando uma boa lembrança e sendo tratado com muito carinho. Muitas vezes ele era convidado para passar um fim de semana, junto com a família, numa casa de praia ou campo, e lá íamos nós, minha mãe, minhas duas irmãs, conhecer um pouco mais deste imensamente belo e natural país, do qual eu conhecia apenas alguns quarteirões do bairro da Mooca. É claro que meu pai não ia somente pra se divertir, aproveitava para fazer um ou outro pequeno serviço ou reparo e, desta forma uma mão lavava a outra.

Numa dessas vezes, fomos convidados por um senhor alemão, chamado Fritz, que possuía uma bela propriedade às margens da represa Billings. Não me lembro como chegávamos nos locais nessas pequenas viagens, que para mim pareciam ser infinitas. Mas lá estava eu, cercado de mato, água limpa e luz solar, espantado como um passarinho recém saído da gaiola. Havia uma bela e ampla casa, muito grande mesmo para um garoto de 8 anos que morava num quarto, sala e cozinha. A propriedade era muito bem cuidada, parecia uma pintura de folhas e frutos, intensamente brilhante e absurdamente colorida. Havia uma sinfonia de insetos formando o backing vocal perfeito para o canto dos pássaros que pipocavam aqui e acolá num ritmo constante e suave. Era quase um sonho… que viraria um pesadelo.

O senhor Fritz era um homem de estatura mediana, por volta de 1,75m, e magro, os cabelos eram castanhos mas o prateado já havia avançado fartamente. Destacavam-se mesmo os olhos, de um azul-cinza de expressão intrigante, que contrastavam muito com a aparência bonachona do restante do rosto. Tinha uma forma de se movimentar calculada, herança de um possível passado militar. Via-se que era acostumado ao comando, mas este já havia lhe escapado das mãos há muito tempo. Sobrou-lhe a esposa, Helga, de rosto encovado e bochechas salientes, a quem era possível tão somente os comandos básicos de uma relação a dois, dentro dos limites matrimoniais. Dona Helga, muito mais que ele, ficava feliz com visitas, raras ou quase inexistentes, nesta terra estranha e selvagem, tão longe do seu torrão bávaro. Nunca havia aceitado o modo como as coisas se deram, sair às pressas, no meio da noite, como criminosos. De lá, somente as notícias dos jornais, escritas para agradar quem pagasse melhor. Mas, pelo pouco que viu do trajeto de sua casa até o aeroporto e o que pôde ver pela janela do avião, a guerra havia destruído sua Alemanha querida.

Os dois homens trataram de resolver seus assuntos, enquanto minha mãe e minhas irmãs acompanharam dona Helga até a cozinha, que preparava uma receita de Pato com Laranja. Eu, que nunca tinha visto um pato pessoalmente, muito menos comido um, comecei a explorar o terreno, caçando coisas mais interessantes para uma criança fazer. Logo encontrei meu pai junto ao senhor Fritz, diante de um enorme anexo do lado direito da casa onde, imaginava eu, eram guardados carros, máquinas e equipamentos. Eles entram por uma porta larga e eu fui atrás. Havia bancadas de madeira sim, como numa oficina, mas o local mais parecia um biblioteca ou museu. Era extremamente limpo e organizado, com inúmeras estantes nas paredes, com muitos livros e caixas de diversos tamanhos, acabamentos e cores. Centenas de quadros de vidro com desenhos coloridos dos mais variados insetos, borboletas e mariposas. Havia gaveteiros enormes, onde diversos besouros mortos e espetados em alfinetes, flutuavam com as perninhas balançando no ar, numa espécie de dança imóvel e sem fim. A iluminação era propositalmente fraca, para proteger os tesouros que ali estavam da força destruidora da luz do sol. 

Aparentemente havia um ou outro reparo a ser feito numa estante, numa mesa ou num gaveteiro, e era por isso que os dois homens ali estavam e aquele não era o local nem a hora certa para um menino curioso estar. Meu pai me sugeriu com um olhar, duas palavras e um leve empurrão, que eu saísse para brincar, mas tomasse cuidado com a água, sendo proibido de me aproximar a menos de 5 metros da represa. Contrariado, de orgulho ferido, zanzei a esmo até reparar que havia alguns pequenos montes de terra, de diversos tamanhos, como se fossem baldes malfeitos emborcados ao chão. Imaginei que eram duro e rígidos e fui logo metendo o pé sobre um dos menores, para me elevar acima do chão. Para minha surpresa, a terra cedeu e meu pé afundou sobre um formigueiro repleto de formigas minúsculas e, agora, ensandecidas. Senti a primeira picada quando já estava com a canela repleta delas e saí correndo em direção a água berrando como um louco. Todos vieram em meu socorro que, naquele momento, já tinha a água no meu umbigo e não sabia se chorava de dor ou de medo de me afogar. Meu pai me agarrou pelo braço, me colocando em terra firme. Passado o susto, todos se puseram a rir, menos eu, que estava emburrado e envergonhado com a situação.

Logo após o almoço, enquanto as mulheres cuidavam da louça e os homens saboreavam um café, voltei ao local do incidente, disposto a verificar a extensão do estrago no formigueiro. Para minha surpresa ele estava vazio! Suas moradoras pelo jeito tinham desistido de continuar por lá, deixando as entranhas da construção expostas ao vento. Não me dei por vencido e, com todo cuidado e temor que a situação exigia, peguei uma vara comprida como um cabo de vassoura e me pus a cutucar e cavucar o formigueiro em busca de formigas remanescentes. Nada. Vazio. De repente, uma estocada bateu em algo mais duro, com um som de toque diferente. Mexi e arrastei um pouco a terra de um lado para o outro e vi brotar um objeto amarelado, pontudo. Cheguei bem perto para olhar e, esquecendo por um instante a dor das picadas, cavei rapidamente com as mãos até que tirei de dentro da terra um objeto semelhante a um broche, num formato estranho para mim, como se fosse uma ave de asas abertas, carregando um círculo pelas patas. Levei o meu tesouro até a água e, assim que comecei a lavar e retirar o barro firmemente grudado, seu brilho intenso, dourado, surgiu instantaneamente. Enxuguei e poli na minha camiseta branca e quando me voltei para correr na direção da casa e contar a novidade para todos, dei de cara com o senhor Fritz que, com seus olhos azuis-cinza, agora mortos e impessoais, me olhava mortalmente. Fiquei petrificado com aquele olhar carregado de ódio, de quem representava 6 milhões de mortes brutais e sem sentido. Senti um frio que me gelou os ossos, me atravessou a alma e me manteve sob controle. Lentamente dei três passos em sua direção e entreguei o broche em suas mãos. Ele guardou o objeto no bolso de sua calça, virou-se e me deixou lá, boquiaberto e mudo.

Ainda hoje, mais de 5 décadas depois, sinto ânsia ao lembrar daqueles olhos, e me culpo, por não reagir como devia, por ter aceitado passivamente suas ordens, por compactuar, seja lá de que forma, com todos seus possíveis crimes, representados por um broche.

CaMaSa

Fiapos

Fiapos

 

são coisas pequenas

incomodam embaraçam

enfiados como uma tanga

fio dental entre os dentes

são fiapos de manga

 

são fibras terrenas

ferem coçam embaçam

voam sopradas pelo vento

tiram lágrimas dos olhos

são fiapos de pano

 

são crianças amenas

riem alegram encantam

brotam de nós com força

viverão o futuro distante

são fiapos de gente

 

são razões plenas

ensinam soltam libertam

quando estamos no escuro

iluminam todo o universo

são fiapos de luz

CaMaSa