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Os Assaltos – Parte 3

O que era para ser um assalto comum, desses de entrar, pegar e sair assobiando, se transformou numa montanha russa de emoções e surpresas. Não dessas Six Flags americanas, seguras e antissépticas, onde a gente tem absoluta certeza que vai chegar são e salvo ao final. Não, estou falando de montanha russa raiz, de madeira, tipo Parque Shangai, localizado na divisa entre a Mooca e o Glicério, na década de 60. O carrinho de ferro carcomido pela ferrugem,  pintado em cores vibrantes e espalhafatosas, com rodas ensaboadas de banha animal suja e mau cheirosa, voando a não-sei-quantos por hora sobre os trilhos trepidandes e mal fixados por pregos e parafusos muito gastos, a milímetros de se soltarem. Quem andou, sabe…

Genaro e Alfa Berto, Mané e Zé, Tanaka e Ruby, estavam todos na casa de Baruch, ao mesmo tempo,  sem que cada grupo soubesse da presença do outro. Espalharam-se como ratos pela mansão labiríntica escurecida pela noite tempestuosa. A entrada principal tinha um amplo saguão com piso em mármore, onde nascia uma larga escada, toda em carvalho americano, subindo para o andar superior num enorme arco que se abria para ambos os lados num corredor circular, o qual dava acesso a vários aposentos.

O companheiro Zé começava a sentir os fortes efeitos da feijoada, com macarrão e moqueca da hora do almoço, e deu prioridade, na sua busca, ao encontro de um banheiro, com total urgência. Genaro atravessou a sala principal em direção à biblioteca, certo que encontraria o cofre secreto entre as estantes, onde estariam guardados os bens mais preciosos. Ruby foi até a cozinha para vasculhar a despensa e alguma passagem secreta de um porão no subsolo, enquanto Alfa Berto subiu a escada principal e começou a examinar cada um dos quartos com muito cuidado. Mané e Tanaka encontraram uma outra escada, de ferro fundido, em caracol, que acessava uma segunda ala de dormitórios, mais ao fundo do casarão. Subiram silenciosamente, tateando no escuro os degraus com os bicos dos pés.

Genaro nunca tinha visto tantos livros em sua vida! As estantes iam do chão ao teto alto, muito alto, provavelmente com mais de 4 metros. Era uma infinidade de lombadas coloridas, pardas no lusco-fusco da penumbra, de várias espessuras e texturas. Será que o patrão havia lido todos aqueles livros? Idade ele tinha, pensou. Estranhamente, era o lugar da casa que menos cheirava a mofo, podridão e ruína. Certamente se riqueza significava viver naquele ambiente, ele preferia o cheiro da luz do sol do seu humilde lar. Mas ele precisava de uma pequena parte do que Baruch possuía, tão pouco que o velho nem perceberia, mas o suficiente para realizar a operação do seu caçula. Não havia outro jeito, ele tinha que conseguir! Pôs-se a procurar ansiosamente, puxando cada um dos livros do lugar, buscando por algo que desconhecia. Até que tocou um livro diferente, duro, de madeira. Puxou-o e este fez um clique… O falso livro tinha o canto da base fixa na prateleira, com uma espécie de dobradiça, e quando ele girou completamente sobre esse eixo, abriu uma estreita porta de correr que dava acesso a um corredor escuro e gelado. Genaro acendeu seu isqueiro e avançou por uma rampa curva, muito íngreme.

O companheiro Alfa Berto já revistava o terceiro quarto e não havia encontrado nada nem ninguém. Estava cada vez mais desconfiado que a missão era uma armadilha ou um tipo de treinamento a que haviam sido submetidos pela organização. Não sabia o que procurar e o que fazer se encontrasse alguma coisa. Mas gostava da sensação de aventura, do risco e do perigo. Eram experiências que não podia viver sob o teto burguês da família, suas tradições e propriedades. Seus pais já eram muito ricos quando nasceram e ficaram milionários quando juntaram suas fortunas em matrimônio. Poderosos no ramo da construção, viviam recebendo em casa, para jantares e reuniões, membros do alto escalão do governo. Ele, por rebeldia juvenil, tímido e introspectivo, encontrou nas teorias revolucionárias a válvula de escape para suas frustrações. Tinha nessa dupla identidade, a realização de uma fantasia, brincando de agente secreto, de mocinho e bandido, na vida real.

Quando abriu a porta do sexto dormitório, percebeu uma luz fraca e bruxuleante vinda através de uma porta com molduras envidraçadas. Aproximou-se cuidadosamente e olhou para dentro do que parecia ser uma pequena câmara, em cujo centro havia uma pequena mesa de madeira. Sobre a mesa uma pequena lamparina a óleo iluminava pobremente o ambiente e, sentado diante dela, olhando fixamente para uma moeda dourada à sua frente, estava um homem muito velho, com ralos cabelos brancos caindo sobre os ombros. Do outro lado do aposento, viu uma porta igual a que ele estava e, por trás dela, a figura de um homem forte e rude, olhando para ele espantado. Ambos tiveram a mesma reação, abrindo a porta rapidamente, correndo em direção ao velho homem e pegando em seus braços. Genaro pela direita e Alfa Berto pela esquerda.

Teve início uma intensa disputa onde o velho Baruch era puxado de um lado para o outro, feito um fantoche de pano. Os dois oponentes reconheceram-se imediatamente adversários ideológicos e se puseram a trocar ofensas que começaram com um “Porco Fascista” daqui, um “Comunista Ladrão” de lá, descambando para uma cantilena interminável de palavras de ordem e chavões políticos. O infeliz judeu, enjoado com os chacoalhões e irritado com o discurso dos dois lados da mesma moeda em suas orelhas, juntou as mirradas forças que lhe restavam e gritou um “Basta”, cheio de ira. Os dois inimigos, surpreendidos, olharam para o ancião, prestando atenção no que ele dizia: 

– Vocês chegaram atrasados, seus idiotas! Se estão atrás do meu dinheiro, saibam que não existe mais tesouro algum nesta casa. Tudo, absolutamente tudo, agora está em mãos seguras, sendo administrado por organismos internacionais especializados em gestão de entidades assistenciais, sem fins lucrativos.

Os dois olharam-se embasbacados, enquanto Baruch contava sua história, desde o princípio:

– Nasci numa família muito rica, descendente direta da comunidade asquenaze, desde o século V, sobrevivente do massacre de Tréveris, cidade histórica da Alemanha e também a mais antiga, localizada no estado da Renânia-Palatinado. Com negócios diversificados em alimentos, tecidos, ouro, ferrovia e siderurgia, tínhamos escritórios por toda a Alemanha e sede em Berlim. Financiamos, durante a Primeira Grande Guerra, a participação de judeus-alemães, onde foram mortos mais de 12.000 soldados judeus. Lucramos sobre a morte de cada um deles. Chegamos aos primórdios nazistas como uma das maiores fortunas alemãs e do planeta. Em nosso castelo recebíamos toda cúpula do futuro governo, em conchavos regados a champanhe e caviar, da futura máquina de guerra do III Reich. Goebbels, Mengele, Pohl… o Führer em pessoa bebericou licores em nossa sala de jantar! Quando as armas se voltaram definitivamente contra nosso povo, somente os muito abastados, e bem relacionados, conseguiram deixar o solo alemão em busca de segurança nas Américas. Uma parte de nossa família fugiu, outra parte foi assassinada, e alguns, entre eles eu, ficou para auxiliar os oficiais de alta patente e ministros alemães, a compreenderem os mecanismos de gestão de nossas empresas. Quando não tínhamos mais utilidade, nos despachavam para os campos de concentração. Cheguei em Sobibor com 68 anos, e fui talvez o único em idade tão avançada, a sair com vida de um campo. Em parte por conta dos meus contatos com a elite alemã, em parte porque a fortuna escondida que me aguardava lá fora valia qualquer sacrifício. Dirigentes do campo de concentração me deram a função de espião, levando para eles informações sobre qualquer tentativa de insubordinação de prisioneiros. São centenas de inocentes dos quais tenho responsabilidade sobre suas mortes… Não tenho peso na consciência. Fiz o que me cabia ter feito. Recentemente, duas semanas atrás, tive minha sentença de morte declarada por um médico especialista e, a partir de então, tive uma espécie de revelação…

– Esse menino, esse nazareno que vocês tanto veneram… somente agora compreendi o seu significado. Ele não tinha intenção de destruir os romanos, a Lei de Moisés, a Torah… Nem muito menos queria fundar uma nova religião para vender passagens para o Paraíso. Não queria ser chefe, mestre, ídolo ou deus de coisa nenhuma. Ele só compreendeu o significado, encontrou as respostas para as perguntas não feitas, a Paz, dentro, e tentou ensinar aos homens como alcançá-la, sem pedir nada em troca. Simples, verdadeiro e real. Só esse é meu arrependimento. Não ter experimentado, a cada dia, uma e outra vez, esse infinito interior da existência, pois nos tornamos excelentes naquilo que mais praticamos.

– Quando compreendi isso, doei tudo que tinha para instituições que farão o bem aos mais necessitados, crianças e inválidos, doentes e velhos sem recursos. Com esse mesmo dinheiro que usei para comprar políticos e administradores corruptos do erário público, ou financiei a oposição a governos que não quiseram dobrar seus joelhos aos meus interesses, armando patifes sem alma para criar confusão e instabilidade, com essa mesma riqueza, farei aquilo que jamais tive intenção de fazer. Ajudar o próximo!

O velho judeu respirava com dificuldade e pesava bem as palavras antes de dizê-las, como se fizesse um testamento oral. Prosseguiu:

– A pequena fabriqueta de sapatos que usei como disfarce para fugir de perseguidores implacáveis, caçadores de recompensas, deixei para você Genaro, para o Mané e o Tanaka. Divirta-se administrando uma empresa no Brasil, com as inúmeras dificuldades e entraves burocráticos. É minha vingança pelas horas de trabalho roubadas, pelas matérias-primas descartadas sem necessidade e pelos produtos extraviados. Quero que você sinta na carne o que é ser patrão e tentar não se tornar pior do que eu.

Calou-se, pegou a moeda sobre a mesa com sua mão direita e cerrou-a firmemente. Havia reconhecido um Messias, mas, por garantia, era melhor ter alguma coisa para barganhar do lado de lá do umbral. Apoiou a mão esquerda sobre a mesa, deslizou lentamente para a frente apoiado nela e tombou a cabeça sobre a mesa, num baque surdo, já sem respirar.

CaMaSa

Sabe

Sabe

 

Eu poderia falar das dores

o vazio de quando te fores

mas prefiro olhar as flores

falar das coisas de amores

 

É certo um dia chegará o fim

nele veremos a raiz do capim

prefiro falar da parte em mim

que aceita agradece e diz sim

 

Antes até que tudo se acabe

e somente de ter fé me gabe

recebo a parte que me cabe

como quem conhece e sabe

CaMaSa

Semente

Semente

 

Nós fomos plantados na terra 

semente que cresce e floresce

entre o início e o fim tem o meio 

dentro é aí onde tudo acontece

 

Fora parece real mas não é não

é dança em constante mudança

a voraz fantasia da imaginação

na grande ilusão da esperança

 

Sobe desce aparece desaparece

fora se enriquece ou empobrece

justa injustiça é o que se merece

se canta se salta e se entristece

 

Se deita mas depois amanhece

para que o ciclo então recomece

mas o exterior finda e só existe

para descobrir o infinito interior

 

Nós temos um tempo contado 

chegamos ao encontro marcado

não adianta dinheiro nem prece

levamos só o que se conhece

CaMaSa

Os Assaltos – Parte 2

A célula ficava num lugar tão secreto, mas tão secreto, que ninguém, além dos três, sabia onde ficava. Alberto, codinome Alfa Berto, fumava um cigarro após outro enquanto andava aos círculos pela sala estreita. Estava com ele o companheiro José Teodósio, codinome Zé mesmo, legítimo representante da classe operária oprimida e explorada pelo capitalismo selvagem, ainda que ele não tivesse a menor ideia do que o outro falava. Esperavam a companheira Rúbia, codinome Ruby, que havia saído ao encontro de um superior para receber as instruções para a missão. Alberto tinha antipatia por ela. Achava que ela era bonita demais, muito arrumada, sem buço e de sovacos raspados. Muito burguesa para seu gosto.

Ruby era argentina, havia participado do movimento estudantil em Buenos Aires, no conturbado início dos anos 60, tendo testemunhado a Noche de los Bastones Largos, quando a Diretoria Geral de Ordem Urbana da Polícia Federal Argentina invadiu e expulsou de cinco faculdades da Universidade de Buenos Aires (UBA), na Argentina, os estudantes, professores e funcionários que haviam ocupado os locais em oposição à decisão do tenente general Juan Carlos Onganía de intervir nas universidades e anular o regime governamental. Ela estava na Faculdade de Ciências Exatas, e viu quando Rolando García, o reitor da época, foi ao encontro dos policiais, dizendo ao oficial que estava executando a operação:

– Como ele ousava cometer esse ultraje? Eu ainda sou o reitor desta casa de estudos.

Um guarda enorme e corpulento golpeou-lhe a cabeça com o cassetete. O reitor levantou-se com sangue no rosto e repetiu suas palavras: o grandalhão repetiu o golpe em resposta.

Um total de 400 pessoas foram presas e laboratórios e bibliotecas universitárias destruídas. Ruby, que já tinha uma participação efetiva nos movimentos reformistas, aderiu cada vez mais às atividades contra o governo, perdendo aos poucos sua identidade civil e integrando os quadros revolucionários latino-americanos. Esteve em Cuba, Colômbia, Peru e Bolívia. Participou de diversas atividades até que numa delas sofreu uma emboscada e foi gravemente ferida na cabeça. Perdeu um dos belíssimos olhos azuis, substituído posteriormente por um brilhante e sem vida olho de vidro. Foi transferida pela F.I.P.U.L. – Frente Internacional Planetária Unida Livre –, para uma região mais tranquila. Veio para o Brasil.

Ruby chegou ao local combinado, a igreja São Rafael, na Mooca, logo após a hora do almoço. A igreja tem um estilo único, Art Decó, caracterizado pelo uso de formas geométricas ou estilizadas em detrimento das formas orgânicas que eram frequentes no estilo Art Nouveau. Diferente desse estilo, o Art Déco prezava pela simplicidade da forma, sendo comum o uso da figura feminina e da figura de animais. Este estilo teve influências dos princípios do Cubismo. Ruby estava sentada no terceiro banco de madeira, do lado direito da nave, conforme as instruções que havia recebido por telefone, muito admirada pelo estilo retilíneo e elegante da igreja. Ela seria contatada pela companheira Doutora, apelidada DR, que lhe daria as orientações verbalmente. O local estava completamente vazio quando ela percebeu uma lenta aproximação. Uma mulher jovem sentou-se no banco atrás dela e imediatamente começou a falar frases desconexas que a princípio pareciam ser um código desconhecido:

– Não olhe pra trás! Ordenou. – Se hoje é o Dia das Crianças, ontem eu disse que criança… o dia da criança é dia da mãe, do pai e das professoras, mas também é o dia dos animais. Sempre que você olha uma criança, há sempre uma figura oculta, que é um cachorro atrás, o que é algo muito importante. Primeiro, eu queria te dizer que eu tenho muito respeito pelo ET de Varginha. E eu sei que aqui, quem não viu conhece alguém que viu, ou tem alguém na família que viu, mas de qualquer jeito eu começo dizendo que esse respeito pelo ET de Varginha está garantido. Então, para mim, essa bola é o símbolo da nossa evolução. Quando nós criamos uma bola dessas, nós nos transformamos em homo sapiens ou mulheres sapiens.

Terminou de falar, levantou-se e saiu lentamente, enquanto Ruby aguardava por mais instruções, pelo menos alguma que fizesse algum sentido. Depois de alguns minutos de tensão e espera, virou-se e viu que estava novamente só, sem entender absolutamente nada do que havia acontecido. Percorreu toda a igreja com os olhos e percebeu um pedaço de papel dobrado sobre o banco onde DR havia sentado. Pegou o bilhete e saiu de lá rapidamente. Pegou um táxi e voltou para o esconderijo, onde os companheiros a aguardavam ansiosos.

Mais cedo, naquela manhã, o padre Valentino tinha recebido a visita do padre Péricles, diácono da diocese de Santo Amaro, para uma visita amigável. Circularam por toda paróquia e, depois de tomarem um café quentinho e saboroso, sentaram-se num dos bancos da igreja para conversar sobre as dificuldades atuais enfrentadas pelos católicos em todo mundo e, mais importante, os próprios problemas. Valentino expôs os problemas de sua paróquia, de ordem material e espiritual, não deixando claro qual era a ordem de prioridade entre elas. A igreja necessitava de reformas, havia infiltrações e paredes precisando de tinta, até Santo Antônio das Paredes estava com o nariz descascado, como quem tinha tomado muito sol sem passar hipoglós! Mas as contribuições eram mínimas, mal davam para o custeio das despesas regulares. Recentemente, no entanto, um dos paroquianos, cumprindo uma promessa ao santo, trouxe uma moeda de ouro, aparentemente valiosa! Mas nosso bom Valentino não sabia como conseguir o maior valor por ela.

O rechonchudo, prestativo e bondoso padre Péricles, vindo de paróquia mais abonada, frequentada por cidadãos da mais alta estirpe, conhecedores profundos do mundo das finanças, e do submundo também, contou que estes haviam lhe mencionado certos mercadores de ouro, bons negociantes, sempre prontos para adquirir o vil metal. Sabia de um, inclusive, interessadíssimo especialmente em moedas. Era um velho judeu, bem sovina, mas que aceitava pagar acima do valor de mercado quando negociava certos tipos de moedas douradas. Tirou do bolso da batina um pequeno caderninho, anotou nome e endereço, e entregou ao padre Valentino. Este ficou tão agradecido que nem lembrou, quando colocou o papel dobrado em seu bolso, que este estava furado. Quando se levantou para acompanhar o visitante até a saída da igreja, não percebeu que o bilhete havia caído sobre o banco de madeira.

O companheiro Alfa Berto tentava explicar pela décima vez ao companheiro Zé o significado da mais-valia, quando ouviram três toques, seguidos de mais um, seguidos de mais dois toques na porta. Era a companheira Ruby que retornava finalmente! Ela estava com os cabelos lisos e negros levemente desalinhados, formando uma moldura perfeita naquele rosto fino, de pele clara e sedosa, contrastando lindamente com os olhos azuis, da cor do céu, limpo e sem nuvens, enfeitados por uma boca de lábios macios e vermelhos, naquele momento entreabertos e exibindo os dentes brancos e brilhantes como porcelana. Alfa Berto pensava seriamente em comunicar aos seus superiores que a aparência, e o jeito excessivamente sensual da companheira, não eram adequados aos interesses revolucionários da F.I.P.U.L., mas sempre reconsiderava quando ela começava a falar com aquela voz melodiosa, cheia de sotaque portenho, envolvente e desconcertante.

Ruby relatou aos companheiros tudo o que havia acontecido, em todos os pormenores, para que eles pudessem ajudá-la a compreender a mensagem verbal que havia recebido da companheira Doutora, DR, pois ela mesma não fazia a menor ideia do que poderia significar. Alberto ouvia atentamente enquanto Zé fazia cara de quem compreendia toda aquela mensagem cifrada, chegando muito próximo da expressão facial de um sábio matemático, pronto para gritar Eureka! Depois de horas debruçados sobre o problema, exaustos e a ponto de desistir, ela lembrou-se do papel deixado sobre o banco da igreja e exibiu-o aos outros dois. Abriu-o cuidadosamente sobre a mesa de fórmica verde água e os três leram apreensivamente o que nele estava escrito:

BARUCH – AVENIDA PAULISTA, 1412

CaMaSa

Peço

Peço

 

Tiro a angústia do peito

absorvendo cada alento 

sendo feliz do meu jeito

além do merecimento

 

quem espera a felicidade 

dos ajustes à sua volta

cego à interna eternidade

só verá guerra e revolta

 

porque não se põe o dedo

para dizer isto é o mundo

aquilo que vence o medo

vive dentro de um segundo

 

entre o ir e vir respirado

do movimento da vida

desde sempre sonhado

paz prometida cumprida

 

peço por mim e todos

pois somos um e um só

de vários tipos e modos

feitos de sombra luz e pó

CaMaSa

Os Assaltos – Parte 1

Tudo estava milimetricamente calculado. Haviam passado meses estudando mapas, horários e possibilidades. Avaliaram todas as variáveis, antecipando movimentos como num jogo de xadrez. Exatamente para que não fossem parar no xadrez! Genaro, Mané e Tanaka sabiam que não tinham alternativa e que o dinheiro do patrão, o judeu Baruch, aguardava-os de braços abertos. Os três trabalhavam na fábrica de sapatos da Rua Dom Bosco, que ficava embaixo da fábrica de celuloides para relógio de pulso. Era um armazém pequeno, de dois andares, com 10 metros de frente por 40 de profundidade. O couro dos sapatos chegava em rolos, era liso de um lado e acamurçado do outro. Era aberto sobre bancadas de madeira e funcionários treinados marcavam a giz os defeitos, que eram recortados cuidadosamente com estiletes afiados como bisturi. A menor imperfeição, um furo feito em cerca de arame farpado ou a marca de um berne, era sumariamente extirpada. Depois, a peça de couro era posicionado em bancadas lisas, de madeira macia, e eram cortados habilmente com o auxílio de moldes pré-determinados, de acordo com o modelo de sapato. A peça era aproveitada ao máximo, restando somente pequenas tiras da matéria-prima, que eram acumuladas em tambores para descarte. Os moldes recortados eram furados, pespontados e costurados, esticados sobre modelos de madeira, compostos de duas partes unidas por um sistema de parafusos que, depois de um certo tempo, eram reaproximadas e retiradas do interior da peça de couro. Esta era colada à palmilha e posteriormente fixado ao solado de couro grosso para finalmente ser dado o acabamento.

Genaro emigrara da Itália nas primeiras levas da década de quarenta, e trouxera de lá a técnica dos “scarparos” apreendida do pai e do avô. A falta de oportunidades no país natal, trouxera ao Brasil um jovem idealista, beirando o anarquismo, cheio de fome e ambição. Imaginou que viria para uma terra de sonhos e dinheiro fácil, mas só encontrou dificuldades e condições de trabalho precárias. Conheceu a esposa mineira numa viagem de bonde, seduziu-a com seu bigodinho fino à Clark Gable e, rapidamente, colocaram mais quatro bocas famintas no mundo.

Mané era o intelectual do grupo. Viera de Rabaça, distrito da Guarda, província de Beira Alta, aos 17 anos, fugido de um pai enraivecido de uma menina linda, com os primeiros pelos do buço surgindo e o ventre cada vez mais volumoso. Ele penteara o buço, a boca, o pescoço e tudo mais que o desejo lhe dizia, com seu farto bigode preto e brilhante como piche. Pé rapado, sem eira nem beira, lançou-se ao mar em direção ao distante Brasil, onde tinha um tio-avô que nem conhecia, de quem dizia-se ser rico e influente no negócio de pães e farinha. Quando o encontrou, velho e maltrapilho, descobriu que o tio era faxineiro na padaria, e o seu negócio com farinha era varrê-la do chão!

O Tanaka era o mais jovem, tinha 20 e poucos anos, bonito e com o corpo bem delineado, imberbe, não tinha bigode. Era nissei de primeira geração e do Japão tinha somente um olho puxado. O outro havia perdido num acidente doméstico e, por conta disso, usava um de vidro que dava ao olho um formato mais arredondado, ocidentalizado. Seja por causa do trauma do acidente na infância, tinha 3 anos de idade, seja por questões genéticas, ou porque o Criador assim quisera, o japa tinha uma leve defasagem entre a idade biológica e a mental, que o mantinha razoavelmente mais sorridente que o normal, além de muita dificuldade para compreender a realidade que o cercava. Era extremamente tímido, nunca havia namorado e, talvez, nunca tinha conversado com alguma garota.

Genaro porque precisava, Mané porque ainda amava a mãe do filho que não conhecera e Tanaka, porque não entendia muito bem o que fariam, cada um com sua razão, juntaram-se no objetivo comum de tomar do velho Baruch uma parte do dinheiro que lhes cabia. O judeu passou mal bocados na vida! Era um dos poucos anciãos que haviam estado em campos de concentração nazista e saiu vivo de lá para esquecer. Usou de muita astúcia e malícia para sobreviver. Comeu unhas, ratos e insetos. Negociou, fingiu, lambeu botas, traiu e delatou. Não tinha amigos e parentes quando lá chegou e ganhou inimigos de ambos os lados quando saiu. Mas sobreviveu. E ainda saiu de lá com um tesouro! Uma moeda de ouro, que surrupiou de um sargento alemão e acusou um companheiro de cela pelo roubo. Este pagou com a vida, mas a morte já o esperava de qualquer maneira, Baruch só antecipou o encontro algumas semanas.

Quando chegou ao Brasil, o velho judeu encontrou um mundo de oportunidades de negócios numa terra de gente indolente e lasciva, mais interessada no que fazer nos fins de semana do que ter lucro na compra e venda de mercadorias. Em pouco tempo descobriu os melhores fornecedores, conseguiu maiores prazos e as condições mais favoráveis para juntar um pequeno capital. Não gastava, só acumulava. Pouco comia, estava habituado a passar fome, não bebia, não tinha luxos. As roupas puídas e manchadas disfarçavam um personagem que enriquecia rapidamente na cena paulistana do pós-guerra. Pelo contrário, faziam dele um comerciante que a concorrência acreditava ser fácil de enganar, mas na realidade era uma aranha que pacientemente tecia sua teia de empréstimos a juros exorbitantes, à espera das moscas, de roupas finas e nomes pomposos, que seriam devoradas sem misericórdia. Quebrava-os tomando suas fortunas, seus bens, seus imóveis e sua honra. Em pouco tempo estava milionário, bilionário, mas mantinha a mesma rotina miserável. Morava sozinho numa mansão de 36 aposentos na Avenida Paulista, quase em frente à dos Matarazzo, na época em que a avenida ainda não havia sido completamente tomada pelos arranha-céus do império financeiro. Seu único prazer era passar a noite polindo, com uma velha flanela, as moedas de ouro que havia acumulado, à luz fraca e baça de uma lâmpada a óleo que tremeluzia na escuridão da mansão fantasmagórica.

Naquela noite amaldiçoada, Genaro, Mané e Tanaka saíram, cada um de sua casa, em direção à Avenida Paulista, na altura do número 1400, para um encontro marcado à meia-noite. Genaro estava tenso e irritado, nervoso e preocupado que algo pudesse dar errado e eles saíssem da casa sem o dinheiro. Mané estava frio e tranquilo, havia feito todos os cálculos e projeções matemáticas, apesar de que, em sua terrinha natal, havia aprendido somente três operações, não sabia dividir… Tanaka trazia no rosto um sorriso de superioridade oriental, reforçado pela imobilidade vítrea, escura e fria do olho artificial. A chuva fina apertara bastante e os primeiros raios começavam a estourar no céu escuro de nuvens carregadas. Cumprimentaram-se rapidamente e repassaram os próximos passos. Construída em 1896, a residência foi projetada pelo escritório de Ramos de Azevedo a pedido de Luiz Anhaia. Por alguma razão Anhaia não ficou no casarão e em 1911 o imóvel foi vendido ao industrial e banqueiro de origem italiana, Alexandre Siciliano. O imóvel ficava localizado no número 1412 da Avenida Paulista. Tratava-se de uma enorme construção de quatro andares, no meio de uma grande área verde. Tinha vários cômodos muito amplos, sala de leitura, sala de jantar, salão de jogos e dependências externas para acomodação de empregados, além da garagem. O imóvel passou por várias mãos, até chegar a Baruch como pagamento de uma dívida do então proprietário.

A mansão era ladeada por outras duas amplas residências e a construção principal era cercada de alamedas arborizadas. Nos fundos, de frente para as garagens, havia uma pequena escada que dava acesso a uma porta de ferro, fechada por um único cadeado apodrecido, conforme Mané havia observado numa das vezes em que viera à casa do patrão para entregar documentos da empresa. A ronda noturna cobria apenas dois dos imensos quarteirões, dando uma volta completa a cada 18 minutos. Tanaka e Mané entrariam pelo muro lateral da casa à esquerda, desocupada há alguns meses, enquanto Genaro seguiria o guarda noturno por toda a ronda, para se certificar que ele completaria o percurso no tempo estimado. Nesse período, os dois teriam o tempo necessário para serrar o cadeado com o mínimo de ruído possível, entrar pela porta de serviço, atravessar toda mansão no escuro e abrir a porta principal para o Genaro, que deveria ultrapassar o vigia a tempo de chegar e desligar, pelo lado de fora, o sistema de alarme que acendia uma lâmpada vermelha quando a porta era aberta pelo lado de dentro. 

Tudo havia funcionado com a precisão de um relógio suíço, os três amigos já estavam no interior da mansão, o velho Baruch polia silenciosamente suas moedas em seu quarto e a ronda noturna havia passado pela calçada sem perceber nada de anormal. A chuva torrencial e os raios prateados afastavam qualquer possibilidade de intromissão. Genaro estava quase calmo, mas havia somente um pequeno detalhe que poderia pôr abaixo tudo o que tinha sido tão bem planejado. A mansão havia sido invadida por outros três assaltantes naquele exato momento!

CaMaSa

Abençoado

Abençoado

 

Você é um ser de luz

intensa e resplandecente

ilumina quando escurece

em você mora o divino

num lugar bem guardado

é um ser pleno de amor

de compaixão e bondade

simplicidade e sinceridade

é um ser honesto e justo

quer só o que te pertence

quando luta e perde vence

é consciente da verdade

pleno e cheio de felicidade

o bem maior o real objetivo 

deste hiato de eternidade

 

É um ser abençoado, apenas não sabe…

 

Pois se soubesse quão abençoado é,

nada mais pediria,

só compartilharia e agradeceria.

CaMaSa

Sei

Sei

 

Já nem sei como começo

me contento com o que mereço 

agora eu já nem mais peço

simplesmente sinto e agradeço 

 

Já nem sei como prossigo 

sem teu abraço feito um abrigo 

onde descanso sou e sigo

ao encontro do melhor amigo 

 

Já nem sei como termino 

me encanto com o meu destino

certo e exato fino e divino

escrito em mim desde menino

 

Já nem sei mas agora sei

CaMaSa

Fogo na Vila

Eu não devia contar esta estória porque tem muita gente conhecida, facilmente identificável, que deve se reconhecer ou ser reconhecida logo de cara, e alguém pode se ofender. Em todo caso, vou trocar os nomes e descrever detalhes falsos da aparência, na esperança de que ninguém as reconheça. Mesmo porque, tenho certeza que quem lê o que eu escrevo não está interessado nos detalhes pessoais dos personagens, ainda que sejam atos impublicáveis, desses que não devem ser mencionados nem mesmo no confessionário do padre Valentino, à meia-noite de uma Sexta-feira Santa. Confio na discrição de todos, certo de que não haverá comentários maliciosos e discussões acaloradas tentando apontar esse ou aquele possível participante do episódio em questão.

Certa noite, o Zecão, vamos chamá-lo ficticiamente Zecão, voltava do baile de salão do Bola Redonda, na Brigadeiro, a pé, como sempre fazia. Estava acompanhado do Rapa, do Minhoto e do Boca de Trigo, companheiros inseparáveis de todas as horas. Desciam a ladeira contando vantagens, falando das moças cheirosas, de cabelos brilhantes e pernas longas, que rodopiavam por todo salão. No fim da Brigadeiro viravam à direita para o viaduto Dona Paulina, passavam pela Praça Dr João Mendes, desciam a Tabatinguera, pegavam a Avenida do Estado, cruzavam o rio em direção à Radial Leste e percorriam todo viaduto até dobrar à direita na Rua dos Trilhos, para finalmente dobrar novamente à direita na Visconde de Laguna. Era uma caminhada e tanto, regada a conversa fiada e rum ou vinho baratos.

Evidentemente chegavam destroçados, com os pés ardendo e as vistas embaçadas de sono e cansaço. Na esquina da Vila Rodolfo Crespi havia o açougue do Seo Petrônio, famoso pelas facas afiadas que cortavam com facilidade as carnes mais duras e mantinham afastados os marmanjos de suas filhas, e suas carnes macias… Ele morava com a família no sobrado sobre o armazém, mas como era madrugada de sábado para domingo, o açougueiro, a mulher Clotilde e as filhas, Marabel e Maribel, estavam na Praia Grande, aproveitando o fim de semana. O estabelecimento tinha uma porta de enrolar, de ferro, com um sistema de fechamento de barras laterais, com uma fechadura central de chave comum, a 1,10 m de altura, além do cadeado de chão. 

Quando os quatro amigos passavam pela porta do açougue, perceberam uma fumaça branca, bem rala, saindo pelo respiro da parede. Acharam o fato estranho e se puseram a procurar uma forma de descobrir o que estava acontecendo. Zecão olhou pelo pequeno buraco de fechadura do portão de ferro e, entre espantado e assustado, viu a chama brilhante do fogo! Fogo? Fooogooo! Em 2 minutos e 18 segundos toda vila estava envolvida no processo de transportar água para a frente do açougue.

A vila era uma rua estreita com casas pequenas dos dois lados, em toda sua maioria ocupada pelos operários, e seus descendentes, que trabalhavam no cotonifício Crespi. Ela terminava no muro do estádio do Juventus, da Rua Javari, nas costas do gol leste, famoso por ser onde o rei Pelé fez o gol mais bonito de sua carreira. Zecão e sua família moravam na última casa à direita, e dela, no terraço construído especialmente para isso, tinha-se uma visão total e privilegiada do campo. Em dias de jogos, amigos e parentes reuniam-se no terraço para tomar cerveja, comer amendoim torrado e xingar o goleiro adversário. No dia em que Pelé fez esse gol, o estádio estava lotado, todos querendo ver de perto esse menino de 19 anos que vinha encantando no campeonato. Mas não era um bom dia para o futuro rei, até então, que estava muito apático e apagado. A torcida do Juventus gritava e vaiava a cada vez que ele tocava na bola e, num chute em direção ao gol, a bola subiu muito acima do normal e foi cair no terraço. Na festa que se seguiu, Zecão gritou a pleno pulmões: — Seu bola muuuurcha!

Por obra do destino o grito saiu num momento de silêncio no campo, o suficiente para que Pelé ouvisse. Ele focalizou o torcedor no terraço da casa e fez um sinal com a mão direita, como quem diz: — Me aguarde… 

Quem viu não esquece! O moleque ficou endiabrado, destruiu o Juventus e pra coroar a exibição magnífica, a certa altura do jogo recebeu um passe da direita, deu o primeiro chapéu entrando na área, deu o segundo e deu o terceiro. Ainda teve tempo de chapelar o goleiro, que saiu do gol desesperado catando vento, arrematando de cabeça para o gol. O público, a favor e contra, gritou seu nome por mais de 10 minutos!

Assim era a vila naquele tempo, para o bem ou para o mal, uniam-se para buscar soluções ou preparar comemorações. Mas no momento a prioridade era o incêndio no açougue e estavam lá homens, mulheres e crianças, nonnos e nonnas, cada um contribuindo com seu balde, sua bacia ou seu copo d’água em punho na luta contra o fogo. Muitos até já sentiam o cheiro de churrasco, da carne queimada, do sebo crepitando e estalando nas chamas. Os mais fortes tentavam abrir a porta de ferro com as próprias mãos, usavam cabos de vassoura, corriam na busca de ferramentas. Os bombeiros haviam sido chamados e surgiriam a qualquer momento.

Na fila indiana que se formou para o transporte da água, estava a neta da dona Santa, a levada Ziquinha, com a carinha sardenta e as maria-chiquinhas presas firmemente nas laterais da cabeça. Para uma criança de 8 anos toda aquela movimentação era uma farra e encontrar uma forma de tornar tudo mais divertido fazia parte. A menina encontrou o passatempo de molhar os dedinhos na água e espirrar na nuca das pessoas. Quando alguém se virava pra entender o que estava acontecendo, ela gritava: – Foi fulano que cuspiu! E caia na gargalhada.

Mas uma gota dessa brincadeira resvalou no rosto de Elvira, irmã da Carmela, que tomando as dores da irmã ralhou com Ziquinha. A menina correu para os braços da avó, que assustada respondeu a Carmela que cuidasse do próprio nariz, grande e espinhudo como uma jaca! A ofensa não passou em branco pelo filho de Elvira que devolveu com um “a Ziquinha é mal educada porque não se sabe ao certo quem é o pai”… Por muito menos que isso a vila já tinha se transformado em campo de guerra! O pai, no papel, da criança, soltou o balde no pé do ofensor e partiu pra cima, recitando todos os palavrões que normalmente se gritava no campo, de uma só vez. Um vizinho protetor do rapaz, pulou sobre as costas do pai de Ziquinha, ambos rolando no chão e levando consigo dona Santa e a Carmela. Esta perdeu a dentadura, que saiu voando e prendeu-se na orelha do Minhoto que já dava e tomava tapa de tudo que é lado.  Nessa altura do campeonato todo balde, toda lata, todo copo e toda água voavam de um lado pro outro sobre a cabeça de todos. Era uma profusão de camisolas e pijamas ensopados que se alguém jogasse confetes e tocasse uma música de Carnaval, pareceria que estavam todos dançando em homenagem ao Rei Momo! 

No meio de toda aquela enorme balbúrdia, surge Seo Olegário, o morador mais antigo da vila, com seu penico lotado. Era sua contribuição para o incêndio, já que a água custava caro e aos 98 anos, meio cego, meio surdo e meio pazzo, era melhor poupar. Quando ele chegou no meio da confusão, com o penico branco tremendo em sua mão direita, o Rapa, especialista em capoeira, lançava os pés para o alto num elíptico rabo de arraia, que golpeou o vaso particular do Olegário debaixo para cima. O penico subiu girando, girando, alto, bem alto, espalhando xixi pra tudo que é lado e para todos, numa chuva dourada coletiva. Foi como jogar gasolina na fogueira! A turba formou um bolo enorme de gente molhada e fedida, gritando e estapeando uns aos outros, tão envolvidos que nem perceberam a garoa paulista chegando de mansinho e aos poucos transformando-se em chuva grossa.

O açougue incendiado estava completamente esquecido, entregue aos bombeiros que acabavam de chegar e que ninguém havia percebido. Usaram ferramentas apropriadas para abrir a porta e encontraram um ambiente tranquilo e sossegado. Num canto, à direita, havia uma espécie de incensório improvisado com uma lata aquecida por carvão, queimando folhas cítricas e aromáticas para espantar mosquitos e muriçocas gulosas de carne, com uma fumacinha leve e cheirosa. No centro do balcão, cuidadosamente apoiada e bem protegida, luzia uma lamparina a óleo, diante de uma pequena estátua de Santa Boa Fartura das Carnes, protetora dos bois e das vacas. O lume da lamparina estava posicionado de tal forma que quem olhasse da rua pelo buraco da fechadura da porta, só veria uma chama brilhante, perigosa e maliciosamente ardendo.

Não era um incêndio afinal, mas proporcionou um evento inesquecível para todos os moradores da vila, que até hoje trazem em si lembranças na memória… ou no corpo!

CaMaSa

A Paz

A Paz

 

A Paz é água no deserto

luz na noite sombria

é ter você por perto

preenchendo o dia a dia.

 

A Paz tem outros nomes 

amor justiça alegria

pão quando comes

enchendo a barriga vazia.

 

A Paz é um belo presente

o maior da história 

só o coração sente

é Deus e toda sua glória.

 

A Paz é respirar gratidão

da vida estrela guia

bússola do coração

só por você eu conheceria

CaMaSa

Coisa

Coisa

 

A coisa está fácil está perto está dentro,

longe da borda, das esferas é o centro,

o ponto de equilíbrio, o fiel da balança,

quem busca fora sempre, não alcança.

 

A coisa está perto está dentro está fácil,

é uma coisa simples de criança, infantil,

pensamos que ela é só um passatempo,

quando notamos já não há mais tempo.

 

A coisa está dentro está fácil está perto,

só conhece quem aceita de peito aberto,

o mundo a girar em constante mudança,

quem tenta congelar o universo dança.

 

Está fácil está perto está dentro, a coisa.

CaMaSa