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A vida seguia de mansinho naqueles dias, com muito sol no rosto e canelas finas de fora. Tinha quem me trocava de roupa, dava banho e me alimentava, de amor e comida. O mundo ia pouco a pouco se ampliando, com os amigos próximos sendo cuidadosamente separados dos mais distantes. Formavam-se vínculos eternos que seriam rompidos na primeira desavença. Ter 6 anos de idade tem suas recompensas e prejuízos, igualzinho ao mundo dos adultos, mas numa escala reduzida. Então, a cada dia há uma imensa carga de felicidade, trazida pelas coisas simples de um pega-pega, um esconde-esconde, uma corda que se pulava… Tac… Tac… Tac… batendo no chão.
Mas o crescimento é irreversível e, chega uma hora, os adultos já não aguentam mais você pulando e brincando pela casa e acabam procurando uma escola para te ocupar. No meu tempo chamava-se Jardim da Infância, hoje deve ser Maternal ou algo assim. Só sei que consegui ser expulso do tal jardim, e não sei se mais alguém conseguiu tal proeza? O motivo banal, incompreensível para mim na época, era que eu corria atrás das meninas da classe para beijar. Não era normal? Ver uma coisa, achar bonita e beijar! Seja quais fossem os critérios pedagógicos da época, fui convidado a me retirar do colégio. Minha mãe foi chamada e explicaram que eu, talvez, fosse muito imaturo para estar ali. Voltamos para casa ambos muito tristes. Ela porque estava preocupada com as entregas dos vestidos encomendados que tinha para terminar e eu porque não entendia o que tinha feito.
As tardes ficaram mais aborrecidas porque os amigos todos iam para o Jardim e eu ficava sozinho, vagando pela calçada da Vila Alvarenga próxima, fazendo buracos com palitos nos vãos dos paralelepípedos de granito que calçavam a rua. Para me ocupar, minha mãe um dia teve a ideia de me levar até a quadra de futebol do Colégio Dom Bosco, ao lado da capela do mesmo nome. Dom Bosco (1815-1888) foi um sacerdote católico italiano, fundador da Congregação Salesiana. Atuante em assuntos sobre educação foi considerado grande protetor da juventude. Foi canonizado pelo Papa Pio XI. João Melchior Bosco nasceu em Becchi, próximo a Turim, na Itália, no dia 16 de agosto de 1815. Por ser italiano, isso tinha grande significado para minha mãe. Segundo ela, Dom Bosco tinha inventado o futebol, amava as crianças e o Palestra (!!!), e era um legítimo representante de nosso senhor Jesus Cristo, o filho de Deus e o homem mais bondoso que já havia pisado nesta terra. Tudo eu escutava de ouvidos e olhos bem abertos, e boca bem fechada, pois ali estavam sendo dados avisos muito claros de que eu deveria seguir os bons exemplos e me afastar de tudo que fosse ruim.
Antes da quadra de futebol, tinha a passagem obrigatória pela capela. Como outras a quem eu fora gentilmente arrastado, era escura e fantasmagórica, com suas imagens assustadoras de gente sofrida e vestida de uma forma estranha. Me levou pela nave central até o altar onde, no alto, se via a imagem de um senhor de idade, um velhinho de cabelos esbranquiçados, vestido com uma túnica escura que descia até os pés, roupa de padre, ladeado por dois garotos e com um leve sorriso amistoso no rosto. Tive a impressão de que havia uma bola nos pés, mas achei que estava imaginando coisas. Saímos pela porta lateral à esquerda, mas antes paramos diante de uma estátua clara e colorida, de um homem bonito, alto, com os cabelos bem compridos espalhados pelos ombros. Tinha uma expressão serena que contrastava totalmente com um coração vermelho sangue saltando no centro do peito, envolto em espinhos e labaredas de fogo. Aquele era Jesus, disse minha mãe! E eu saí de lá mais desentendido do que entrei.
Quando chegamos na quadra, lotada de garotos muito maiores que eu jogando futebol, tive uma vontade tão grande de jogar e chutar a bola que larguei a mão da minha mãe e corri em direção ao centro campo. Não era de grama, era de cimento, pedra e areia, duro e perigoso. Mal toquei o chão, escorreguei, caí de lado e arranhei a perna! Minha mãe gritava enquanto o jogo era paralisado para compreender do que se tratava. Visto que era só um pequeno fedelho caído no chão, retomou o ritmo acelerado e cheio de gritos. O juiz da partida, um padre jovem e simpático, vestido com uma batina bege, veio em nossa direção para prestar algum tipo de socorro. Minha mãe explicou os motivos da minha presença ali e o padre assumiu a responsabilidade pela minha estadia, dizendo a ela que eu participaria das atividades normais do dia, e que ela voltasse às 5 horas da tarde para me buscar.
Ele só não explicou que as atividades seriam ficar sentado à beira do campo, assistindo ao jogo sem participar, assistir a missa e depois um filme antigo, em preto e branco, na pequena sala de projeção da escola. Sem jogar, assistindo missa em latim, a perspectiva de um filme antigo não era das melhores para mudar meu humor. De fato, o filme pulava e repicava, de vez em quando parava e a turma na sala, fedendo a suor de partida de futebol, gritava e assobiava até que o padre conseguisse fazer a geringonça andar de novo. Era uma estória confusa, havia muita discussão e confusão, até que de uma hora pra outra tornou-se violenta, com um homem sendo preso e maltratado. Enquanto era encaminhado a um senhor de saias que nada mais fez do que lavar as próprias mãos, as pessoas gritavam, atiravam pedras e cuspiam nele. O homem de saias, que parecia ser muito poderoso e mandar na coisa toda, mandou o pobre homem embora dali, para ser julgado por pessoas que não tinham a menor consideração por ele. Eu acompanhava tudo apreensivo, cada vez mais preocupado com o desenrolar daquilo, enquanto a molecada ao redor urrava e aplaudia cada cena de castigo. No julgamento, que era uma espécie de eleição, pediram para a multidão, que acompanhava a tudo rindo e caçoando, para escolher entre ele e um outro homem, que tinha uma cara de mau, tipo o homem do saco, mas o povaréu escolheu aquele franzino e desamparado, com os cabelos até os ombros…
Nesse momento um clarão de entendimento fez um clique na minha cabeça, associei o pobre coitado à estátua na capela e entendi que aquele era o tal de Jesus que minha mãe sempre falava. Senti uma dor no peito enorme, controlei o máximo que pude os meus sentimentos, tanto quanto pode uma criança de 6 ou 7 anos fazer isso, mas, quando o chicotearam até sangrar e colocaram uma coroa de espinhos em sua cabeça, um rio de lágrimas já escoava dos meus olhos. Eu sabia que não seria nada conveniente soluçar naquela hora e local, no meio daquela turma de moleques, e abafei o som por todo o calvário, com a cruz nas costas, os pregos nas palmas das mãos, até o último suspiro.
Quando minha mãe chegou eu já estava seco, de olhos e alma, havia feito um pacto com seja lá o que fosse para ser bom, respeitar os outros e encontrar as respostas para os mistérios desta vida, em vida. Descobri que as lições deixadas pelos grandes mestres, não as escritas, interpretadas e reinterpretadas, mas as experimentadas e respiradas, são para serem realizadas e vividas. Que elas fluem como água limpa e pura de jarro em jarro, de Mestre em Mestre, e que há sempre alunos dispostos a beber dessa água, encontrar a paz, dentro, bem fundo, onde ela nasceu para ser sentida.
CaMaSa