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Cleto

Ele era o 7° filho de uma família que já contava com seis meninas e todos sabem que nesse caso ele deveria ter nascido um lobisomem. Mas de lobo ele não tinha nada. Estava mais pra cordeiro. Não o de Deus. Era manso de verdade, quase bobão, resultado da imensa quantidade de amor fraternal despejado sobre ele. As irmãs o receberam como um boneco para brincar, beijar, abraçar, lavar, passar talco, trocar a fralda, vestir saia e blusa, enfeitar com colares, pulseiras e anéis… Para elas foi uma grande novidade, ele era diferente, tinha algo a mais. Entenderam também que depois dele a cegonha não daria mais as caras por ali. O pai ficou radiante, como quando o time do coração vencia o campeonato. Quando isso acontecia o radinho de pilha não era jogado com raiva na parede. Ficava feliz, pimpão, saltitante, carinhoso… Exibiu com orgulho desmedido o rebento nu para a vizinhança. Parabenizaram, comemoraram com muita cerveja e pinga. Voltou para casa bêbado e caiu desmaiado na cama. A mãe agradeceu a Deus. Estava cansada de parir.

Como a mãe chamava Cleide e o pai Toninho, puseram-lhe o nome de Cleto, numa auto homenagem pobre e sem graça. Cletinho ia das tetas da mãe para as mãos ávidas das irmãs. Passava de uma para outra numa ordem hierárquica da mais velha para a mais nova. Geralmente chegava na última todo cagado e mijado. São as agruras dos caçulas! O mesmo acontecia com as roupas, sapatos e bonecas de pano. Pobres, elas não podiam sonhar com uma boneca de porcelana ou de plástico, com olhos azuis de contas coloridas. As roupas, presente de alguma tia ou madrinha, já de segunda ou terceira mão, eram descoradas filha a filha, penduradas no varal, cosidas e remendadas centenas de vezes, chegando na mais nova brancas e esgarçadas. Quando ganhavam uma boneca de alguma prima mais abonada, a pobre passava por um processo de desconstrução anatômica cirúrgica. Acolhida como uma joia de imenso valor pela irmã mais velha, ia perdendo os cabelos, os olhos, braços e pernas, conforme passava para a próxima irmã, chegando à última somente um cotoco rabiscado, feio e sem graça. O irmão parecia ser mais resistente e durável. No início era muito frágil e inerte. Mamava, dormia e cagava. Depois, pouco a pouco, foi ficando mais forte e ativo, se mexia e se movimentava. Reagia aos estímulos. Chorava quando era beliscado. Mas gritava pra valer quando tinha fome.

A Fome, com “F” maiúsculo, morava naquela casa. Os dias sugando o leite aguado da mãe terminariam e ele seria mais uma boca em busca de comida. Aos poucos a novidade ia perdendo o brilho para se tornar um concorrente privilegiado pelos pais. Quando tinham a barriga cheia, usavam-no para brincar e passar o tempo. Era muito divertido irritar e judiar do irmãozinho que não tinha como se defender daquelas meninas. Ora o tratavam bem e com carinho, ora maltratavam e batiam, sem que a mãe percebesse. Estava sempre cercado de atenção, sempre havia uma delas de sentinela, para o bem ou para o mal. Eventualmente era largado num canto, como um brinquedo velho que já não desperta interesse. Gostava da companhia da solidão, imerso em seus primeiros pensamentos, tentando entender o significado das coisas que lhe aconteciam, do vento nos cabelos, do calor do Sol em sua pele, da rudeza do pai, da distância da mãe e da crueldade das irmãs. O pai era sua única referência masculina. Morava na roça, numa pequena casa de madeira distante do centro de Salete, pequeno vilarejo do interior de Santa Catarina, isolada no tempo e no espaço, onde a modernidade do papel higiênico ainda era desconhecida de quem limpava-se com sabugo de milho. Para as primeiras letras havia um pequeno convento, onde irmãs devotadas à Fé ensinavam os primeiros rudimentos às meninas da região em troca de algum alimento. Não aceitavam meninos. A mãe de Cleto deixou crescer seus cabelos e vestiu-o com um vestido das irmãs. Assim passou ele toda a infância, até que os sinais da adolescência ficaram mais volumosos e evidentes do que simplesmente um buço de uma menina feiosa.

Certa vez, voltando para casa numa tarde fria e chuvosa de julho, separou-se das irmãs, distraído por uma colméia de abelhas zunindo no alto de um pinheiro. Pôs-se a escalar o tronco reto e escorregadio, ignorando os chamados das irmãs que seguiam sem esperá-lo. Não lhes deu atenção, focado em seu objetivo de obter o mel que escorria dos favos lá em cima. A barriga roncando vazia era sua maior motivação. A cada palmo avançado, maior era o desejo e a esperança. Um pouco mais, um pouco mais… Viu-se saboreando o líquido dourado e doce, dedos lambuzados e escorregadios. De repente, sentiu a primeira ferroada em sua nuca, ardida e dolorida. Resistiu sem soltar as mãos, até que sentiu a segunda e a terceira. Choveram abelhas zangadas sobre ele. Teve que soltar uma das mãos para espantá-las. Desprendeu-se do tronco da árvore, perdeu o equilíbrio e despencou pelo ar até bater a cabeça no chão duro, de terra roxa, lá embaixo. Ficou ali inconsciente por um bom tempo, livre da dor das picadas, pelo menos até acordar. Já era noite alta então, ele fez um esforço para pôr-se de pé e, mesmo com a cabeça girando, viu que não havia quebrado nenhum osso. Retomou o caminho para casa amuado, deixando o mel saboroso para suas donas. O caminho, que a princípio lhe era familiar, foi se tornando cada vez mais estranho. As sombras da noite produziam cenários fantasmagóricos e assustadores, confundindo-o sobre as melhores opções a seguir. Perdeu-se e, ao invés de ir para casa, seguiu na direção oposta, rumo ao centro da aldeia. Antes mesmo de chegar até as franjas da pequena vila, deparou-se com três vultos à beira do caminho. Eram meninos como ele, entretidos em acender um cigarro de palha que haviam surrupiado de algum adulto. Não perceberam que ele se aproximava e, quando o viram a poucos passos, pularam assustados vendo aquela assombração envolta num lençol branco esfarrapado!

Cleto, não menos apavorado, superou sua imensa timidez e pôs-se a falar-lhes, explicando quem era e que estava perdido, precisando de ajuda. Os meninos eram da sua idade e naturalmente desconfiados. Levaram um tempo até entender o que era aquele outro garoto, magro e maltrapilho, vestido com roupa de mulher. Ainda puros e sem maldade, compadeceram-se dele e resolveram ajudá-lo. Conhecedores da região, pelas pescarias e caçadas, logo identificaram o lugar onde deveria ser a sua casa e puseram-se a caminho, contando estórias engraçadas sobre as suas proezas ao novo, e bem estranho, amigo. Questionaram seus cabelos longos e suas vestes, inapropriadas para um menino. Ele era como um deles, falaram, e deveria usar calças como todo homem. Bombardeavam-no com aventuras e desventuras, afirmações e perguntas para as quais ele não tinha respostas. Sentiu uma energia diferente fluir-lhe pelas veias, forte e ardente, como um bezerro que se reconhece touro. Sentiu a pele despegando de si, como uma cobra que troca a capa, deixando um saco vazio para trás. Compreendeu que era um homem, diferente de suas irmãs, e esse era seu destino. Beliscou-se para ver se ainda estava dormindo, caído no chão, sonhando. Não, era real, como a vitalidade que emanava dos seu companheiros, ainda moleques, mas com um futuro bem definido. Chegou em casa no meio da noite escura. Os meninos o deixaram na porteira de ripas e voltaram saltitantes e felizes para suas casas. Ele atravessou a pequena horta à frente da casa, subiu o alpendre e abriu a porta de mansinho. O pai, a mãe e as irmãs estavam em volta do pequeno lampião tremeluzindo sua luz amarela e fraca. Tentaram falar mas a voz morreu em suas gargantas quando olharam em seus olhos. Aquele não era mais o filho e irmão, era outro.

Ele assumiu a responsabilidade que lhe cabia e cuidou da família. Casou uma a uma as irmãs, deixando a cada enlace a casa mais vazia. Cada uma delas partia para algum lugar distante dali, em busca de seus sonhos de família. Deixavam endereço, ele escrevia, mas nunca recebia resposta. Nem mesmo quando o pai adoeceu e morreu, levado pela cirrose do fígado. Sobrou-lhe a mãe, cansada e frágil, única companhia. Doente, passava os dias deitada na cama. Ele a alimentava, banhava e a mantinha aquecida, até que ela dormiu uma noite para não acordar mais. Enterrou-a ao lado do pai, colocando uma cruz ao lado daquela mais antiga. Juntou os trapos, negociou a pequena propriedade, porteira fechada, com um comerciante da cidadezinha e partiu com uns poucos trocados em busca de outros ares. Foi de carona, na boleia de um caminhão até Florianópolis e de lá subiu num ônibus para São Paulo. Na metrópole de então, viu-se rodeado de multidões mas ainda mais perdido e sozinho. Adaptou-se rapidamente por necessidade e conseguiu um trabalho de entregador no mercado municipal. Sua função era entregar ovos recém-chegados nos restaurantes movimentados do centro da cidade. Caminhava a pé quilômetros por dia, de domingo a domingo. Raramente o patrão lhe dava um dinheiro para uma entrega por condução, bonde ou ônibus. Somente quando algum dono de restaurante explodia irado ao telefone, aflito para atender a freguesia, o chefe o chamava de lado e ordenava que fosse voando até o estabelecimento da Rua de Tal. Ele, então, saltava para dentro de um coletivo com as bandejas de ovos branquinhos. 

Naquele dia ele entrou afobado no ônibus, com as mãos ocupadas pela carga delicada, e não pôde manter-se firme de pé quando o motorista arrancou bruscamente. Cleto foi lançado para frente e viu os ovos voando pelos ares como passarinhos, desesperado e indeciso entre salvar a carga ou o nariz que ralaria no chão de metal liso. Antes de se esborrachar no chão, foi contido por um anteparo salvador bem no meio do corredor. Viu-se aninhado num corpo macio e perfumado, de um anjo que estava ali só para salvá-lo. Encaixado nesse pedaço de paraíso por três eternos segundos, amou aquela moça ali mesmo como jamais o fizera antes, e jurou que com ela se casaria. Teve que esperar que ela acordasse, para somente então perguntar o seu nome. Ela, entre assustada e encantada, respondeu que seu nome era Ana.

CaMaSa

Ana

A jovem Ana tinha um sonho. Uma casa cheia de crianças rechonchudas e coradas. Nasceu para ser mãe e para isso era necessário encontrar a pessoa certa. Sua mãe criou 6 filhos, a avó 12 e a bisavó 18! Gerações de mães, no sentido pleno da palavra, totalmente dedicadas aos filhos e ao lar. Essa equação necessita de um bom marido, de muitos predicados e poucos vícios. Ela sabia que não era tarefa fácil, mas nada a impediria de tentar. Poupou-se de namoricos e aventuras inconsequentes, preservando-se para aquele que se encaixaria em seu sonho tão bem quanto nela. Não faltaram pretendentes, pois ela tinha seus dotes. Magrela de menina, tomou corpo e forma já na adolescência, projetando a futura parideira, uma fêmea preparada para os futuros rebentos. Os cabelos eram castanhos tão claros que douravam à luz do Sol. O olhar era sereno, profundo, como o tom castanho, quase negros, dos seus olhos. Nenhum detalhe lhe escapava quando analisava um possível pretendente. O jeito de falar, de rir, de tossir ou de piscar. Observava o andar aproximando ou afastando, o alinhamento dos ombros, o pender da cabeça. Como bebiam, comiam, lambiam o sorvete ou cuspiam o caroço da mexerica. Não lhe importava a beleza, o físico ou a simpatia. Esquadrinhava por inteiro, dissecando cada um deles como um sapo de laboratório. Sabia que encontraria.

Passava os dias entre os estudos e o aprendizado doméstico. Cozer e coser, limpar e varrer, cerzir e servir eram tão importantes quanto somar e dividir, subtrair e multiplicar. Ia aos bailes e festas por insistência da mãe das irmãs e, quando ia, nunca dançava, apenas observava a elegância, o ritmo e a malemolência. Tudo era indício de um possível candidato, escondido num passo, numa mesura, num sorriso de canto do olho ou da boca. Certa vez pensou ter encontrado. O rapaz aproximou-se com delicadeza e num gesto ousado estendeu a mão em sua direção, suplicante, para uma dança. Ana surpreendeu a todos, esticando a mão na direção do moço, levantando-se para dançar. A bandinha local deu uma engasgada na melodia mas retomou apressadamente o ritmo para não deixar passar a oportunidade. O casal girou pelo salão, o rapaz dançava bem, circulando entre os demais dançarinos, postos ali apenas para compor o cenário. Quando a música parou, no exato segundo que durou a entrada da próxima, ela deu as costas ao moço e voltou para seu lugar. As irmãs, primas e amigas a rodearam, mortas de curiosidade. “O coração não bateu mais forte”, ela disse, e dela não tiraram mais nada. Esse era o sinal que lhe daria a certeza. Um pulsar mais intenso, o sangue correndo mais rápido, fervendo, a falta de ar e o arrebatamento. Nada menos que isso a faria aceitar alguém com quem compartilhar sua carne, sua alma, sua vida.

Certa tarde de verão, refrescando-se com as irmãs num sorvete de limão na pracinha da cidade, sentiu através de uma brisa calorenta um perfume adocicado, quase enjoado, à sua esquerda. Deparou-se com uma cigana, sem saber porque pensou assim, já que a mulher trajava elegantemente um tayer verde-água justíssimo, com uma camisa de seda branca e um lenço num tom verde escuro correndo pelo pescoço. Bateu os olhos nos sapatos de bico fino, combinados com a bolsinha a tiracolo. Tinha os cabelos loiros jogados para trás, sem nenhum fio solto. Lembrou Catherine Deneuve! Por um momento pensou estar diante dela. A mulher dirigiu-se a ela, ignorando o movimento da sorveteria ao redor. Tomada pelo encantamento, Ana estendeu-lhe a mão num gesto cortês e amigável. A mulher rejeitou sua mão direita e tomou a esquerda, girando a palma para cima. Estudou-a por alguns instantes, riscou com a unha bem esmaltada vermelho carmim as linhas ainda levemente marcadas pelo giro do tempo e pôs-se a discorrer sobre seu futuro. Via-a longe dali, na capital, trabalhando em um grande magazine. Conheceria o grande amor da sua vida num momento de muita dor e sofrimento, mas, fez uma longa pausa soltando um suspiro que congelou o ar e arrepiou sua espinha. Ana sentiu frio, muito frio, enquanto a mulher atirava sobre si um conselho: – Melhor não ter filhos… Tomou o sorvete das mãos de Ana, virou-se e desapareceu na próxima esquina.

Ana precisou de algum tempo para voltar à Terra. Suas irmãs disparavam uma saraivada de perguntas sem respostas. Não tinha certeza se aquilo havia acontecido ou não. As irmãs falavam da velha cigana, de cabelos brancos e dentes dourados, vestida de andrajos coloridos que havia roubado seu sorvete. Ela foi se recompondo aos poucos e achou melhor não contestar, guardando aquele breve delírio em segredo, com suas incertezas e dúvidas. Nunca falou a ninguém sobre o que ocorrera, mas manteve-se alerta, para confirmar, ao longo de sua vida, a veracidade dos prognósticos. Ansiou pelos aspectos positivos e temeu pelos negativos, rechaçando-os de tal maneira que quase os apagava da memória. Sem êxito! Eles voltavam em sonhos e pesadelos, no meio do nada, ao longo do cotidiano.

Seja como for, deu-se o momento de deixar a casa dos pais, as irmãs, primas e amigas, deixando para trás a cidadezinha que cabia na palma da mão. Partiu para São Paulo, capital, para ajudar uma tia nos serviços da casa, ampliar os estudos e conseguir um emprego. Sobrou muito pouco para estudos e emprego, já que o trabalho doméstico é infinito numa casa onde moravam os tios e seis primos, todos em idade escolar. Estava decidida a suportar a lida, queria vencer na cidade grande, sem voltar para trás. No fundo, tinha esperança de encontrar o seu grande amor, como lhe disse a tal mulher cigana, marcando a ferro e fogo com suas doces palavras de ilusão. Suportou mais desaforos e golpes do que jamais imaginara, amadurecendo para a vida, como todo mundo, certamente, tem que crescer. Entre as poucas folgas do lavar a louça, lavar os lençóis, passar as roupas, esfregar o chão e fazer a comida, conheceu a vizinha da casa ao lado. A dona Benta tinha uma filha, Chiquinha, que trabalhava no Mappin, no centro da cidade. Ficou sabendo por elas que havia uma vaga aberta para moças, no departamento de cosméticos. Ana entusiasmou-se com a possibilidade e perguntou aos tios se poderia tentar essa colocação? Disseram-lhe que sim, mas que se tivesse que trabalhar em período integral, deveria colaborar com as despesas da casa e cuidar dos afazeres domésticos durante a noite para continuar morando ali. Ana concordou sem nem pensar e foi com Chiquinha no dia seguinte ao encontro do seu primeiro emprego.

Ana acordou com uma fisgada no pé, mais precisamente no dedão do pé direito. Durante vários dias correu pra todo lado naquela casa varrendo, esfregando e faxinando. Usou o tempo todo um tamanco velho, duro e apertado, encavalando os dedos e encravando as unhas. Viu seu dedo inchado, com a borda da unha socada na carne, forçando uma ferida. Não teve tempo para si. Correu para a cozinha e preparou o café da família. Não queria dar motivo de arrependimento aos tios, que podiam encontrar alguma razão para que ela não fosse à entrevista de emprego. Ferveu o leite, coou o café, fritou os ovos e descascou as frutas. Cortou o pão em fatias e passou a manteiga. Esperou ansiosa todos terminarem para lavar a louça e guardar os talheres. Terminou tudo num piscar de olhos e correu para o seu quartinho. Tirou o vestido novo da mala e vestiu-se rapidamente. Calçou os sapatos de salto alto e sentiu que eles haviam encolhido. Mais provavelmente seus pés haviam inchado. Deixou de lado o incômodo e foi ao encontro da vizinha que a aguardava no portão. Andou, meio que manquitolando, até o ponto de ônibus e subiram no primeiro coletivo, em direção ao centro. Lá chegando, foi apresentada ao gerente que fez uma dúzia de perguntas e lhe deu algumas folhas de formulário para preencher com seus dados. Já estava empregada! Passou o dia correndo atrás de uma vendedora veterana da casa que lhe deu todos os tipos de incumbências. Subiu e desceu escadas, carregou pacotes, roupas, tecidos, linhas e fitas. Não teve tempo para um copo d’água e, quando terminou o dia, estava completamente destruída e desfigurada. Foi ao toilete e tirou os sapatos dos pés ardentes. O inchaço da unha era agora uma bola enorme de pus, prestes a se romper. Doía de olhar. Calçou cuidadosamente os sapatos porque não poderia voltar descalça para casa. Saiu da loja vagarosamente, com vontade de chorar, e buscou o ponto de ônibus para retornar.

Deixou passar o primeiro, o segundo e o terceiro. Era hora do rush e todos voltavam para casa no mesmo horário. Os coletivos estavam lotados e achou melhor aguardar um mais vazio. Subiu no próximo que estava bem mais vazio, mas sem lugar para sentar. Manteve-se de pé, temerosa, segurando firmemente nos apoios dos bancos, uma mão de cada lado. Duas paradas depois viu subir um rapaz alto e desengonçado, mas simpático. Esqueceu-se das suas dificuldades e dores podálicas e pôs-se a esquadrinhar o rapaz com suas habilidades costumeiras. Ele devia ser pelo menos um palmo mais alto que ela, magro mas forte, cabelos castanhos e olhos azuis assustados. Sem dúvida por conta dos dois engradados de ovos que carregava, um em cada mão. Absorvida pelo inusitado da cena, acordou do devaneio com o forte solavanco que o motorista dera no veículo ao arrancar do ponto. Ela agarrou-se no susto aos bancos, de frente para o corredor, um pé à frente e o outro, da unha encravada, para trás. Quando abriu os olhos viu dúzias de ovos bailando no ar em câmera lenta, com o rapaz sendo arremessado ao encontro dela, sem freio. Parou nela, encaixado em sua maciez juvenil, rosada e perfumada. Ficaram por 3 segundos colados, até que um raio de dor lancinante e insuportável avisou ao cérebro dela que aquele vulcabrás 43 bico largo estava pousado sobre seu dedão do pé! Ana desmaiou nos braços de Cleto e, quando acordou, não sentia mais dor alguma.

CaMaSa

Anacleto e o Paraíso

Anacleto sonhava e seus sonhos envolviam sua morte. Esta era sua obsessão e era natural que além de fazer parte constante do seu cotidiano, povoasse recorrentemente seu subconsciente, manifestando-se em sonhos tão fantasmagóricos quanto fantásticos. Não era ingênuo a ponto de acreditar num pós-vida idealizado, entre nuvens e anjos, ou choro e ranger de dentes, dependendo da perspectiva; nem era cético a ponto de ver no fim o fim de tudo. Havia algo mais e ele tinha nascido com uma urgência muito grande de descobrir o que seria, sem se dar conta de que talvez estivesse perdendo a cada segundo a maior de todas as experiências possível. Jamais revelava seus sonhos a quem quer que fosse. Quando a mãe perguntava curiosa a respeito, desviava do assunto, dizia que raramente sonhava e, quando sonhava, era com coisas banais do dia a dia, da escola ou dos amigos. Poupava a mãe de mais dores não falando de sangue espalhado, ossos quebrados, pescoço arrochado ou do salto no espaço ao encontro do chão duro, batido.

Houve uma vez, no entanto, um sonho que teve muita vontade de contar mas guardou para si como o maior dos segredos, porque achou esquisito demais até para ele. Sonhou que tinha morrido, até aí nenhuma novidade, os sonhos sempre começavam por aí. Desta vez podia se ver sendo velado, acomodado num caixão, rodeado de flores brancas e vermelhas. Viu seu pai Cleto consolando a mãe Ana que chorava copiosamente. Havia parentes, próximos e distantes, vizinhos consternados e curiosos, professores pesarosos e alunos tentando conter os sorrisos. Panela e Colchonete estavam posicionados do lado de fora da sala, bem em frente à porta, observando silenciosamente todo o movimento, todo o burburinho. Padre Victor da paróquia local chegou solene com a Bíblia surrada às mãos para encomendar aquela alma inocente a Deus, sabendo que somente este poderia perdoar tal desatino cometido contra si próprio. Antes da primeira palavra proferida, Anacleto viu-se distante da cena, ainda que sentisse que estava exatamente no mesmo lugar. Tudo e todos haviam desaparecido!

Piscou freneticamente os olhos tentando entender o que acontecia. Sentiu uma brisa fresca soprar seu rosto enquanto um Sol quente aquecia o vento tornando-o agradavelmente morno. Ao seu redor somente grama, mato, plantas e árvores. Achou que era o Paraíso. Estava numa espécie de floresta tropical, em milhares de tons verdes vibrantes e intensos, cheia de vida. Flores coloridas de vários formatos e tamanhos quebravam a monotonia daquele império verde, tingindo aqui e ali com rosas e azuis, amarelos e lilases, roxos e brancos. Recebiam a visita de abelhas e insetos variados. Estes zuniam alto formando o fundo de uma gigantesca sinfonia de trinados, pios e gritos dos pássaros. Acompanhou o voo de um pequeno sabiá laranjeira acima das árvores mais altas, riscando o céu azul claríssimo, manchado aqui e acolá de nuvens brancas, fofas e algodoadas. Quebrou o pescoço em direção ao chão e viu milhares de formigas marchando apressadamente pelo chão. Formavam um rio vermelho escuro de soldados disciplinados em busca de comida. Notou adiante um revoar de moscas e mosquitos ao redor de um mesmo corpo no chão. Era um pequeno roedor morto, a carcaça aberta mostrando vermes alimentando-se da carne putrefata. Tudo, absolutamente tudo, na mais perfeita harmonia.

Pouco a pouco toda aquela imensa barulheira começou a sumir. Cada bicho, cada pássaro, cada inseto foi silenciando um após outro, até que só se ouvia o murmúrio do vento e o estalar de um galho seco. Atentando um pouco mais podia se perceber o pisado forte e macio de uma onça faminta. Pata após pata, declarando num ronronar intenso: meu… tudo meu… Passou por ele sem vê-lo; somente um arrepio gelado correu de sua nuca à ponta do rabo comprido, pressentindo o que não se pode pressentir. Anacleto acompanhou o afastar do arisco animal observando maravilhado as pintas escuras na pele branca-amarelada brilhante. Meu… tudo meu… meu… foi-se misturando-se entre as folhagens, num disfarce perfeito revelado apenas por um par de olhos furiosos que, quando eram percebidos, era muito tarde. Os murmúrios, sons e a algazarra voltaram aos poucos conforme a dona do pedaço se afastava. Ele ficou por alguns instantes, que poderiam ter sido segundos ou centenas de anos, embevecido por aquele momento, até que um clarão de um milhão de lâmpadas explodiu em seus olhos, seguido de um estrondo ensurdecedor. Pensou que estava cego e surdo até que viu as primeiras gotas prateadas de uma chuva grossa lavar seus olhos e correr pelo seu corpo. Em pouco tempo a água gelada formou uma lâmina no chão lavado, refletindo o mundo num espelho cheio de pingos. As águas tinham endereço, correndo em direção aos filetes de riachos que alimentavam o rio volumoso adiante. Era fundo e transparente, mostrando centenas de peixes no seu interior, sapos e jacarés às suas margens. A água da chuva recolhida dobrou seu volume e em pouco tempo arrastou tudo que lhe era próximo. Passado o temporal, no entanto, tudo voltou ao normal, os que sobreviveram deixaram suas tocas e se alimentaram dos peixes deixados às margens do rio.

O tempo e o espaço não eram barreiras para Anacleto que movia-se para frente ou para trás, para cima ou para baixo num piscar de olhos. Explorava incessantemente tudo à sua volta e mais além. Observava o nascer do Sol acompanhando segundo a segundo sua posição no firmamento, até que este se punha, escondendo-se atrás de uma noite ora escura, ora coalhada de um tapete de estrelas brilhantes e infinitas e uma Lua de várias fases e brilhos. Resolveu descobrir onde se formava aquele rio, seguindo por ele na direção oposta do fluir de suas águas. A cada passo, menor o rio ficava. Menor e menor, até se tornar um fiapo de água cristalina e pura brotando do interior da terra, no alto da serra. Seguiu um pouco mais adiante e viu, do alto da escarpa rochosa que espetava os céus com quase um quilômetro, o mar, gigantesco, batendo-se sobre a terra lá embaixo. Voou lentamente sobre a vegetação pantanosa de terra escura, onde siris e caranguejos olhavam arregalados os pássaros que se aproximavam, e chegou a uma enseada de areia branca e brilhante, pedras moídas pelo tempo. Sorveu o ar marinho, sopa de vida, e sentiu a benção do equilíbrio terra e água, fogo e vento. Tudo é realmente perfeito, tão perfeito como a gota de água que respinga do mar sobre a rocha aquecida pelo Sol e evapora numa nuvem de chuva para retornar ao mar.

Costeou todo litoral em direção ao norte e entendeu que o mar era realmente muito grande! Resolveu atravessá-lo e viu nele muito mais vida, furacões e tormentas, segredos profundos em suas entranhas. Chegou novamente a terras firmes, secas, totalmente secas, mas ainda assim cheias de vida. Escalou os picos mais altos, gelados, sem oxigênio, para descobrir que uma vez lá, só resta a descida. Viu a terra ranger e quebrar-se em pedaços, separando-se em duas, abrindo feridas. Viu jorrar de dentro dela fogo e pedra derretida, destruindo com fogo e cinzas tudo ao redor. Também viu as primeiras folhas de grama verdinha rompendo o tapete da destruição. Alcançou as calotas da Terra, onde só há gelo e vastidão, mas mesmo ali viu a vida se manifestando, na pureza da neve branca, em profusão. Em tudo, absolutamente tudo, havia harmonia e resposta, não havia perguntas nem confusão. Tudo lhe era familiar, como as coisas que aprendemos na escola ou vemos nos filmes da televisão. Era tão natural, tão próximo e verdadeiro, que chegou a pensar que não havia morrido, que não havia ido pra lugar algum. 

Resolveu subir o mais alto que pudesse, na direção do Sol a pino, para ter uma visão geral do lugar. Foi subindo lentamente, cada vez mais alto. Passou pelas montanhas mais altas, as nuvens mais carregadas, viu os animais alados mais poderosos muito abaixo de si. Subiu e, à medida que subia, sentia o desconforto do ar rarefeito, a falta do entorno para o qual fomos criados. Avistou o contorno dos continentes, separados pelo mar. Viu a semelhança com os mapas e globos geográficos da escola. A partir de uma certa altura as cores ficaram difusas, cada vez mais homogêneas, num tom cinza-azulado, frio e distante. Passou pela Lua esburacada e viu diante de si o mesmo planeta azulado, a mesma Terra bendita e perfeita, flutuando na imensidão infinita do Universo.

Anacleto acordou ofegante e ensopado, buscando inspirar o ar que lhe faltava. Viu-se apavorado sentado sobre sua cama, em seu quarto, em sua casa. Precisou de alguns instantes para perceber que havia sonhado um sonho intenso, mais real que a própria realidade. Só então deu-se conta que no Paraíso sonhado não havia seres humanos.

CaMaSa

Anacleto e a Viúva Negra

A cada nova aventura a fama de Anacleto aumentava e, como de bobo ele não tinha nada, começou a tirar proveito da situação. No começo eram os agrados da vizinhança, com presentes de todos os tipos e sabores. O Seo Minorú da quitanda trazia um cacho de bananas, o Pestana do açougue um quilo de coxão mole, o Senhor Alcebíades da papelaria um caderno espiral de 100 folhas, que só tinha 96. Pouco a pouco, no entanto, a coisa foi tomando outra proporção, criando uma rede de interesses entre fabricantes e comerciantes diversos de roupas e panelas, eletrônicos e materiais de construção, anunciantes em geral e os meios de comunicação. Agora ele dava entrevistas vestindo roupas da Ducal e sapatos Samello, segurando um liquidificador Walitta ou ouvindo um rádio Philco de pilha Eveready. Ele agora era o garoto mais popular da escola, do bairro e da cidade, quem sabe até do país. Assim que numa tarde modorrenta de fevereiro, com o Sol castigando os desprevenidos e fazendo a alegria dos endinheirados à beira das piscinas nas mansões dos Jardins, tocaram à sua porta representantes de uma fabricante de motocicletas japonesa, a Yamaha, oferecendo uma proposta de parceria. Ele seria o garoto propaganda da RD 350 e como cachê receberia um modelo novo em folha!

A Yamaha lançou no ano de 1973 uma moto que marcaria de vez a história do motociclismo mundial, a RD 350. Sua produção aconteceu entre 1973 e 1993, duas décadas que marcaram a época e que a deu o cruel apelido de Viúva Negra. Este apelido se deve à grande ineficiência dos freios das RD´s 250/350 anos 70, que povoavam as ruas brasileiras, importadas entre 73 e 76. Seus enormes freios a tambor e posteriormente disco simples na dianteira eram ineficientes para frear uma moto que atingia com extrema facilidade, velocidades de 180 km/h. Naquela época não havia preocupação com a segurança de motoristas e passageiros, tanto em carros quanto em motocicletas. O uso de cinto de segurança em automóveis se tornou obrigatório somente em 1989, mas apenas nas rodovias. Já em 1998, ao entrar em vigor o atual Código de Trânsito Brasileiro, a utilização do cinto de segurança passou a ser compulsório em qualquer via pública e por todos os ocupantes do carro. O uso obrigatório do capacete tornou-se lei desde a edição do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em 1997. Ainda assim, sem qualquer fiscalização, essa não é a realidade para muitos motociclistas no Brasil. A publicidade vendia a masculinidade de Marlboro, a potência dos Mavericks e a liberdade do vento no rosto à cavalo de duas rodas e um motor de 350 cilindradas, joelhos de parachoques e olhos de parabrisa.

Ana e Cleto ficaram apavorados. Só de imaginar seu Cletinho pendurado numa máquina daquelas já dava pra ver a cor do caixão. Negaram e renegaram, a mãe chorou, o pai socou a mesa, mas a infinita persistência do rapaz foi minando pouco a pouco a resistência dos pais, até que depois de muitas juras e promessas que todos sabiam jamais seriam cumpridas, assinaram o contrato. Anacleto já conhecia a fama da moto, havia lido a respeito nas revistas especializadas e notícias de jornal. Sentia que era chegado seu momento e, melhor do que já havia sonhado, seria em grande estilo. Sim porque, para ele, alguém tirar a própria vida era um ato de covardia sem significado. Seu objetivo era outro. Queria cruzar a fronteira, descobrir a outra face da moeda da vida, conscientemente, deixando claro para todos que buscava marcar sua geração, deixar um legado. Para ele cortar os pulsos esvaindo-se da vida num rio vermelho, deixar-se pendurado por uma corda no pescoço, balançando tristemente pelo ar, expirado, eram fraquezas indignas e uma tremenda demonstração de ingratidão. Sempre perseguiu seu intento para saciar a sede de compreensão de toda raça humana sobre o maior de todos os mistérios. E, também, porque era meio patusquela!

Seja como for,  dez dias depois da assinatura do contrato assinado, lá estava ele fantasiado de motociclista, em cima de uma RD preta brilhante, a cara do Mal em forma de aço e borracha, com um sorriso enigmático de quem já sabe o final da história. A fábrica providenciara um instrutor para algumas aulas rápidas, o suficiente para saber onde se ligava e como se conduzia aquele bicho de metal. Insistiu muito sobre os freios, mas Anacleto pulou essa etapa e foi direto para o acelerador. Não que fosse fazer muita diferença. Pilotos profissionais, infinitamente mais experimentados, haviam sucumbido àquele conjunto inapropriado de frenagem. Para o bem ou para o mal, Anacleto saiu às ruas montado naquele pequeno foguete.

O bafo quente do asfalto derretendo em pleno verão, misturado à fumaça de óleo diesel dos ônibus e caminhões, batiam em seu rosto nu, deixando para trás de si o barulho duro, seco e metalizado daquele motor de 347 cm3 que desenvolvia 39 cv de potência a 7.500 rpm e torque máximo de 3,8 m.kgf a 7.000 rpm. Seu torque em baixa rotação era quase nulo, seu surto de potência ocorria a partir dos 5.000 rpm. Com apenas 143 kg de peso, atingia velocidade máxima de 166 km/h e acelerava de 0 a 100 km/h em cerca de 7s. A sigla RD, significa Road Developed, podendo ser traduzido para Feita para Disputas. Anacleto arrancava ao piscar a luz verde dos semáforos, deixando boquiabertos os demais motoristas, espantados com a velocidade. Sua primeira parada foi o colégio. Entrou no pátio do estacionamento rugindo potência, como um leão anunciando sua realeza. Desceu da moto, largou-a fumegando sob os olhares incrédulos e admirados de alunos, professores e funcionários, seguindo em direção à sua classe displicentemente, como se chegar daquela maneira era a coisa mais comum num mundo em que ter uma Cinquentinha fazia de você um príncipe!

Colchonete e Panela não podiam acreditar. Se postaram ao seu lado durante o recreio, como guarda-costas, para impedir o assédio. Mantinham os pivetes inconvenientes afastados e filtravam as perguntas e manifestações de respeito e admiração. Deixavam passar somente os sorrisos e olhares, agora apaixonados, das garotas mais cobiçadas do colégio. Os invejosos cochichavam ao longe, sem resistir a dar uma olhadela de rabo de olhos naquela máquina imponente. Os dois amigos planejavam usufruir daquela maravilha o quanto antes, mas Anacleto tinha outros planos para aquela tarde. Deu todas as respostas e conteve a excitação e entusiasmo dos dois para, ao final das aulas, dirigir-se à RD com toda a calma e tranquilidade. Passou a perna sobre o banco encaixando-se naturalmente. Girou a chave no contato e bateu o pedal com força. O motor gritou atingindo duramente os ouvidos despreparados. Antes de forçar a alavanca do câmbio para baixo, sentiu um toque suave em seu ombro. Dois olhos castanhos flutuantes miravam em sua direção. Da boca carmim, logo abaixo de um narizinho elegantemente arrebitado posicionado entre maçãs do rosto rosadas, saiu uma frase em forma de música:

– Me tira daqui…

Verinha Furacão era bem conhecida na escola. Por meio segundo Anacleto pensou se aquilo realmente estava acontecendo, era muita areia pro seu caminhãozinho! Então lembrou-se que não estava de caminhão, mas  sentado em cima de sua moto. Na outra metade do segundo, fez que sim com a cabeça e viu a garota sentar-se atrás de si, abraçando-o fortemente. Ele sentiu-se invadido por uma sensação de poder e realização, formigando de prazer dos pés à cabeça, e saiu em disparada, sentido o abraço cada vez mais apertado, à medida que a velocidade aumentava. Ela gritava “Corre, corre”, e ele respondia prontamente. Quanto mais corria, mais ela o apertava, e mais ele corria e mais ela gritava. O mundo, o tempo e o espaço, tudo entrou numa dimensão especialíssima de ação, emoção e prazer intensos. Tudo à sua volta parecia mover-se num outro ritmo, em câmera lenta, como se ele pudesse antecipar-se aos outros, prevendo seus movimentos. 

De repente, um leve toque de parachoques tirou-o do devaneio. “Corre, corre…”, Verinha gritava. E ele viu em seu retrovisor um Ford Galaxie 500 vermelho rugindo atrás de si. Era o ex-namorado, loucamente ciumento, que a havia procurado na escola com intenção de convencê-la a reatar o namoro. Um choque de adrenalina pura percorreu seus corpo e milhares de células explodiram de consciência. Seu fim sobre a moto era aceitável, mas sua obrigação era salvar a menina, já que estava claro que as intenções de alguém com um tanque de 1.780 quilos voando sobre você são bem claras. O cara perdeu a cabeça quando os viu saindo juntos na moto e, no momento, não seria possível tentar conversar. Estavam na Radial Leste, já haviam passado o Tatuapé, e a agilidade da moto era compensada pelo motor de 164 cv de potência e velocidade de mais de 155 km/hora. Passaram alguns faróis vermelhos e logo uma legião de carros da polícia perseguiam os dois com as sirenes a todo volume. Anacleto viu adiante um ônibus escolar atravessando lentamente a avenida, parado diante de outros carros à frente. Avaliou a possibilidade de passar entre o pequeno espaço entre o ônibus e o carro à frente, mas imaginou que o Galaxie não frearia a tempo e atingiria fortemente as crianças, causando uma enorme tragédia. Num ato puramente instintivo, apertou os freios sabendo que eram insuficientes para brecar a moto, mas o suficiente para diminuir a velocidade e passar para a pista lateral trazendo o carro atrás de si. 

Um silêncio sepulcral entrecortado por guinchos de pneus arrastados no asfalto e metal chocando-se num muro espalhou-se pela avenida. A moto bateu no meio fio da calçada arremessando Anacleto e Verinha pelos ares, que voaram sobre a parede e aterrissaram sobre um monte de areia fofa usada na construção próxima. O Galaxie subiu sobre o guard rail de proteção da avenida, girando sobre si e pousando vinte metros adiante com as quatro rodas para cima. Ninguém se feriu, as crianças do ônibus escolar assistiram a tudo entusiasmadas e puderam ir para a escola, com uma história incrível para contar. Verinha correu apavorada ao encontro do ex-namorado, temendo pelo pior, mas tranquilizou-se quando viu que ele estava ileso. Este, mais calmo, depois do tremendo susto, abraçou-a pedindo desculpas. Se beijaram apaixonadamente sob os olhares incrédulos dos policiais que parabenizavam Anacleto pelo ato de bravura. Este olhava para o que sobrou da moto e concluiu que não sobrava mais nada.

Foi condecorado, homenageado e entrevistado. Sentiu seu sonho esfarelar-se e prometeu a si mesmo que na próxima seria mais competente.

CaMaSa

Anacleto e o Sequestro – Parte 3

Maria Letícia abriu os olhos muito lentamente, deixando entrar aos poucos a luz da realidade em suas retinas. Despertava de um sonho estranho e esquisito, como se a agulha da sua vitrolinha tivesse saltado seu curso normal e tivesse arranhado a face do vinil com um som garranchento e feio. Sentiu, antes mesmo de abrir os olhos completamente, um odor sujo de um colchão velho e puído, de pouco estofo e bolorento. Também sentiu nas delicadas narinas o cheiro de paredes sem reboco e de telhas de amianto vazadas pela chuva, pela luz do Sol e da Lua, vazadas pelos mosquitos e ruídos. Sentiu na verdade, antes de se dar conta de onde estava, o cheiro da miséria. Não da pobreza, que ela conhecia bem das ações beneficentes organizadas pela igreja e que só tinha a mão estendida e a boca aberta para agradecer. Inspirou profundamente a penúria raivosa da fome e da falta de oportunidades que o ambiente exalava e soube que aquilo era algo que jamais havia experimentado na vida. Parou as pálpebras pela metade do caminho, temendo ver o que a luz de uma vela tremeluzindo tinha para mostrar. Quando finalmente olhou, arrependeu-se e cerrou novamente os olhos, fazendo-se como quem está dormindo.

* * *

Anacleto, Colchonete e Panela, investidos nos papéis de Reco-Reco, Bolão e Azeitona, tentavam compreender onde estavam e o que fariam para sair vivos daquela situação. Pelo menos dois deles ansiavam por isso. Haviam seguido o tal Ditão por becos e vielas labirínticas sem fim, até chegarem ao que parecia ser uma espécie de ginásio de esportes bem pequeno, plantado diante de um terrão retangular, que parecia ser um campo de futebol. Havia uma lâmpada amarela pendurada num poste em cada canto do terreno, mostrando a terra vermelha riscada aqui e ali por tinta de cal. A um comando do Ditão as crianças todas emudeceram e acompanharam os quatro até a sede da comunidade sem emitirem um som sequer. Dentro do pequeno galpão havia uma mesa retangular enorme que, provavelmente, fazia as vezes de mesa de ping-pong. O líder do bando abriu um mapa sobre a mesa e nele apontou para os rapazes onde estavam e onde ficava a casa dos bandidos. Explicou de que maneiras poderiam invadir o local, todas muito arriscadas e perigosas. Seria necessário um plano muito bem arquitetado para levar a empreitada ao êxito. Ele havia conseguido uma série de informações através da sua rede de garotos. Cada um trazia um relato: quando alugaram o casebre, quantos eram, quando acordavam, quando dormiam, cada mínimo movimento era acompanhado pelos moleques maltrapilhos e descalços que passavam despercebidos pela paisagem barrenta e poeirenta. Desse modo sabiam que eram três sujeitos, usavam um Fusca bege sem estepe, tinham quatro revólveres, 8 caixas de munição e dois facões. FBI perde! Haviam chegado no sábado anterior e feito pouco movimento até o dia de hoje, quando dois comparsas saíram no meio da tarde e voltaram no início da noite. Um deles ficou na casa, de guarda, e só saiu quando os outros chegaram, retirando um corpo, desmaiado ou sem vida, de dentro do veículo. O comparsa jogou um grande cobertor sobre o corpo e entraram rapidamente, batendo a porta atrás de si.

Anacleto fez várias perguntas sobre a estrutura da casa, quantas portas e janelas? Perguntou se havia um cão para dar alarme ou qualquer outro mecanismo para dificultar uma possível invasão? Queria saber se eles possuíam armas de fogo, além dos estilingues? Nada. A coisa mais perigosa ali era um canivete para descascar laranja. Quanto mais perguntava, mais Colchonete e Panela concluíam que deviam ir embora e, no máximo, passar numa delegacia. Verdade seja dita, o posto policial mais próximo estava a mais de 15 quilômetros dali e seria muito egoísmo partir sem prestar socorro para a vítima, se é que existia realmente uma vítima. Decidiram averiguar enviando dois guris para pesquisar a situação. Dois Palmos e Meio Quilo foram caminhando lentamente até a casa, como quem está passando fome e necessidade e bate na porta para pedir comida. Faziam bem esse papel, que aliás era a própria realidade deles e dos demais garotos da comunidade. O objetivo da missão era xeretar o que acontecia lá dentro e, para isso, enquanto Dois Palmos batia na porta e conversava com quem abrisse, Meio Quilo esticaria o pescoço para ver o que se passava lá dentro. O menino nem chegou a terminar a primeira frase. Com um safanão brutal o sujeito afastou-o da porta entreaberta, fazendo-o rolar sobre o parceiro que estava agachado atrás. Depois de meia dúzia de xingamentos, a porta foi batida com um estrondo. Os dois moleques fugiram em disparada, tomando o cuidado de fazer um caminho que não desse pista da verdadeira direção que tomariam e chegaram bufando, sem fôlego no galpão. 

Dois Palmos começou o relato, deixando todos decepcionados, à medida que avançava, com o resultado da “missão”, até que Meio Quilo falou com a voz firme:

– Tem uma moça!

Contou o que sucedeu para confirmar o que viu. Quando chegaram na porta da casa, agachou-se atrás de Dois Palmos e ficou olhando fixamente para a junção da porta com o batente. Nos segundos que a porta ficou aberta, com o homem entre eles, viu um pequeno catre e nele deitada com a barriga pra cima, estava uma moça, muito branca, com os cabelos castanhos escorridos sobre os ombros. Pôde perceber que ela respirava, até que o amigo tinha rolado sobre ele e os dois saíram correndo em disparada.

Não havia dúvidas. Estavam diante de um sequestro e lidando com pessoas muito perigosas. Começaram uma discussão sobre o que podiam e deveriam fazer, chegando à conclusão que podiam muito pouco e deviam acima de tudo garantir a segurança da moça sequestrada. Anacleto sugeriu que os amigos saíssem de lá até um lugar mais movimentado e tentassem encontrar um táxi que os levasse até uma delegacia. Colchonete insistiu que Panela fosse sozinho e ele ficaria com Anacleto dando uma retaguarda. Ditão escalou dois rapazes mais encorpados para acompanhar Panela em segurança até que encontrasse um táxi, o que era considerado um milagre naquele lugar e àquela hora. Panela seguiu pelos becos escuros ladeado pelos “seguranças” e, antes de quebrar a primeira esquina, virou-se para trás e viu os amigos diante do galpão, com uma estranha sensação de que algo muito ruim estava para acontecer com eles.

Mais confiantes pela possibilidade de terem socorro policial em algum momento, Anacleto e Colchonete puseram em andamento, com as sugestões de Ditão, um plano de resgate. O casebre tinha duas portas e quatro janelas, duas maiores e duas menores. A única chance que tinham era atrair os bandidos para fora e invadir a casa para libertar a refém. A comunidade tinha uma boa quantidade de rojões de São João que podiam ser usados para confundir os marginais, fazendo-os pensar que eram tiros de revólver de uma batida policial. Na região havia muitas casas de marimbondos e eles jogariam duas ou três dessas casas, colhidas num saco, para dentro do casebre. Ditão falaria pelo megafone usado nos jogos de futebol, simulando uma ordem de prisão. A ação teria que ser relâmpago para surpreender e não dar tempo de entender o que realmente estava acontecendo. O problema é que para dar certo, seria necessário um movimento inicial para ganhar alguns minutos da atenção dos marginais, enquanto um grupo de garotos plantaria os rojões em volta da casa. Alguém teria que bater na porta de entrada, conseguir atrair a atenção dos marginais por algum tempo e sair de lá sem levar um tiro. Anacleto venceu a eleição sem concorrência e, depois de calcularem o tempo necessário para cada ação, seguiu calmamente para a casinha agourenta e escura.

Dentro da casa Maria Letícia começava a entender a situação. Pelo jeito aqueles três homens não eram nada bons e, a menos que seu corretor ortográfico mental estivesse enganado, ela estava numa situação bem ruinzinha. Tentou um diálogo, mas, sinceramente, começou a achar que eles falavam outra língua ou, pelo menos, um dialeto do português desconhecido na cidade de São Paulo. Para satisfazer sua curiosidade se pôs a fazer uma série de perguntas complexas, deixando os três homens, em pouco tempo, exaustos mentalmente. Ameaçaram, mandaram calar a boca, gritaram e até pediram com educação, mas nada parava aquela matraca, uma invasão sem fim de palavras complicadas, difíceis de entender. Em defesa dos três marginais, diga-se de passagem, ninguém entenderia o que aquela moça falava, mas naquela situação, era muito benéfico o processo de atrapalhação mental a que estavam submetidos. Benéfico para ela, claro, pois a essa altura os sequestradores já estavam arrependidos de ter se envolvido nessa desventura. Para complicar, bateram à porta:

– Boa noite, alguém na casa tem interesse em discutir as vantagens e desvantagens do suicídio?

Seja pela dor de cabeça de tanto ouvir Maria Letícia, seja pelo profundo e alucinado golpe mental da pergunta, ou ainda pela aparência cadavérica de Anacleto no meio daquela noite sem pé nem cabeça, o Bandido nº 1, ao invés de por o rapaz pra correr, puxou-o para dentro, inserindo um convidado no sequestro e pondo em risco o plano de resgate arquitetado. Colchonete era o encarregado de dar o sinal de partida para a ação, mas ficou todo confuso com o amigo entrando na casa. Na dúvida, aguardou alguns minutos e abaixou a bandeira amarela, o sinal combinado. Na confusão que se seguiu, impossível de relatar na totalidade, tiros de rojão pipocaram imitando uma metralhadora, maria-ritas ensandecidas voaram distribuindo ferroadas a torto e a direito, Anacleto pegou Maria Letícia pela mão e saiu correndo fechando a porta atrás de si; os bandidos nº 2 e nº 3 para abrir a porta de entrada, enquanto o nº 1 descobria que haviam colocado pesos atrás da porta dos fundos. Viram-se os três bandidos aprisionados naquela arapuca e não tiveram outra saída do que jogarem-se pelas janelas, estilhaçando vidros pelo chão. Quando enfim conseguiram se ver livres, rolaram pelo chão gemendo de dor por causa das picadas. Ditão retumbava sua voz de prisão pelo megafone, enquanto Panela chegava orgulhoso com três rádio-patrulhas preto e laranja, da cor da vitrolinha caída ao lado da cama do sequestro.

Os três amigos mais Maria Letícia chegaram no bairro pela manhã, levados por um cortejo de viaturas policiais. O prefeito desta vez ficou atrás do governador, que exaltou a coragem e o altruísmo dos rapazes, exemplo a ser seguido. Anacleto, decepcionado com o resultado da aventura, avaliava o que podia ter dado errado e nem percebeu quando o governador espetou uma medalha em seu peito. A picada trouxe-o para a realidade e nela o governante conversava com a mocinha:

– E você, minha linda jovem, gostaria de declarar algo?

– Sim. Quero saber quem ficou com a minha vitrolinha laranja?

CaMaSa

Anacleto e o Sequestro – Parte 2

Há situações na vida, arriscadas e perigosas, nas quais tudo que queremos é ter ao nosso lado a companhia ideal. Alguém seguro e experiente que saiba o caminho das pedras, o segredo do cadeado, voar sem asas ou pelo menos que diga as palavras certas na hora do aperto. Quando o calafrio na espinha atingiu o ponto mais baixo das colunas vertebrais de Colchonete e Panela, eles tinham certeza absoluta que Anacleto não era essa pessoa. Não só ele não estava tremendo de medo diante do estranho mal encarado olhando para eles, como também tinha no rosto um sorriso de paz e tranquilidade de quem havia encontrado seu finalmente. No silêncio tétrico que se seguiu à pergunta do sujeito nada amigável, só se ouvia os dentes do Panela batendo e a barriga do Colchonete se revirando, prenúncio de coisa muito ruim se materializando. Anacleto deu o tom da conversa respondendo com uma pergunta:

– E você, quem é?

Os dentes do Panela bateram uma última vez. Cerraram tão fortemente que pareciam ter nascidas grudadas as arcadas superior e inferior. Terror era pouco! De ambos os lados do homem surgiam pouco a pouco pares de olhos brilhantes, injetados de sangue. A matilha era enorme! Colchonete afrouxou a musculatura e emitiu um sonoro “Valha me Deus”, simulando o escapamento do DKW 3 cilindros que os largara naquela roubada. Pelo cheiro, podia-se dizer que ele já estava morto, fazendo jus à expressão: Morto de Medo. Anacleto, entre os dois, mantinha a atitude serena e desafiadora, braços cruzados na altura do peito, queixo erguido à frente, por sua vez corroborando a expressão: Morreu Feliz! O grupo foi saindo das sombras, aproximando-se da luz amarelada do poste, único aliás num raio de 200 metros. Eram crianças e adolescentes maltrapilhos que, pela aparência, não viam banho e sabão há algum tempo. O homem se chamava Ditão, era líder da comunidade próxima e, naquele momento, fazia a ronda noturna de segurança. Os três amigos, um pouco mais calmos, hesitaram um pouco mas acabaram revelando o motivo de estarem ali. O homem disse então que realmente havia percebido algo fora do comum naquela casinha mais adiante, mas achava que deveriam ser homens perigosos, que não era conveniente enfrentá-los de peito aberto. Os olhos de Anacleto brilharam de prazer…

* * *

Maria Letícia era um doce de menina. A pele clara, os cabelos escuros, como os olhos, duas jaboticabas. A adolescência a fizera mais bonita, encorpara um pouco, não muito, na medida certa que exige esse período de transição entre moleca e moça, não muito magra, nem gorda. A vivacidade estava um pouco mais contida, mas a curiosidade expandira grandemente. Não de modo inadequado. Ela carregava nas atitudes e comportamento as marcas claras de sua posição. Nascera em família abastada da emergente Mooca, não a tradicional, dos cortiços e fábricas poluentes, mas a nova, moderna, que se espalhava pela Avenida Paes de Barros pelos altos da Mooca, passando pelo ponto mais alto na caixa d’água, até atirar-se como água de uma cascata até a Vila Prudente e suas favelas miseráveis. No seu reino familiar ela era a princesa com direito a estudar no colégio Dante Alighieri e frequentar, aos domingos, às 11hs, as missas dos jovens da Igreja São Rafael. Ali teve contato com rapazes e moças diferentes, vindos de extratos diversos, com visões de mundo e aspirações muito mais simples, práticas e acessíveis que as suas. Ela desejava um Príncipe e, se entre as novas amizades seu coração escolheu alguém para o papel, manteve o segredo bem guardado em seu coração, sem que alguém soubesse ter ela dado um inocente beijo em alguém do bairro.

Os encontros dominicais serviam para criar um vínculo espiritual com a igreja e comentar os bailinhos do sábado e as domingueiras de logo mais à noite. Nesses momentos o brilho nos olhos de Maria Letícia diminuía um pouco. Queria saber dos encontros, das danças de rosto colado e dos beijos à meia luz. Os namoricos que pipocavam entre as meninas e meninos do grupo, a inocência que ia se perdendo lenta e gradualmente, irreversivelmente. Vivia através das histórias contadas em detalhes o que não podia viver por si mesma. As paqueras, os olhares, toques de mão, os abraços mais ou menos apertados, os beijos, na testa, no rosto, nos lábios, de língua… A temperatura só aumentava, em pleno inverno, e fazia nascer nela uma vontade, um desejo, uma sede que água alguma saciava. Era muito melhor que as fotonovelas…

Os pedidos aos pais para ir a um bailinho, uma domingueira, eram constantes, mas não insistentes. Não ao ponto de faltar com o respeito, incomodar ou interromper o fluxo harmonioso do lar. Mesmo assim, era bem evidente que a filha estava crescendo, deixando de ser menina, e seria necessário, além de um acompanhamento mais intenso e rigoroso, mostrar, através de símbolos próprios do status que pertenciam, a direção correta que ela deveria seguir. Num sábado à noite, Maria Letícia rabiscava queixas e lamentações em seu diário, imaginando o que faziam naquele momento seus amigos no bailinho da Mirtes, famosa, entre outras coisas, pelos bailinhos na garagem de sua casa. Todos foram convidados, ela também, mas desta vez nem chegou a pedir para sua mãe deixar ela ir. Trancou-se no quarto e ficou pensando como seria chegar ali e ser tirada para dançar. Ele estaria lá. Diria não a todos os outros até que ele chegasse nela. E se abraçariam, quem sabe um beijo. De repente seu devaneio foi interrompido por batidas na porta. Pulou da cama e abriu a porta correndo. Viu seus pais sorridentes, ela não entendeu nada até reparar que seu pai tinha algo em suas mãos. Ela quase caiu de costas quando viu o que era. Uma vitrolinha laranja portátil!

Transferência é o ato ou efeito de transferir. Transferem-se direitos, propriedades, valores ou dados. Transferem-se objetos e ensinamentos, talvez o amor e carinho de alguém para outro. Na infância e juventude talvez seja possível transferir desejo e vontade para um objeto. Pelo menos por algum tempo. Maria Letícia transferiu toda frustração por sonhos juvenis não realizados para aquele objeto altamente tecnológico e inovador. Esqueceu bailinhos, amizades e príncipes. Ligou animada a vitrolinha na tomada e pôs-se a tocar um long play atrás do outro, dançando sem parar ao ritmo das músicas que eram sucesso na época. Era mágico observar o vinil preto girando sobre aquele objeto brilhante, laranja, a agulha flutuando sobre os sulcos, tirando os acordes dos instrumentos, as vozes dos cantores e o chiado inconfundível de uma época que seria enterrada pelo rio do tempo, que viveria somente na memória daqueles que ouviram.

Para interromper o idílio musical, seu irmão mais novo veio chamá-la para a janta. Muito a contragosto ela desceu e encontrou os pais impacientes sentados à mesa. Sábado à noite era tradição naquela casa a pizza da São Pedro, na época um local pequeno e familiar, que fazia uma redonda artesanal à mão. O próprio Seo Rafael vinha entregar a encomenda, eventualmente acompanhado do filho Cacau, para que este aprendesse quem eram as famílias respeitáveis do bairro. A de mussarela e a de calabresa já descansavam fumegantes acompanhadas de um tinto da casa. Nesses dias o pai deixava provar um golinho, para aprender o vinho e não se deixar fazer de boba. Ela comia rapidamente, ansiosa para voltar ao quarto e à sua vitrola de plástico cheirando à novidade. Mal podia esperar para contar a novidade a todos. Com certeza tinha quem iria morder o próprio cotovelo. Seus pensamentos foram interrompidos pelo anúncio do seu pai:

– Hoje à noite, depois de comer, iremos todos à casa do tio Benevides!

Não sei se porque ela estava com a boca cheia de pizza, ou por causa da alegria e gritaria que se seguiu, ou porque não valia à pena tentar argumentar com seu pai, mas Maria Letícia se viu como um autômato seguindo seus irmãos, mãe e pai na direção da garagem, onde o Aero Willys, o primeiro carro brasileiro de luxo, que só era utilizado nos passeios familiares, aguardava já de motor ligado. Portas fechadas, seu pai manobrou até a calçada e quando voltava para o assento do motorista após fechar o portão, ela lembrou que havia deixado a vitrolinha ligada, com um disco girando sobre ela. Pulou do carro e disse aos pais que iria desligar o aparelho e voltava voando. Ia num pé e voltava no outro. O pai, muito bravo, permitiu que ela fosse rapidamente. Ela atravessou a garagem e entrou pelo quintal lateral pela porta dos fundos, onde ficava a cozinha. Entrou, atravessou a sala, subiu as escadas e entrou no quarto. Olhou para o local onde até pouco tempo atrás a música girava de um disco e não viu nada. Olhou ao lado da cama, sobre o criado, imaginou que o irmão estava pregando alguma peça, quando sentiu atrás de si um corpo. Duas mãos a fizeram girar 180 graus bruscamente e uma voz dura e fria deu uma ordem: 

– Não dá um pio.

Não era necessário. Ela desmaiou antes do pio.

CaMaSa