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Linda era todas as mulheres e todas as mulheres eram Lindas.

Linda não era linda. Também não era feia. Era uma moça normal com seus encantos. Não era gorda nem magra, alta nem baixa, rica nem pobre, nem muito jovem nem muito velha. Não tinha sorte no amor, nem no jogo, mas tinha o dom de trabalhar de graça como ninguém mais neste mundo! Passava seu tempo em atividades e serviços voluntários virtuais. Arrecadação de fundos para a reforma da pracinha do bairro, sopão para moradores de rua e convidados, com direito a banho e tosa dos pets, coral de igreja e bingo beneficente. Organizava arrecadação de fundos para creches, escolas e hospitais. Cuidava da logística para coleta de roupas, comida e produtos de higiene. Nada pessoal e analógico. Ela era, na maior parte do tempo, virtual. Do mundo tecnológico dos blogs e redes sociais vinha sua interação com as pessoas.

Os pais preocupavam-se mas, filha única que era e cheia de personalidade, fazia somente o que bem entendia e queria. Nada de negativo porém, que pudesse causar algum problema ou constrangimento, afinal tivera uma sólida formação familiar. Era só o fato de tudo ser virtual mesmo. Depois da escola elementar, 1º e 2º graus, nada de faculdade ou cursos presenciais. Fez cursos de História, Letras, Acupuntura, Informática, Bolos decorados, Psicologia animal e Jornalismo, todos virtuais. Aprendeu Patchwork com sacos plásticos, Artesanato tupi-guarani com plumas de galinha, pomba e peru, construção de computadores pessoais, tablets e smartphones com sobras de televisores e rádios de pilha, além de plantação de milho, feijão e cana-de-açúcar em copos descartáveis e garrafas pet. Formou-se Doutora Honoris Causa em Direito internacional dos ruivos nascidos no Afeganistão, churrasqueiros da província de Karnataka na Índia e fãs dos Beatles na Coréia do Norte. Muitas das causas defendidas não tinham aplicação prática alguma, mas sua capacidade nessas áreas era impressionante! Fez faculdade de Medicina Ortomolecular Psiquiátrica Nervo-ósseo-muscular virtual, especializando-se em operações cranianas à distância através de celular analógico. Não encontrou, até o momento, paciente que aceitasse realizar uma auto-operação recebendo as instruções através do seu Startac Motorola! 

Teve algumas paixões juvenis na adolescência sem maiores consequências. Tinha queda pelos fracos, oprimidos e desajustados. Apaixonou-se, platonicamente, pelo Alípio, filho da professora de matemática, que era usado pelos meninos da classe como apagador de lousa. Ele chegava na sala de braço dado com a mãe, com o blusão azul marinho do colégio brilhante de limpeza. Era magro e franzino, tinha o nariz adunco realçado pela cara fina, os cabelos lisos e loiros divididos ao meio e os olhos assustados como de um passarinho. No fim da aula, o quadro estava exaustivamente preenchido a giz por problemas que deveriam ser entregues resolvidos no dia seguinte. Irados, os garotos descontavam a frustração no pobre Alípio, que era erguido de ponta cabeça por meia dúzia de colegas e esfregado sem dó por todo quadro negro. A lousa ficava limpinha e seu blusão branquinho de pó! Linda não saia para o recreio e ficava com ele, em silêncio, batendo o giz do blusão. Olhava em seus olhos verdes, tristes e úmidos, e lia a alma de outro ser humano como ela, carente de atenção e carinho. A paixão terminou quando a professora foi transferida para outra cidade e levou junto seu filho.

Assim era Linda, um pouco como eu, um pouco como você, um pouco como todas as moças sonhadoras. Mais adulta, sem amigas reais de verdade, era um sucesso nas redes sociais! Triste e introvertida no trato pessoal, era divertida e expansiva no Twitter, no Facebook e no Instagram, no YouTube. Fazia amizade facilmente, seguia e era seguida por uma legião de colegas virtuais. Não fazia disso um meio de ganhar prestígio ou dinheiro, apenas buscava ajudar, ensinar, aprender e fazer amigos. Evitava política, polêmicas e chatos, que bloqueava sem perdão. Participava de enquetes e concursos, divulgava produtos de boa qualidade que tivesse testado e aprovado. Virou uma referência para quem quisesse comprar uma roupa, um sapato, um celular, um relógio ou um bom vinho. Um like seu num livro ou numa marca de iogurte significava milhares de vendas a mais. Um comentário negativo sobre uma loja virtual, por atraso na entrega de um produto ou pela baixa qualidade do atendimento via chat, exigiria desculpas pessoais dos proprietários das empresas e readequação das áreas problemáticas. Nem ela entendia como havia chegado a esse nível de influência, mas ocupava-se de todos os detalhes com extrema eficiência e responsabilidade.

Suas muitas amigas virtuais a procuravam para receber dicas variadas de moda e maquiagem, filmes, teatro e restaurantes, points para ver e ser vista. Tratava todas com muito carinho e atenção, jamais repetindo um modelo de vestido de festa ou a indicação de um bom partido para mais de uma futura esposa. Tornou-se tão entendida de casamentos e cerimônias que passou a ser consultada pelos noivos, futuros maridos, também. E foi assim que conheceu Bello e conheceu o amor.

Bello era extremamente belo e tinha a beleza extraordinária amplificada pelas redes sociais. Saia bem na foto, no filme, no sol ou na chuva, de jeans, de terno, de sunga. Malhava na academia particular de sua casa, brotando gotas de suor brilhantes sobre a pele bronzeada. Nadava na raia olímpica de sua piscina particular e se deixava admirar através das câmeras de vídeo espalhadas por pontos estratégicos de sua mansão nos jardins. Único herdeiro de 36% do maior banco particular do país, tinha a totalidade de suas necessidades atendidas pelo que havia de mais avançado em tecnologia. Não saía de casa por motivo algum, encomendando comida e bebida, roupas e acessórios, qualquer coisa que necessitasse online, inclusive serviços de qualquer espécie. Vivia completamente satisfeito em sua reclusão, até que conheceu Linda e conheceu o amor.

Duas pessoas tão especiais não viveriam uma paixão como eu e você, e a maioria dos mortais. Conheceram-se meio por acaso, navegando entre um tweet e uma selfie, um like e um share, até que de repente rolou um direct… 

Sem expectativas de início, logo se perceberam muito iguais em vários sentidos. Os emoticons foram evoluindo rapidamente de um simples positivo para risadas e gargalhadas até que, virada toda uma noite, despediram-se com corações vermelhos. Marcaram um encontro, virtual, para aquele mesmo dia, à noite, e passaram longas horas de apreensão pontuadas por mensagens dispersas aqui e acolá ao longo de toda manhã e tarde. Quando retomaram o bate-papo sentiam-se velhos conhecidos de grande intimidade. Com o passar dos dias foram se aproximando cada vez mais, até que resolveram assumir a relação para o mundo. Foi um tremendo burburinho nas redes sociais, com 90% exultantes com a união de sonho dos dois ícones virtuais, e 90% vertendo rios de lágrimas pela perda de partidos tão interessantes e tops. 

O casal passou a fazer tudo junto, cada um diante do seu iPhone, seu MacBook ou seu iMac. Cada um em sua casa, pois o que realmente os atraía tão intensamente era a certeza de que seguiriam virtualmente suas vidas, agora um em companhia do outro. Liam notícias e livros, assistiam filmes e séries, comiam pratos especiais acompanhados de bons vinhos, sempre próximos mas separadamente. Passavam noites inteiras se amando, ora loucamente com urgência e sofreguidão, ora mansamente com carinho e paixão, conduzindo um ao outro pelos seus corpos, com total conhecimento da necessidade e carência de cada um. Quem mais neste mundo poderia estar vivendo uma relação tão profunda e perfeita? 

O pedido de casamento era inevitável e aconteceu da forma mais romântica e ao mesmo tempo mais festejada. Foi um acontecimento de proporções tsunâmicas, abalando as estruturas das redes. Top trends do Twitter com milhões de retweets, tirou do ar o Face e travou o YouTube. Bello escolheu seu melhor ângulo, dividiu a tela com Linda, e transmitiu a nota fiscal do anel de brilhantes pelo WhatsApp. Mas infelizmente o matrimônio ficou só no pedido! Descobriu-se que Bello era fake, não existia no mundo real, era só uma invenção de um garoto de treze anos…

Linda despencou. No Face, no Insta, no Twitter, no YouTube… se ainda existisse Orkut tinha caído em desgraça também! Entrou em depressão mas não encontrou ajuda virtual. Sem o otimismo radiante perdeu o crédito junto aos anunciantes e seguidores. Aos poucos foi se desligando dos aparelhos de comunicação e começou a fazer coisas simples que há muito não fazia. Tomou um café da manhã com os pais, passou manteiga no pãozinho quente e sentiu o cheiro bom de suco de laranja espremida na hora, ouviu a algazarra de maritacas verdes voando em bandos, apitos e buzinas ao longe. 

Sentiu vontade de sair para a rua, caminhar e espairecer. Não andou nem dez metros e distraída deu um baita encontrão num rapaz que vinha em sua direção. Ele a segurou pelos braços, era alto, forte e musculoso, e ela se sentiu cômoda naquela situação. Quando o encarou, pronta para se desculpar, reconheceu os olhos verdes de Alípio imediatamente. Ele também a reconheceu e, com os olhos cheios de uma alegria contagiante, disse-lhe que há tempos estava à sua procura e que tinha muitas coisas para lhe falar…

CaMaSa