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As duas mortes do Paulinho

Roubil

As duas mortes do Paulinho

Conheci o Paulinho poucos anos depois que nasci e, de cara a identificação foi muito grande. No colégio, na São Rafael, no clube, na vizinhança. Amizade mantida por quase 60 anos! Em parte porque seu bom senso, equilíbrio e inteligência estavam sempre evidentes e à disposição. Em parte porque essas qualidades passavam longe de mim e ele era minha fonte de inspiração. Eu aprendia a ser melhor em sua companhia. E eu precisava desesperadamente ser melhor…

Lembro de uma passagem incrível! Fazíamos o cursinho do Anglo, na Rua Tamandaré, no século passado. Eu tinha um incrível Chevette bege, com rodas, parachoques e retrovisores pintados de preto fosco. Ele pegava carona comigo e realmente prestava atenção às aulas, porque tinha um plano, um objetivo, uma meta. Tornar-se engenheiro, seguir uma carreira, um bom emprego, uma vida honesta e confortável. Já eu, indolente e displicente, ia para o curso somente para me divertir e paquerar. Eu carregava no coração uma rebeldia estéril e perigosa, que quase pôs um fim nos sonhos do Paulinho.

Certo dia, voltando do Anglo por volta da hora do almoço, num dia triste e frio, cinzento, atravessei o Viaduto São Carlos, à época calçado com paralelepípedos, em grande velocidade, tendo o Paulinho cada vez mais tenso ao meu lado, segurando-se onde fosse possível. Não existiam cintos de segurança, e se existissem, não usávamos. Virei à direita na Sarapuí e cruzei o farol da Rua Jumana a mais de 100 km/h, motor rugindo a bateção do cabeçote cada vez mais forte, rasgando a Rua Dom Joaquim de Melo cada vez mais rápido e se aproximando da curva que desemboca na Rua Celso de Azevedo Marques numa velocidade não permitida pela física.

O carro levantou as duas rodas do lado do passageiro e, lentamente, muito lentamente, foi girando sobre si mesmo num looping sem fim. Nos espatifamos num poste de concreto do outro lado da rua, dividindo o veículo e seus ocupantes em algumas partes. Meu amigo foi lançado pelo pára-brisas e, na sequência, atropelado algumas vezes pelo Chevette, tendo 18 ossos do corpo partidos, perfurações em vários órgãos e esmagamento craniano, provocando, em frações de segundos, dores e sofrimentos inenarráveis. Mas foi tudo tão rápido e tão eterno, que ele mal percebeu quando soltou a última exalada e caiu nos braços do Universo! Essa foi a primeira morte do Paulinho.

No entanto, porque não era chegada a hora e tínhamos um destino a cumprir, Deus, em sua infinita bondade, operou um pequeno milagre e, no exato momento em que os pneus  se levantaram a 30 centímetros do chão, pressionou levemente o teto do carro para baixo, como faz uma criança com seu carrinho de brinquedo, e o carro retomou sua trajetória apenas com algumas leves derrapadas. Nos deu uma segunda chance. O Paulo saiu da sua imensa calma e tranquilidade natural e explodiu num elogio:

– Nino, você é um grande filho da puta!!!!

E ele tinha razão, muita razão… A partir dali, procurei cada vez mais aprender com ele, adquirir a mesma responsabilidade e consciência que ele sempre teve. Seguimos nossos destinos, criamos nossas filhas e mantivemos contato sempre. Ele sempre admirou tudo que eu escrevo, sendo capaz de através da sua racionalidade e inteligência, interpretar as coisas que emergem do meu coração.

Sua segunda morte foi hoje, em sua casa, em seu leito, tranquilo e sossegado, sem dor e aflição, na santa paz de Deus. Cumpriu com louvor e dignidade sua missão aqui nesta Terra.

CaMaSa

Brigas

Roubil

Recentemente foi anunciada com grande estardalhaço a luta entre um ex-boxeador campeão mundial e um ex-big brother fanfarrão. A publicidade exaltava o caráter conflituoso do embate, muito mais uma briga de rua do que um combate pugilístico, definido por regras específicas. A tal luta do século terminou de forma vexaminosa em 36 segundos, com um dos oponentes estatelado no chão. Eu não vi, mas a enxurrada de vídeos e memes replicados nas redes sociais, me trouxe à lembrança brigas verdadeiras, dessas de partir narizes e corações. Uma em especial aconteceu debaixo do meu nariz, ou melhor, sobre mim, nos meus tenros e inocentes primeiros anos de vida. Havíamos recém mudado para um novo endereço, numa rua qualquer da Mooca, próximo ao centro da cidade de São Paulo. O imóvel alugado era um pequeno galpão no andar térreo de um prédio de 3 andares, o Edifício Marly, onde meu pai instalou sua marcenaria. Nossa moradia era nos fundos, um quarto, sala e cozinha, bem apertados.

Meu pai era um excelente artesão marceneiro. Ele não tinha, digamos, delicadeza, seus móveis eram maciços e pesados, feitos para “durar para sempre”. Aprendeu o ofício em sua terra natal, num pequeno vilarejo da Itália, no alto de uma montanha, na província de Salerno, ao sul de Nápoles. Teve como mestre um paisano que o arrastou para o Brasil anos mais tarde, em busca de sonhos de riqueza. Ou pelo menos de comida na barriga. Já era casado e deixou para trás minha mãe, grávida da segunda filha, e a minha irmã mais velha, então com 3 anos. O pós-guerra deixou a parte mais pobre da Europa sem esperanças e ele acabou embarcando numa aventura sem volta, atravessando o Atlântico num navio escuro e enferrujado em direção a uma terra distante e desconhecida.

Quando aqui chegou, fez o que qualquer jovem cheio de energia e mal orientado faria. Meteu-se em confusões cada vez mais complicadas, até que minha mãe, desesperada e muito mais consciente, veio em seu socorro com duas crianças a tiracolo, livrá-lo das malhas do destino das quais ele mesmo teceu e se enrolou. Evidentemente, depois de 3 anos e meio tinham muitas contas para acertar, muita mágoa enraizada difícil de arrancar do peito. Do silêncio raivoso e velado, passaram às cobranças dolorosas e às ofensas explícitas. A pouca cultura era facilmente suplantada pela necessidade de respostas a perguntas que jamais seriam completamente respondidas, e os bate-bocas iam tornando-se cada vez mais altos, à medida que o molho de tomates para o macarrão feito em casa subia na panela e borbulhava, preenchendo a pequena cozinha onde se almoçava e jantava, com um aroma suave e saboroso, saudoso de Itália.

Nesses momentos em que a gritaria ganhava cada vez mais volume, eu, aos 5 para 6 anos de idade, pegava meu caderno e me escondia debaixo da mesa para fazer a lição de casa. Essa é minha primeira lembrança do entendimento do que meu pai fazia para nos sustentar. A mesa tinha o tampo de fórmica verde-água, com minúsculos pontinhos dourados brilhantes. Era a novidade americana dos anos 50 que havia chegado ao Brasil dos anos 60. Os pés eram de madeira maciça com 90 centímetros de altura, cônicos, com cerca de 12 centímetros de diâmetro no topo e afinando para uns 5 centímetros na base. Pintados com alguma espécie de tinta preta, própria para a madeira. Estavam firmemente fixados ao tampo em sapatas de madeira com muita cola e parafusos, impossível de soltar.

Era embaixo dessa obra de arte robusta, marca registrada do meu pai, que eu resolvia as primeiras contas aritméticas aprendidas no primeiro ano primário, à meia luz difusa sob a mesa, enquanto do lado de fora da minha cabana improvisada os gritos e xingamentos atingiam decibéis muito acima do tolerável. Absorto nos meus cálculos de complexidade infinita, eu me apartava da confusão entre meus pais, sem absorver nada do que se diziam um ao outro. Nem percebi quando a certa altura, o molho cansado de ferver e gemer, agarrou-se ao fundo da panela, queimando um pouco. Seja porque os nervos estavam à flor da pele, ou porque os sonhos de riqueza haviam se transformado num pesadelo de desilusões, ou porque o cheiro de tomate queimado lembrou seu estômago de que a fome não seria justamente aplacada naquela noite, meu pai atirou a panela com violência contra a parede de azulejos brancos, amarelados pelo tempo.

O molho fervente espalhou-se pela parede como sangue borbulhante de raiva. O barulho do impacto, ao invés de arrefecer os ânimos, multiplicou o ódio dos corações ressentidos. Diante da situação desoladora e encurralado pelos gritos de minha mãe, meu pai fez exatamente o que lhe cabia naquele momento: arrancou um dos pesados pés da mesa e golpeou com ele várias vezes o tampo de fórmica. Eu, alheio a tudo que se passava, despertei do meu estado de torpor estudantil e saí às pressas do abrigo que desmoronava sobre minha cabeça. Surpresos e espantados com minha aparição em cena de modo tão estapafúrdio, meus pais pararam imediatamente a discussão. Corri para os braços de minha mãe, que me acolheu com seu manto de proteção, como só as mães sabem fazer. Um misto de alívio e paz invadiu o pequeno recinto e eu fiquei com a sensação que poderia ser um portador de paz a todos os conflitos, através da minha imparcialidade, distanciamento e calma.

Não que naquela época eu tivesse alguma ideia do que pudesse ser imparcialidade, distanciamento ou até mesmo calma. Conceitos que foram sendo absorvidos e compreendidos durante a jornada de toda uma vida. Mas são as primeiras lembranças e impressões fixadas na memória, mesmo 60 anos depois. Para minha sorte, não me lembro dos conflitos anteriores, que talvez tenham sido muito piores do que esse. Deus, em sua infinita bondade, poupa os pequeninos dos gritos, discussões e agressões verbais, tão doídos como tapas na face ou socos no estômago, para que não os carreguem pela vida como traumas sem explicação. Há o Bem e o Mal em nossos corações. Escolhamos o Bem. Falemos baixinho uns aos outros, como num sussurro de amor e compreensão. As crianças agradecem.

CaMaSa