Ladrões
A dor da fome é cruel. Não estou falando da inanição, que tira todo ânimo e te derruba no chão, sem forças para lutar. Falo da fome que ronca dolorida no estômago, amaldiçoa a existência e te faz um ladrão. Ele perambulava pela vida há pelo menos trinta e poucos anos, pisara terras roxas, secas, agrestes e espinhosas, os macacos de pedra, os cimentos e os asfaltos escuros de todo este país. Já não tinha mais laços, família e amigos, nem nome ou identidade. Era só um fantasma em forma de gente, um conjunto de ossos forrado por uma pele fina, queimada de Sol e lavada de chuva. Os vira-latas famintos das ruas, com os quais disputava os restos de comida nos lixos, tinham mais carne e gordura que ele.
Não cabe aqui sua história explicando os erros que o trouxeram até aqui. Talvez tenha sido somente um, grande o bastante para afogar-se na culpa sem fim, sem volta e sem perdão. Aqui estava, cumprindo seu destino, diante dessa casa bonita, de sonho, do outro lado da rua, com cerca pintada, gramado verdinho pincelado com flores coloridas, amores-perfeitos lindos de viver. De vez em quando, passando pelas vitrines das lojas, via nas telas das televisões casas como aquela, cheias de vida, felicidade e comida. Nessas horas sua boca aguava de vontade, babando a cada prato fumegante de sopa, macarrão com molho de tomate e queijo, arroz com feijão e bifes, grossos, macios e acebolados.
Notou um movimento na entrada da casa, a porta da frente se abriu e dela saíram o pai e a mãe, um casal de filhos pequenos loiros e rechonchudos e um cãozinho branquinho como a neve saltitando entre as crianças. Os pais carregavam malas, maletas e sacolas e colocavam tudo no porta-malas do carro. Acomodaram as crianças e o cachorro no banco traseiro, a mãe sentou-se no banco do passageiro enquanto o pai verificava as trancas das portas e janelas. Quando deu-se por satisfeito, assumiu o volante e partiu com a família sem olhar para trás.
Ele observou tudo à distância, longe, em seus pensamentos de tristeza e desolação. Aos poucos voltou ao seu mundo concreto e físico, com suas entranhas clamando por uma solução. A necessidade, mãe da invenção, lhe trouxe uma ideia esquisita e arriscada de pura tentação. Viu a casa vazia de gente, de vida e de donos, à sua disposição. Deu passos indecisos em sua direção, pulou a cerca baixinha, rodeou pelo corredor lateral até o quintal no fundo e quebrou o vidro da porta com um soco. Com a mão sangrando o sangue ralo abriu o trinco interno da porta e entrou pela cozinha ampla e perfumada de limpeza e frutas. Atacou ferozmente uma banana ainda verde, quase sem tirar-lhe a roupa. Chupou uma laranja e, na sequência, uma manga fiapenta. Mas a fome não aplacava. Acalmava mas não passava.
Olhou para a caixa branca enorme que ronronava baixinho. Puxou a alça da porta lentamente e sentiu o bafo frio de encontro ao seu rosto. Viu uma grande fartura de verduras e legumes, potes diversos e garrafas variadas. Estava cheia. Ele poderia passar um ano com o que tinha ali. Abriu o freezer e olhou para os potes de sorvete encantado. Percebeu um saco transparente envolvendo uma massa vermelha escura. Era carne. Retirou sem pensar o pacote da geladeira e colocou sob a água corrente da torneira da pia. Deixou-a ali até que aquele pedaço de carne, dura como uma pedra, amolecesse devagarinho e voltasse a ser macia. Pingava sangue! Ou ainda era de suas mãos que o fluido vital escorria? Não sabia. Só conseguia pensar no bife. E nas cebolas douradas que o acompanhariam. Procurou nos armários e gabinetes da cozinha alguma panela. Encontrou uma frigideira grande, bonita, marcada por milhares de frituras saborosas que alimentaram aquela família. Cortou duas cebolas em rodelas, picou dois dentes de alho, deitou fios de óleo sobre a frigideira vazia em cima de uma boca do fogão, deixou que esquentasse um pouco, jogou um bife enorme dentro. A carne gritou em contato com a chapa quente. Shhhh… Espalhou a cebola por cima da carne, salpicou sal branquinho e deixou-se invadir pelo aroma saboroso daquela combinação perfeita.
Apesar da urgência dessa fome implacável, teve tempo de raciocinar e concluir que aquilo era uma refeição e, como tal, merecia mesa posta, louças e talheres. Sacou um prato colorido e colocou sobre um guardanapo em cima da mesa ao lado de uma caneca de plástico. Encheu a caneca com um suco de uva encontrado na geladeira e despejou todo o conteúdo da frigideira, bem mal passado, no seu prato. Aspirou o perfume delicioso com imenso prazer, de olhos fechados, lembrando o tempo em que tinha um nome, amor e família. Cortou o primeiro naco de carne, espetou seu garfo e juntou pedaços de cebola, levando com cuidado até sua boca. Na primeira mordida, ouviu um barulho duro, metálico. Era a chave girando na fechadura da porta de entrada, logo depois o estalo da maçaneta e uma voz retumbante e assustadora gritando:
– Só um minuto querida! Vou confirmar se o fogão está apagado e retomamos a viagem.
Não condeno. Minha formação permite julgar, avaliar e pensar de maneira crítica, mas não condenar. Isso só pode ser feito quando calçamos os sapatos de alguém e vivenciamos sua experiência. Neste caso especificamente, tínhamos novíssimas botas de couro marrom com solas grossas de borracha de um lado, e um pé de sandália de tiras, muito gasta e ralada, do outro. Talvez porque no fundo no fundo, somos ainda animais selvagens cobertos por uma fina camada de verniz social, ou porque um pai de família, protetor dos seus, ao ver-se tomado de tamanha surpresa e atingido por uma forte descarga de adrenalina, parte para cima do inimigo perigosíssimo, franzino, esquelético e com a metade do seu peso, com tanta fúria ódio e descontrole que, ao arrastá-lo para fora de sua casa, coberto de socos e pontapés, não se dê conta, alguns momentos depois, que a multidão que acorreu ao local por causa dos gritos, batia sem parar naquele corpo inerte, já sem ar nos pulmões, com um estranho sorriso de felicidade na face encovada.
* * *
Naquele mesmo instante, saía para comemorar com a família e amigos, um ex-dirigente condenado por corrupção, libertado pelo saber jurídico e minúcias legais as quais somente os muito ricos e endinheirados têm acesso. Em um restaurante chique em Nova York, discutiam entre pratos caríssimos e vinhos de cinco dígitos, seu retorno triunfal à vida pública. Sentados à mesa com ternos bem cortados e camisas de linho brancas, de colarinhos sob medida, pavimentaram um futuro brilhante, com um discurso focado na defesa dos pobres e despossuídos, daqueles infelizes coitados que vagueiam pelas ruas do país sem ter o que comer e anseiam por um salvador que lhes dê o peixe, mas sem ensinar a pescar. Afinal, isso é muito perigoso, pois dessa forma eles podem sentir-se livres, com direito a escolher e pensar.
CaMaSa