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Eu li Sérgico

Roubil

Seu nome de batismo era Sérgio, mas como era baixo e magro, logo virou Serginho e depois Sérgico.  Era o final dos anos 70, o mundo passava por transformações (e quando não passou?), e os pós adolescentes ainda não adultos daquela época, também passavam por transformações. E que transformações! De alguma maneira, aqueles que já tinham atingido a maturidade quebraram algumas regras inquebráveis e deixaram portas abertas para os moleques que vinham na sequência. Sexo, drogas & rock’n’roll traziam possibilidades inéditas e inimagináveis para a geração dos seus pais, por exemplo. Mas o caminho dessas novas experiências traziam alertas tenebrosos intimidando os menos afoitos. Havia placas assustadoras indicando perigo, e o perigo era real.

O Rock era, inocentemente, uma das portas de entrada para sexo e drogas. Aqueles que sentiram as trincas estalando na casca do ovo, se atraiam e criavam irmandades secretas onde inicialmente tímidos e pequenos prazeres eram vivenciados. As novas regiões do corpo, saboreadas após os beijos infanto-juvenis, potencializando sensações e desejos profundos e ancestrais, propulsores da preservação e perpetuação da espécie. O verniz social que mantinha moços e, principalmente moças, limitados pelo pecado e pelos interesses financeiros relacionados ao patrimônio e status familiar, havia se espatifado irreversivelmente, como um jarro de cristal. 

Além da descoberta do “sexo sem culpa antes do casamento”, havia a contestação ao sistema político-social estabelecido pela força ou pela fuga da realidade. No fim, se descobria que ambas eram faces da mesma moeda. De uma forma ou outra, estamos presos a um período temporal que vai do nascimento à morte e, ninguém, mas ninguém mesmo, supera essa verdade. Para este relato, vamos pelo caminho das drogas.

Ao contrário do que diziam nossos pais e avós, ninguém te forçava a fumar maconha. Sérgico circulava por todas as rodas da época, das tardes ensolaradas de verão no recém inaugurado clube do Juventus no Parque da Mooca, às praias da Baixada Santista com seus biquínis recheados de corpos bronzeados pelo Sol e aromatizados pelo sal marinho. Ele havia sido expulso do grupo de jovens da São Rafael por ter feito uma guerra de refrigerantes no salão de festas da igreja, com alguns dos elementos que já não rezavam o Pai Nosso e a Ave Maria de acordo com as orientações do Padre Joaquim. Era um grupo de jovens que já tinham um pé na igreja e outro nas dependências pouco esportivas do clube, onde os limites entre o certo e o errado já eram zonas cinza da razão.

Festas, bailes, domingueiras, formaturas, pontos de encontro em botecos e portas de escola, tudo era motivo para fazer correr os cigarros de erva entre os jovens. Sérgico frequentava todos esses locais sem ser discriminado por isso. Pelo contrário, muitos gostavam de não ter que dividir a marijuana. Então, apesar de não usar, ele não era considerado um “careta” como aqueles que não faziam parte da turma. Presenciava o auge e a depressão de cada um como testemunha ocular da insensatez. Ria-se muito para logo depois entrar num período de incompreensão que só terminava quando os efeitos da cannabis terminavam. Sem dúvida era um uso pouco científico da coisa! Mas nunca, nunca mesmo, alguém fez, para usar um termo atual, bullying com ele por não fumar. Nunca foi forçado, até o dia que resolveu experimentar…

Era cético e, como sempre, não se deixou levar por falsas sensações ou pela necessidade de provar algo aos demais. Não sentiu nada. Mas, infelizmente, isso não pôs um ponto final na brincadeira perigosa, mas o estimulou a usar até sentir o que se dizia que era para experimentar. Tornou-se um expert em sentir o mesmo auge e a depressão que percebia nos outros quando não usava. E a necessidade desse falso bem-estar, que vai se tornando cada vez mais curto, nos faz usar cada vez mais. Nunca comprou, mas sempre teve um parceiro para dividir um baseado, ou deixar uma boa quantidade em seu quarto, bem escondido, em segurança. As viagens para Santos e Guarujá foram se tornando cada vez mais constantes. A areia branca, o céu azul, o balanço das ondas em câmera lenta combinavam perfeitamente com o barato da droga. O deslizar das pranchas dos surfistas tornou-se uma obsessão e, assim que foi possível, comprou a primeira tábua para desbravar esse mundo quase infinito depois da arrebentação.

Ele e seu amigo Bem-te-vi resolveram levar o surf a sério e, assim que o amigo conseguiu o primeiro carro, o Bobrão, que era um fuscão abóbora com vários anos de uso, rumaram para o paraíso das ondas, a cidade de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Na bagagem, duas pranchas, 300 gramas de maconha e três ácidos, pretos, em formato de triângulos. Com o entusiasmo nas alturas, pegaram a Dutra e bateram no carro da frente após ter percorrido não mais que 5 quilômetros. Já fumados e loucos para sair da encrenca, deram endereços falsos para os ocupantes do carro atingido e seguiram viagem com o capô do fusca amassado. Desceram a serra de Caraguatatuba e seguiram em direção norte.

Chegaram em Ubatuba à noite, tendo somente tempo de comer alguma coisa no Centro e se jogar no buraco chamado pensão para dormir exaustos. No dia seguinte, tomaram um pingado com pão com manteiga e racharam irmanamente os LSDs, um e meio para cada um. Diferentemente da primeira vez que Sérgico fumou maconha, o ácido bateu forte, muito forte, pra lá de forte! De repente estavam sentados na areia da Praia Grande de Ubatuba, lotada de gente num sábado ensolarado, gargalhando sem sentido um para o outro. Por sorte, surgiram do nada dois amigos, Nero e Carioca, que colocaram as mãos na cabeça quando os viram.

– Meu Deus, o que vocês estão fazendo aqui?

Tiraram os dois de lá imediatamente e os levaram para a praia Vermelha do Sul, isolada e deserta, ideal para aquele estado de doideira. No caminho, Nero desceu do fusca para pegar bananas de uma bananeira à beira da estrada. Ele usava uma bermuda amarela com estampas de folhas de cannabis verdes e, na época, usava uma barba bem cheia. Sérgico olhava para ele no meio das folhagens e via um santo, um Jesus moderno e surfista. Nero e Carioca deixaram os amigos lá em razoável segurança. Na praia, Sérgico fincou sua prancha roxa com parafina verde na areia e via as cores dançarem diante dos seus olhos num movimento psicodélico inebriante. Entrou na água refrescante para tentar voltar pra Terra mas a coisa ficava cada vez mais forte. Subiu com esforço a rampa de areia do mar cavado da praia e deitou no chão. O vento soprava cósmico nos seus ouvidos e ele sentia que estava apoiado no ponto extremo da curvatura do planeta. Atrás do seu corpo, toda a imensa bola azul chamada Terra, viajava pelo espaço sem fim a milhares de quilômetros por hora. Ele já não se comunicava com ninguém, só vivia com grande intensidade a força dos sentidos. Ver, ouvir, cheirar, sentir… intensa mente!

Naquela praia deserta, onde em cinco minutos todo um dia se passou, surgiram três figuras estranhas. Eram jovens, mas feios, muito feios. Eram tortos e desproporcionais de rosto e corpo, totalmente opostos aos padrões de beleza da juventude dourada que todos buscavam ser. Um era gordo, tinha olhos esbugalhados e andava se arrastando. O outro era magro, tinha o rosto marcado e envelhecido, os cabelos longos e quebradiços, mas era jovem. O terceiro era muito alto e muito magro, a tez escura, acinzentada. Mas eram gentis e amistosos. Eles se aproximaram curiosos, como quem chega mansamente perto de dois pássaros coloridos e raros, entorpecidos e impossibilitados de voar. Os três rapazes puseram-se a explicar a origem do tempo e do espaço, a ordem natural das coisas e os segredos que habitam o coração dos homens. O equilíbrio entre a bondade e a maldade e o Conhecimento de si mesmo como fonte da compreensão, gratidão e felicidade. Um deles mostrou uma placa de madeira onde estava esculpido um nome. A todos que perguntam o que estava escrito, Sérgico responde:

– Eu li Sérgico.

Chegaram tarde da noite na pensão e acordaram no dia seguinte sem saber o que havia sido sonho ou realidade no dia anterior. Sérgico viveu mais alguns anos nessa intensa busca de si mesmo até que teve a sorte de encontrar quem mostrou o caminho para dentro. Da forma mais simples e eficaz, ele pôde acessar a verdade que habita debaixo do nariz e se libertou de todo e qualquer tipo de dependência. Perdeu vários amigos, muito jovens, que não tiveram a mesma sorte e foram dominados ao invés de dominarem seus desejos. Isso não fez dele melhor do que ninguém, mas permaneceu vivo e em paz até os dias atuais. Como todo mundo, não se sabe por quanto tempo, mas vive um sentimento de gratidão sincero a cada despertar, a cada novo dia. Feliz daquele que se descobre aluno, nesta grande sala de aula da vida, com seu Mestre.

CaMaSa

Urrei Leão

Roubil

Você é a favor do terrorismo? Melhor dizendo, você acredita que há momentos históricos em que os fins justificam os meios, mesmo sendo esses meios, corpos despedaçados de crianças inocentes? Pelo menos consegue compreender que esses atos gerarão uma reação violenta, oposta e proporcional para voltar à normalidade? Algumas coisas são discutíveis e toleráveis no campo das ideias, mas indiscutíveis e intoleráveis no mundo real.

Recentemente, zapeando pelos shorts do Youtube, fui atraído pela linda imagem de um imponente leão africano deitado sobre a barriga, com suas enormes patas dianteiras esticadas à sua frente, como uma esfinge. Um macho adulto, provavelmente líder do harém, com uma juba volumosa agitada levemente pelo vento aquecido pelo Sol escaldante. Abaixo dele, brincando despreocupadamente, um lindo filhote de alguns meses pulava abaixo da cabeça enorme do seu pai, aparentemente adormecido.

De repente, num movimento extremamente rápido, certeiro e cruel, o leão abocanhou o pequeno filhote com uma mordida de 400 kg, matando-o instantaneamente. Ouviu-se apenas o KLANC dos ossos partidos e tudo voltou ao silêncio do vento e dos insetos novamente. Passar por este planeta não é para amadores…

Faço uma ideia de mim como uma boa pessoa. Eu cheguei num estágio da vida em que somente vivo e deixo viver. Me afasto das pequenas e grandes discussões. O assassinato, tirar a vida de alguém, está no nível mais alto do crime. Sinceramente, não gosto de matar nem uma formiga. Vejo nelas a mesma energia vital que me mantém vivo, e tudo mais. No entanto, já matei um gato.

Era um gatinho minúsculo, branquinho, que havia sido enterrado vivo num buraco de onde havia sido retirada uma estaca de madeira com mais ou menos 12 por 12 centímetros. Crianças de 7 a 9 anos, menores que eu e meu amigo na casa dos 11 a 12, haviam jogado o pequeno animal nessa mini cova de 30 centímetros de profundidade e coberto com alguma terra. 

Quando percebemos o que estava acontecendo, socorremos o infeliz gatinho desacordado e sujo de terra. Decidimos que ele estava mais morto que vivo e resolvemos dar um fim ao seu sofrimento da maneira mais rápida possível. Naquela época, formava-se sob uma das torres de transmissão de energia uma pequena lagoa, de uns 6 metros de diâmetro e meio metro de profundidade. Nenhuma criança se aproximava daquela água, perigosa e traiçoeira, segundo os mais velhos.

Tivemos a brilhante ideia de passar um pedaço de barbante pela barriga do gato e amarrá-lo a um pedaço de tijolo partido. Seguramos o tijolo um de cada lado, cúmplices de um ato que parecia ser normal e lógico então. Um, dois, três… e lançamos gato e tijolo ao meio da lagoa. 

O impacto com a água fria ressuscitou o gatinho que, agora desperto, lutava com todas as suas forças para se manter na superfície. Girava rapidamente as patas dianteiras enquanto o peso do tijolo o mantinha 2 centímetros abaixo da linha da água. Nós assistíamos desesperados aquela cena absurda, paralisados pelo terror e medo de entrar na água turva para salvar o bichano. “Entra você!” “Eu não, vai você…” Até que aos poucos, suas forças esvaíram, e ele afundou sem ar nos pulmões, com sua pelagem agora limpa e branca balançando ao sabor da água em câmera lenta.

Existem grandes e pequenos erros. A morte é irreparável.

Você é a favor do terrorismo de esquerda ou de direita?

CaMaSa

As duas mortes do Paulinho

Roubil

As duas mortes do Paulinho

Conheci o Paulinho poucos anos depois que nasci e, de cara a identificação foi muito grande. No colégio, na São Rafael, no clube, na vizinhança. Amizade mantida por quase 60 anos! Em parte porque seu bom senso, equilíbrio e inteligência estavam sempre evidentes e à disposição. Em parte porque essas qualidades passavam longe de mim e ele era minha fonte de inspiração. Eu aprendia a ser melhor em sua companhia. E eu precisava desesperadamente ser melhor…

Lembro de uma passagem incrível! Fazíamos o cursinho do Anglo, na Rua Tamandaré, no século passado. Eu tinha um incrível Chevette bege, com rodas, parachoques e retrovisores pintados de preto fosco. Ele pegava carona comigo e realmente prestava atenção às aulas, porque tinha um plano, um objetivo, uma meta. Tornar-se engenheiro, seguir uma carreira, um bom emprego, uma vida honesta e confortável. Já eu, indolente e displicente, ia para o curso somente para me divertir e paquerar. Eu carregava no coração uma rebeldia estéril e perigosa, que quase pôs um fim nos sonhos do Paulinho.

Certo dia, voltando do Anglo por volta da hora do almoço, num dia triste e frio, cinzento, atravessei o Viaduto São Carlos, à época calçado com paralelepípedos, em grande velocidade, tendo o Paulinho cada vez mais tenso ao meu lado, segurando-se onde fosse possível. Não existiam cintos de segurança, e se existissem, não usávamos. Virei à direita na Sarapuí e cruzei o farol da Rua Jumana a mais de 100 km/h, motor rugindo a bateção do cabeçote cada vez mais forte, rasgando a Rua Dom Joaquim de Melo cada vez mais rápido e se aproximando da curva que desemboca na Rua Celso de Azevedo Marques numa velocidade não permitida pela física.

O carro levantou as duas rodas do lado do passageiro e, lentamente, muito lentamente, foi girando sobre si mesmo num looping sem fim. Nos espatifamos num poste de concreto do outro lado da rua, dividindo o veículo e seus ocupantes em algumas partes. Meu amigo foi lançado pelo pára-brisas e, na sequência, atropelado algumas vezes pelo Chevette, tendo 18 ossos do corpo partidos, perfurações em vários órgãos e esmagamento craniano, provocando, em frações de segundos, dores e sofrimentos inenarráveis. Mas foi tudo tão rápido e tão eterno, que ele mal percebeu quando soltou a última exalada e caiu nos braços do Universo! Essa foi a primeira morte do Paulinho.

No entanto, porque não era chegada a hora e tínhamos um destino a cumprir, Deus, em sua infinita bondade, operou um pequeno milagre e, no exato momento em que os pneus  se levantaram a 30 centímetros do chão, pressionou levemente o teto do carro para baixo, como faz uma criança com seu carrinho de brinquedo, e o carro retomou sua trajetória apenas com algumas leves derrapadas. Nos deu uma segunda chance. O Paulo saiu da sua imensa calma e tranquilidade natural e explodiu num elogio:

– Nino, você é um grande filho da puta!!!!

E ele tinha razão, muita razão… A partir dali, procurei cada vez mais aprender com ele, adquirir a mesma responsabilidade e consciência que ele sempre teve. Seguimos nossos destinos, criamos nossas filhas e mantivemos contato sempre. Ele sempre admirou tudo que eu escrevo, sendo capaz de através da sua racionalidade e inteligência, interpretar as coisas que emergem do meu coração.

Sua segunda morte foi hoje, em sua casa, em seu leito, tranquilo e sossegado, sem dor e aflição, na santa paz de Deus. Cumpriu com louvor e dignidade sua missão aqui nesta Terra.

CaMaSa

Brigas

Roubil

Recentemente foi anunciada com grande estardalhaço a luta entre um ex-boxeador campeão mundial e um ex-big brother fanfarrão. A publicidade exaltava o caráter conflituoso do embate, muito mais uma briga de rua do que um combate pugilístico, definido por regras específicas. A tal luta do século terminou de forma vexaminosa em 36 segundos, com um dos oponentes estatelado no chão. Eu não vi, mas a enxurrada de vídeos e memes replicados nas redes sociais, me trouxe à lembrança brigas verdadeiras, dessas de partir narizes e corações. Uma em especial aconteceu debaixo do meu nariz, ou melhor, sobre mim, nos meus tenros e inocentes primeiros anos de vida. Havíamos recém mudado para um novo endereço, numa rua qualquer da Mooca, próximo ao centro da cidade de São Paulo. O imóvel alugado era um pequeno galpão no andar térreo de um prédio de 3 andares, o Edifício Marly, onde meu pai instalou sua marcenaria. Nossa moradia era nos fundos, um quarto, sala e cozinha, bem apertados.

Meu pai era um excelente artesão marceneiro. Ele não tinha, digamos, delicadeza, seus móveis eram maciços e pesados, feitos para “durar para sempre”. Aprendeu o ofício em sua terra natal, num pequeno vilarejo da Itália, no alto de uma montanha, na província de Salerno, ao sul de Nápoles. Teve como mestre um paisano que o arrastou para o Brasil anos mais tarde, em busca de sonhos de riqueza. Ou pelo menos de comida na barriga. Já era casado e deixou para trás minha mãe, grávida da segunda filha, e a minha irmã mais velha, então com 3 anos. O pós-guerra deixou a parte mais pobre da Europa sem esperanças e ele acabou embarcando numa aventura sem volta, atravessando o Atlântico num navio escuro e enferrujado em direção a uma terra distante e desconhecida.

Quando aqui chegou, fez o que qualquer jovem cheio de energia e mal orientado faria. Meteu-se em confusões cada vez mais complicadas, até que minha mãe, desesperada e muito mais consciente, veio em seu socorro com duas crianças a tiracolo, livrá-lo das malhas do destino das quais ele mesmo teceu e se enrolou. Evidentemente, depois de 3 anos e meio tinham muitas contas para acertar, muita mágoa enraizada difícil de arrancar do peito. Do silêncio raivoso e velado, passaram às cobranças dolorosas e às ofensas explícitas. A pouca cultura era facilmente suplantada pela necessidade de respostas a perguntas que jamais seriam completamente respondidas, e os bate-bocas iam tornando-se cada vez mais altos, à medida que o molho de tomates para o macarrão feito em casa subia na panela e borbulhava, preenchendo a pequena cozinha onde se almoçava e jantava, com um aroma suave e saboroso, saudoso de Itália.

Nesses momentos em que a gritaria ganhava cada vez mais volume, eu, aos 5 para 6 anos de idade, pegava meu caderno e me escondia debaixo da mesa para fazer a lição de casa. Essa é minha primeira lembrança do entendimento do que meu pai fazia para nos sustentar. A mesa tinha o tampo de fórmica verde-água, com minúsculos pontinhos dourados brilhantes. Era a novidade americana dos anos 50 que havia chegado ao Brasil dos anos 60. Os pés eram de madeira maciça com 90 centímetros de altura, cônicos, com cerca de 12 centímetros de diâmetro no topo e afinando para uns 5 centímetros na base. Pintados com alguma espécie de tinta preta, própria para a madeira. Estavam firmemente fixados ao tampo em sapatas de madeira com muita cola e parafusos, impossível de soltar.

Era embaixo dessa obra de arte robusta, marca registrada do meu pai, que eu resolvia as primeiras contas aritméticas aprendidas no primeiro ano primário, à meia luz difusa sob a mesa, enquanto do lado de fora da minha cabana improvisada os gritos e xingamentos atingiam decibéis muito acima do tolerável. Absorto nos meus cálculos de complexidade infinita, eu me apartava da confusão entre meus pais, sem absorver nada do que se diziam um ao outro. Nem percebi quando a certa altura, o molho cansado de ferver e gemer, agarrou-se ao fundo da panela, queimando um pouco. Seja porque os nervos estavam à flor da pele, ou porque os sonhos de riqueza haviam se transformado num pesadelo de desilusões, ou porque o cheiro de tomate queimado lembrou seu estômago de que a fome não seria justamente aplacada naquela noite, meu pai atirou a panela com violência contra a parede de azulejos brancos, amarelados pelo tempo.

O molho fervente espalhou-se pela parede como sangue borbulhante de raiva. O barulho do impacto, ao invés de arrefecer os ânimos, multiplicou o ódio dos corações ressentidos. Diante da situação desoladora e encurralado pelos gritos de minha mãe, meu pai fez exatamente o que lhe cabia naquele momento: arrancou um dos pesados pés da mesa e golpeou com ele várias vezes o tampo de fórmica. Eu, alheio a tudo que se passava, despertei do meu estado de torpor estudantil e saí às pressas do abrigo que desmoronava sobre minha cabeça. Surpresos e espantados com minha aparição em cena de modo tão estapafúrdio, meus pais pararam imediatamente a discussão. Corri para os braços de minha mãe, que me acolheu com seu manto de proteção, como só as mães sabem fazer. Um misto de alívio e paz invadiu o pequeno recinto e eu fiquei com a sensação que poderia ser um portador de paz a todos os conflitos, através da minha imparcialidade, distanciamento e calma.

Não que naquela época eu tivesse alguma ideia do que pudesse ser imparcialidade, distanciamento ou até mesmo calma. Conceitos que foram sendo absorvidos e compreendidos durante a jornada de toda uma vida. Mas são as primeiras lembranças e impressões fixadas na memória, mesmo 60 anos depois. Para minha sorte, não me lembro dos conflitos anteriores, que talvez tenham sido muito piores do que esse. Deus, em sua infinita bondade, poupa os pequeninos dos gritos, discussões e agressões verbais, tão doídos como tapas na face ou socos no estômago, para que não os carreguem pela vida como traumas sem explicação. Há o Bem e o Mal em nossos corações. Escolhamos o Bem. Falemos baixinho uns aos outros, como num sussurro de amor e compreensão. As crianças agradecem.

CaMaSa