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A célula ficava num lugar tão secreto, mas tão secreto, que ninguém, além dos três, sabia onde ficava. Alberto, codinome Alfa Berto, fumava um cigarro após outro enquanto andava aos círculos pela sala estreita. Estava com ele o companheiro José Teodósio, codinome Zé mesmo, legítimo representante da classe operária oprimida e explorada pelo capitalismo selvagem, ainda que ele não tivesse a menor ideia do que o outro falava. Esperavam a companheira Rúbia, codinome Ruby, que havia saído ao encontro de um superior para receber as instruções para a missão. Alberto tinha antipatia por ela. Achava que ela era bonita demais, muito arrumada, sem buço e de sovacos raspados. Muito burguesa para seu gosto.

Ruby era argentina, havia participado do movimento estudantil em Buenos Aires, no conturbado início dos anos 60, tendo testemunhado a Noche de los Bastones Largos, quando a Diretoria Geral de Ordem Urbana da Polícia Federal Argentina invadiu e expulsou de cinco faculdades da Universidade de Buenos Aires (UBA), na Argentina, os estudantes, professores e funcionários que haviam ocupado os locais em oposição à decisão do tenente general Juan Carlos Onganía de intervir nas universidades e anular o regime governamental. Ela estava na Faculdade de Ciências Exatas, e viu quando Rolando García, o reitor da época, foi ao encontro dos policiais, dizendo ao oficial que estava executando a operação:

– Como ele ousava cometer esse ultraje? Eu ainda sou o reitor desta casa de estudos.

Um guarda enorme e corpulento golpeou-lhe a cabeça com o cassetete. O reitor levantou-se com sangue no rosto e repetiu suas palavras: o grandalhão repetiu o golpe em resposta.

Um total de 400 pessoas foram presas e laboratórios e bibliotecas universitárias destruídas. Ruby, que já tinha uma participação efetiva nos movimentos reformistas, aderiu cada vez mais às atividades contra o governo, perdendo aos poucos sua identidade civil e integrando os quadros revolucionários latino-americanos. Esteve em Cuba, Colômbia, Peru e Bolívia. Participou de diversas atividades até que numa delas sofreu uma emboscada e foi gravemente ferida na cabeça. Perdeu um dos belíssimos olhos azuis, substituído posteriormente por um brilhante e sem vida olho de vidro. Foi transferida pela F.I.P.U.L. – Frente Internacional Planetária Unida Livre –, para uma região mais tranquila. Veio para o Brasil.

Ruby chegou ao local combinado, a igreja São Rafael, na Mooca, logo após a hora do almoço. A igreja tem um estilo único, Art Decó, caracterizado pelo uso de formas geométricas ou estilizadas em detrimento das formas orgânicas que eram frequentes no estilo Art Nouveau. Diferente desse estilo, o Art Déco prezava pela simplicidade da forma, sendo comum o uso da figura feminina e da figura de animais. Este estilo teve influências dos princípios do Cubismo. Ruby estava sentada no terceiro banco de madeira, do lado direito da nave, conforme as instruções que havia recebido por telefone, muito admirada pelo estilo retilíneo e elegante da igreja. Ela seria contatada pela companheira Doutora, apelidada DR, que lhe daria as orientações verbalmente. O local estava completamente vazio quando ela percebeu uma lenta aproximação. Uma mulher jovem sentou-se no banco atrás dela e imediatamente começou a falar frases desconexas que a princípio pareciam ser um código desconhecido:

– Não olhe pra trás! Ordenou. – Se hoje é o Dia das Crianças, ontem eu disse que criança… o dia da criança é dia da mãe, do pai e das professoras, mas também é o dia dos animais. Sempre que você olha uma criança, há sempre uma figura oculta, que é um cachorro atrás, o que é algo muito importante. Primeiro, eu queria te dizer que eu tenho muito respeito pelo ET de Varginha. E eu sei que aqui, quem não viu conhece alguém que viu, ou tem alguém na família que viu, mas de qualquer jeito eu começo dizendo que esse respeito pelo ET de Varginha está garantido. Então, para mim, essa bola é o símbolo da nossa evolução. Quando nós criamos uma bola dessas, nós nos transformamos em homo sapiens ou mulheres sapiens.

Terminou de falar, levantou-se e saiu lentamente, enquanto Ruby aguardava por mais instruções, pelo menos alguma que fizesse algum sentido. Depois de alguns minutos de tensão e espera, virou-se e viu que estava novamente só, sem entender absolutamente nada do que havia acontecido. Percorreu toda a igreja com os olhos e percebeu um pedaço de papel dobrado sobre o banco onde DR havia sentado. Pegou o bilhete e saiu de lá rapidamente. Pegou um táxi e voltou para o esconderijo, onde os companheiros a aguardavam ansiosos.

Mais cedo, naquela manhã, o padre Valentino tinha recebido a visita do padre Péricles, diácono da diocese de Santo Amaro, para uma visita amigável. Circularam por toda paróquia e, depois de tomarem um café quentinho e saboroso, sentaram-se num dos bancos da igreja para conversar sobre as dificuldades atuais enfrentadas pelos católicos em todo mundo e, mais importante, os próprios problemas. Valentino expôs os problemas de sua paróquia, de ordem material e espiritual, não deixando claro qual era a ordem de prioridade entre elas. A igreja necessitava de reformas, havia infiltrações e paredes precisando de tinta, até Santo Antônio das Paredes estava com o nariz descascado, como quem tinha tomado muito sol sem passar hipoglós! Mas as contribuições eram mínimas, mal davam para o custeio das despesas regulares. Recentemente, no entanto, um dos paroquianos, cumprindo uma promessa ao santo, trouxe uma moeda de ouro, aparentemente valiosa! Mas nosso bom Valentino não sabia como conseguir o maior valor por ela.

O rechonchudo, prestativo e bondoso padre Péricles, vindo de paróquia mais abonada, frequentada por cidadãos da mais alta estirpe, conhecedores profundos do mundo das finanças, e do submundo também, contou que estes haviam lhe mencionado certos mercadores de ouro, bons negociantes, sempre prontos para adquirir o vil metal. Sabia de um, inclusive, interessadíssimo especialmente em moedas. Era um velho judeu, bem sovina, mas que aceitava pagar acima do valor de mercado quando negociava certos tipos de moedas douradas. Tirou do bolso da batina um pequeno caderninho, anotou nome e endereço, e entregou ao padre Valentino. Este ficou tão agradecido que nem lembrou, quando colocou o papel dobrado em seu bolso, que este estava furado. Quando se levantou para acompanhar o visitante até a saída da igreja, não percebeu que o bilhete havia caído sobre o banco de madeira.

O companheiro Alfa Berto tentava explicar pela décima vez ao companheiro Zé o significado da mais-valia, quando ouviram três toques, seguidos de mais um, seguidos de mais dois toques na porta. Era a companheira Ruby que retornava finalmente! Ela estava com os cabelos lisos e negros levemente desalinhados, formando uma moldura perfeita naquele rosto fino, de pele clara e sedosa, contrastando lindamente com os olhos azuis, da cor do céu, limpo e sem nuvens, enfeitados por uma boca de lábios macios e vermelhos, naquele momento entreabertos e exibindo os dentes brancos e brilhantes como porcelana. Alfa Berto pensava seriamente em comunicar aos seus superiores que a aparência, e o jeito excessivamente sensual da companheira, não eram adequados aos interesses revolucionários da F.I.P.U.L., mas sempre reconsiderava quando ela começava a falar com aquela voz melodiosa, cheia de sotaque portenho, envolvente e desconcertante.

Ruby relatou aos companheiros tudo o que havia acontecido, em todos os pormenores, para que eles pudessem ajudá-la a compreender a mensagem verbal que havia recebido da companheira Doutora, DR, pois ela mesma não fazia a menor ideia do que poderia significar. Alberto ouvia atentamente enquanto Zé fazia cara de quem compreendia toda aquela mensagem cifrada, chegando muito próximo da expressão facial de um sábio matemático, pronto para gritar Eureka! Depois de horas debruçados sobre o problema, exaustos e a ponto de desistir, ela lembrou-se do papel deixado sobre o banco da igreja e exibiu-o aos outros dois. Abriu-o cuidadosamente sobre a mesa de fórmica verde água e os três leram apreensivamente o que nele estava escrito:

BARUCH – AVENIDA PAULISTA, 1412

CaMaSa