Esta é uma estória do tempo em que as fofocas eram ditas a boca pequena, ainda não existia internet e redes sociais, e as pessoas, entre as quais padres e freiras, não podiam amar livremente. Ela é, como sempre, baseada em trechos de conversas interrompidas, sem conclusão, um ou outro nome meio esquecido, uma ou outra palavra perdida nos vãos da memória e da confusão. Ouvindo essas coisas entro numa espécie de transe, ouço atento nem pisco, olho a pessoa mas já não estou lá. Vejo-me entre os personagens descritos, vagueio entre eles sentindo seu cheiro, seu gosto e suas cores. Claro que trocarei os nomes dos envolvidos, nossa freira não se chamava Amara e, pelo contrário, ela era muito doce e gentil.
O colégio, palco do nosso drama, também não se chamava Colégio Divino Coração em Chamas e para ser o mais verossímil possível, digo que se localizava em São Paulo, em bairro nobre e elegante. Pelos extensos corredores de ladrilhos hidráulicos absurdamente limpos, polidos e brilhantes, circulavam diariamente alunos, professores, serventes e funcionários da administração, todos e tudo regidos com mão de ferro pelas freiras Marianas. Cada setor da escola, da biblioteca ao jardim, tinha uma irmã responsável pelo gerenciamento das atividades de cada funcionário contratado e nada fugia desse controle. Lâmpadas, fechaduras, carteiras, bancos, lousas sempre limpas para as aulas do dia seguinte, com a quantidade exata de giz a ser usado de acordo com a matéria, exaustivamente preparada pelos professores e supervisionada pela freira encarregada da correspondente disciplina. Os fundamentos cristãos eram cuidadosamente inseridos nos conceitos científicos, permeando todas as disciplinas, da Matemática à Língua Portuguesa, da História à Geografia, da Física à Química, do Francês ao Latim. Isso não desmerece tais fundamentos, vez que são aplicados por seres humanos humanos sujeitos a erros como qualquer um, ainda que freiras. Errare humanum est, perseverare autem diabolicum!
Entre erros e acertos (milhares de acertos para pouquíssimos erros), dedicavam-se aos serviços na Secretaria do colégio, duas jovens irmãs recém-casadas, cujos filhos Laís, Pedro e Paulo, de Ana, e Rita e Lúcia, de Joana, puderam frequentar uma escola de tão alta qualidade, devido ao trabalho das mães. Ana deslocava-se com seu Fusquinha pela cidade aos primeiros raios do Sol, levando consigo as cinco crianças. Uma escadinha de 10, 9, 7, 6 e 5 anos. Começava o trabalho às seis horas da manhã e terminava o turno ao meio dia. Ana deixava o carro para Joana e voltava de condução. Sua irmã dava início então, indo até às seis da tarde e voltava para casa com as crianças que passavam o dia na escola, entre aulas, estudos, tarefas e períodos de inatividade. Num desses períodos ociosos, o pequeno Paulinho, arteiro da planta dos pés até a ponta dos cabelos loiríssimos, quase platinados, deixou irmãos e primas estudando na biblioteca com a desculpa que ia ao banheiro. Seguiu pelo corredor vazio, desceu as escadas e foi em direção ao imenso jardim interno, nos fundos do colégio. Gostava de vaguear entre as árvores frutíferas do pomar, caçando mangas maduras no pé. Avistou uma amarelinha no alto da copa e trepou rapidamente por entre os galhos. O fruto soltou fácil, com um leve puxãozinho. Deu a primeira dentada e puxou a casca com os dentes, sentido o perfume delicioso exalado. Nesse exato momento ouviu um barulho. Passos e vozes aproximaram-se afobados do tronco da mangueira. O menino ficou em silêncio, prendeu a respiração para não ser descoberto. Reconheceu a irmã Rosinha, seguida pelo motorista da escola, o Tobias. Os dois se abraçaram bem abaixo do garoto estupefato, agora de olhos arregalados. Quando os amantes se beijaram, suas mãos perderam as forças e a manga escorregou entre os seus dedos, indo se estatelar na cabeça do motorista!
Tobias nem teve tempo de levar a mão à cabeça. Paulinho perdeu o equilíbrio e caiu por cima do pobre, rolando os dois pelo chão. Não se sabia dizer qual dos três estava mais surpreso e assustado. O menino pela confusão, a freira pelo constrangimento ou o motorista que pensava estar sendo punido por Deus! O casal, refeito do susto, encontrou uma rápida solução. Ralharam com a criança, ameaçando-o com o castigo divino caso ele falasse com alguém sobre coisas que ele imaginava ter visto e, por trepar em árvores pondo a vida dos outros em perigo, seria trancado no barraco de ferramentas da irmã Amara, responsável pelo jardim. E lá ficou o garoto trancado no escuro, sozinho, com medo e arrependido de ter visto coisas que não compreendia e não deveria ter visto.
Joana procurou o sobrinho por todo o colégio com o auxílio dos demais funcionários e freiras, até que finalmente chegaram ao pequeno depósito de ferramentas. Abriram a porta que estava trancada por fora com um simples trinco e encontraram Paulinho sentado no chão, o rosto entre as pernas, chorando baixinho. O menino não falava nada, estava completamente mudo, sem explicar como havia sido trancado lá. A tia concluiu que ele havia feito alguma traquinagem e a irmã Amara castigou seu sobrinho, trancando-o no pequeno galpão. Procurou a freira para saber o que havia se passado, mas soube que ela e a irmã Rosinha haviam sido levadas pelo motorista Tobias ao Mappin, no centro da cidade, para fazer algumas compras. Reuniu a criançada, embarcou todos no Fusquinha e voltou para casa ao encontro da irmã. Resumiu em poucas palavras o que havia ocorrido e entregou o garoto aos cuidados da mãe.
Ana não conseguiu arrancar explicação alguma do filho e prometeu que no dia seguinte tiraria essa história a limpo. Não conseguia pregar os olhos. O que mais lhe doía era a traição. Amava a irmã Amara, sempre carinhosa com as crianças, sempre disposta a ajudar, amiga e verdadeira, uma grande inspiração. Como ela podia ter feito isso? Passou a noite acordada pensando no que diria à freira. Acusaria, ofenderia e ameaçaria ir à polícia. Não foi necessário. Ao acordar no dia seguinte, encontrou o marido imóvel, xícara de café suspensa no ar, diante da televisão. O jornal da manhã noticiava o caso da freira que na tarde anterior havia sido presa por furto no Mappin. Ela havia sido pega roubando uma calcinha, escondida em seu hábito. Era a irmã Amara!
* * *
Naquela tarde, depois de trancarem o menino no galpão de madeira, Tobias e a irmã Rosinha encontraram a irmã Amara em frente ao colégio. As duas foram encarregadas de comprar toalhas e guardanapos de linho para a mesa de jantar do restaurante oficial, reservado a visitantes ilustres. Irmã Amara sentou-se no banco da frente ao lado do motorista e não percebeu quando este e a noviça de vinte e poucos anos, metade de sua idade, trocavam olhares apaixonados e suspeitos. Eles haviam decidido, em parte pela tensão ocorrida horas antes, em parte porque a paixão já não cabia em seus corações, fugir para o Rio de Janeiro e dar início a uma nova vida juntos. Rosinha sentia vergonha de consumar seu amor pela primeira vez, usando calcinhas largas e puídas de linho grosso que compunham a vestimenta das freiras. Imaginou entregar-se desnuda, mas considerou isso um pecado. Circulando pela loja, ao passar pela seção de moda feminina, pegou uma calcinha vermelha de rendas e, temendo ser vista, enfiou rapidamente no bolso da companheira sem que essa percebesse.
Flagrada, assustada e absolutamente inocente, sem entender o que estava acontecendo, irmã Amara foi fichada e condenada, sendo preciso a intervenção de advogados da arquidiocese paulistana para liberá-la da prisão. Foi transferida para uma pequena e desconhecida diocese no interior do Estado, no meio de uma enorme fazenda, onde pôde cuidar de plantas e flores. Quanto a Rosinha e Tobias, tiveram seis filhos, seguindo fielmente o preceito cristão: “Crescei e multiplicai-vos”.
CaMaSa