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Eu não devia contar esta estória porque tem muita gente conhecida, facilmente identificável, que deve se reconhecer ou ser reconhecida logo de cara, e alguém pode se ofender. Em todo caso, vou trocar os nomes e descrever detalhes falsos da aparência, na esperança de que ninguém as reconheça. Mesmo porque, tenho certeza que quem lê o que eu escrevo não está interessado nos detalhes pessoais dos personagens, ainda que sejam atos impublicáveis, desses que não devem ser mencionados nem mesmo no confessionário do padre Valentino, à meia-noite de uma Sexta-feira Santa. Confio na discrição de todos, certo de que não haverá comentários maliciosos e discussões acaloradas tentando apontar esse ou aquele possível participante do episódio em questão.

Certa noite, o Zecão, vamos chamá-lo ficticiamente Zecão, voltava do baile de salão do Bola Redonda, na Brigadeiro, a pé, como sempre fazia. Estava acompanhado do Rapa, do Minhoto e do Boca de Trigo, companheiros inseparáveis de todas as horas. Desciam a ladeira contando vantagens, falando das moças cheirosas, de cabelos brilhantes e pernas longas, que rodopiavam por todo salão. No fim da Brigadeiro viravam à direita para o viaduto Dona Paulina, passavam pela Praça Dr João Mendes, desciam a Tabatinguera, pegavam a Avenida do Estado, cruzavam o rio em direção à Radial Leste e percorriam todo viaduto até dobrar à direita na Rua dos Trilhos, para finalmente dobrar novamente à direita na Visconde de Laguna. Era uma caminhada e tanto, regada a conversa fiada e rum ou vinho baratos.

Evidentemente chegavam destroçados, com os pés ardendo e as vistas embaçadas de sono e cansaço. Na esquina da Vila Rodolfo Crespi havia o açougue do Seo Petrônio, famoso pelas facas afiadas que cortavam com facilidade as carnes mais duras e mantinham afastados os marmanjos de suas filhas, e suas carnes macias… Ele morava com a família no sobrado sobre o armazém, mas como era madrugada de sábado para domingo, o açougueiro, a mulher Clotilde e as filhas, Marabel e Maribel, estavam na Praia Grande, aproveitando o fim de semana. O estabelecimento tinha uma porta de enrolar, de ferro, com um sistema de fechamento de barras laterais, com uma fechadura central de chave comum, a 1,10 m de altura, além do cadeado de chão. 

Quando os quatro amigos passavam pela porta do açougue, perceberam uma fumaça branca, bem rala, saindo pelo respiro da parede. Acharam o fato estranho e se puseram a procurar uma forma de descobrir o que estava acontecendo. Zecão olhou pelo pequeno buraco de fechadura do portão de ferro e, entre espantado e assustado, viu a chama brilhante do fogo! Fogo? Fooogooo! Em 2 minutos e 18 segundos toda vila estava envolvida no processo de transportar água para a frente do açougue.

A vila era uma rua estreita com casas pequenas dos dois lados, em toda sua maioria ocupada pelos operários, e seus descendentes, que trabalhavam no cotonifício Crespi. Ela terminava no muro do estádio do Juventus, da Rua Javari, nas costas do gol leste, famoso por ser onde o rei Pelé fez o gol mais bonito de sua carreira. Zecão e sua família moravam na última casa à direita, e dela, no terraço construído especialmente para isso, tinha-se uma visão total e privilegiada do campo. Em dias de jogos, amigos e parentes reuniam-se no terraço para tomar cerveja, comer amendoim torrado e xingar o goleiro adversário. No dia em que Pelé fez esse gol, o estádio estava lotado, todos querendo ver de perto esse menino de 19 anos que vinha encantando no campeonato. Mas não era um bom dia para o futuro rei, até então, que estava muito apático e apagado. A torcida do Juventus gritava e vaiava a cada vez que ele tocava na bola e, num chute em direção ao gol, a bola subiu muito acima do normal e foi cair no terraço. Na festa que se seguiu, Zecão gritou a pleno pulmões: — Seu bola muuuurcha!

Por obra do destino o grito saiu num momento de silêncio no campo, o suficiente para que Pelé ouvisse. Ele focalizou o torcedor no terraço da casa e fez um sinal com a mão direita, como quem diz: — Me aguarde… 

Quem viu não esquece! O moleque ficou endiabrado, destruiu o Juventus e pra coroar a exibição magnífica, a certa altura do jogo recebeu um passe da direita, deu o primeiro chapéu entrando na área, deu o segundo e deu o terceiro. Ainda teve tempo de chapelar o goleiro, que saiu do gol desesperado catando vento, arrematando de cabeça para o gol. O público, a favor e contra, gritou seu nome por mais de 10 minutos!

Assim era a vila naquele tempo, para o bem ou para o mal, uniam-se para buscar soluções ou preparar comemorações. Mas no momento a prioridade era o incêndio no açougue e estavam lá homens, mulheres e crianças, nonnos e nonnas, cada um contribuindo com seu balde, sua bacia ou seu copo d’água em punho na luta contra o fogo. Muitos até já sentiam o cheiro de churrasco, da carne queimada, do sebo crepitando e estalando nas chamas. Os mais fortes tentavam abrir a porta de ferro com as próprias mãos, usavam cabos de vassoura, corriam na busca de ferramentas. Os bombeiros haviam sido chamados e surgiriam a qualquer momento.

Na fila indiana que se formou para o transporte da água, estava a neta da dona Santa, a levada Ziquinha, com a carinha sardenta e as maria-chiquinhas presas firmemente nas laterais da cabeça. Para uma criança de 8 anos toda aquela movimentação era uma farra e encontrar uma forma de tornar tudo mais divertido fazia parte. A menina encontrou o passatempo de molhar os dedinhos na água e espirrar na nuca das pessoas. Quando alguém se virava pra entender o que estava acontecendo, ela gritava: – Foi fulano que cuspiu! E caia na gargalhada.

Mas uma gota dessa brincadeira resvalou no rosto de Elvira, irmã da Carmela, que tomando as dores da irmã ralhou com Ziquinha. A menina correu para os braços da avó, que assustada respondeu a Carmela que cuidasse do próprio nariz, grande e espinhudo como uma jaca! A ofensa não passou em branco pelo filho de Elvira que devolveu com um “a Ziquinha é mal educada porque não se sabe ao certo quem é o pai”… Por muito menos que isso a vila já tinha se transformado em campo de guerra! O pai, no papel, da criança, soltou o balde no pé do ofensor e partiu pra cima, recitando todos os palavrões que normalmente se gritava no campo, de uma só vez. Um vizinho protetor do rapaz, pulou sobre as costas do pai de Ziquinha, ambos rolando no chão e levando consigo dona Santa e a Carmela. Esta perdeu a dentadura, que saiu voando e prendeu-se na orelha do Minhoto que já dava e tomava tapa de tudo que é lado.  Nessa altura do campeonato todo balde, toda lata, todo copo e toda água voavam de um lado pro outro sobre a cabeça de todos. Era uma profusão de camisolas e pijamas ensopados que se alguém jogasse confetes e tocasse uma música de Carnaval, pareceria que estavam todos dançando em homenagem ao Rei Momo! 

No meio de toda aquela enorme balbúrdia, surge Seo Olegário, o morador mais antigo da vila, com seu penico lotado. Era sua contribuição para o incêndio, já que a água custava caro e aos 98 anos, meio cego, meio surdo e meio pazzo, era melhor poupar. Quando ele chegou no meio da confusão, com o penico branco tremendo em sua mão direita, o Rapa, especialista em capoeira, lançava os pés para o alto num elíptico rabo de arraia, que golpeou o vaso particular do Olegário debaixo para cima. O penico subiu girando, girando, alto, bem alto, espalhando xixi pra tudo que é lado e para todos, numa chuva dourada coletiva. Foi como jogar gasolina na fogueira! A turba formou um bolo enorme de gente molhada e fedida, gritando e estapeando uns aos outros, tão envolvidos que nem perceberam a garoa paulista chegando de mansinho e aos poucos transformando-se em chuva grossa.

O açougue incendiado estava completamente esquecido, entregue aos bombeiros que acabavam de chegar e que ninguém havia percebido. Usaram ferramentas apropriadas para abrir a porta e encontraram um ambiente tranquilo e sossegado. Num canto, à direita, havia uma espécie de incensório improvisado com uma lata aquecida por carvão, queimando folhas cítricas e aromáticas para espantar mosquitos e muriçocas gulosas de carne, com uma fumacinha leve e cheirosa. No centro do balcão, cuidadosamente apoiada e bem protegida, luzia uma lamparina a óleo, diante de uma pequena estátua de Santa Boa Fartura das Carnes, protetora dos bois e das vacas. O lume da lamparina estava posicionado de tal forma que quem olhasse da rua pelo buraco da fechadura da porta, só veria uma chama brilhante, perigosa e maliciosamente ardendo.

Não era um incêndio afinal, mas proporcionou um evento inesquecível para todos os moradores da vila, que até hoje trazem em si lembranças na memória… ou no corpo!

CaMaSa