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Capítulo 1: A infância do Pai

Eram tempos difíceis aqueles, como são difíceis todos os tempos em que se possui apenas os braços e um pequeno quinhão de terra para tirar o sustento dos seus. Meu nonno, Cármine como eu, era um homem da terra, talhado para o trabalho árduo e uma família grande. Sabe-se lá como foram parar os Santangelos naquela região montanhosa da Itália, mas seja como for, ele era o único por lá e deu início ao seu legado.

A parte da terra que lhe cabia ficava numa pequena cidade, Felitto, província de Salerno, ao sul de Nápoles, uma região montanhosa e com minúsculos feudos espalhados em suas encostas. A face oeste de uma dessas montanhas é cortada pelo rio Calore, formando um monte a um terço de sua altura, separados por um profundo precipício escarpado. Ali, de frente para o vale, surgiu esse vilarejo construído pelas fartas e imensas pedras à disposição, protegido por torres estratégicas à frente e pelo despenhadeiro ao fundo. Os senhores viviam em castelos, servidos e alimentados por súditos que trabalhavam a terra nos campos ao redor da cidade e forneciam proteção aos aldeões em momentos de invasão. Da Idade Média ao entreguerras alguma coisa mudou, mas o insuficiente para o pobre deixar de ser pobre e o rico ficar menos rico.

Por paixão ou falta de cultura, faziam os mais humildes vários filhos, reproduzindo-se em quantidade. Meu avô fez seis enquanto a saúde de minha avó permitiu, de tal modo que, quando ela foi ao encontro da vida eterna, deixou-lhe uma escada de crianças que ia dos 2 aos 11 anos! Um homem sem sua esposa e tantos filhos, não alimenta sete bocas e, entre as mais tristes das soluções, optou pela locação de um deles, na esperança de que sobrasse alimento à mesa e que, com um pouco de sorte, ele encontrasse em outra família, outra cidade, outra região, o fim de sua fome.

Assim foi meu pai, o segundo da prole, do alto dos seus 9 anos, levado dali sem escolha, para cuidar dos porcos daqueles que, a partir de então, de sua força e vontade eram donos. A viagem é longa, contornando o sopé da montanha pela estradinha estreita e sinuosa, feita em carroça só até a primeira curva. Depois, longe dos olhos dos seus, a pé. No fim de um dia de viagem, exausto, cansado e faminto, chegou a essa terra estranha, em que um garoto assustado e magrelo está um pouco acima dos cães, mas muito abaixo dos porcos. Estes sim são importantes, dão carne e lucro, têm grande valor. À noite são guardados, protegidos das intempéries e dos predadores, de dia são soltos buscando o complemento à rala lavagem que lhes dão seus donos. De dia e de noite a eles se junta o menino, como se um deles fosse, sem perder de vista um minuto sequer, qualquer dos quarenta que formam a vara.

A vida entre os porcos e chiqueiros mal cheirosos não estimula o desenvolvimento de uma criança. A má alimentação, a indiferença e o descaso muito menos. Toda casa tem sua princesa e lá não era diferente. Moravam ali o pai, a mãe, o avô e a avó, os três filhos brutamontes, pouco mais inteligentes que os porcos, um tio agregado e a filha caçula, no auge de sua formosura dos quinze anos, com 1,42m de altura e 137 quilos. Mimada e gulosa, vivia para comer e desprezar os animais e quem deles cuidava. Encontrou naquele pequeno menino o passatempo predileto para preencher suas tardes preguiçosas. Numa dessas tardes, depois de proferir todos os impropérios do seu repertório por horas a fio, partiu para a importunação física, dando petelecos nas orelhas do meu pai. Um dos golpes atingiu o nervo, irritou a fera, explodiu a revolta, a raiva e o rancor. Virou-se de ímpeto, encarou a gigante e com olhos e punho fechados desferiu um golpe na mama direita da menina. Esta acusou o golpe, menos pela dor, mais por surpresa e humilhação. Deu um grito seguido de um choro sofrido e ininterrupto, sem lágrimas, cheio de raiva e ódio. Alto, tão alto que todos acudiram apavorados, imaginando a desgraça abatida sobre sua princesinha. Lá chegando e avaliando a situação, baixada a adrenalina e aliviados pela pouca gravidade, mas profundamente atingidos em sua honra e dignidade, decidiu-se por punição exemplar ao grande culpado pela situação.

Foi uma surra épica! Horas e horas de Bungt e Bangt, Bangt e Bungt, em que cada um naquela casa pode expressar sua frustração. Meu pai fez o que pôde para manter a dignidade e o orgulho, como qualquer garoto. Chorou, desculpou-se e implorou perdão aos berros. Quanto mais apanhava mais doía, e mais apanhava e mais gritava e mais doía. Acho que meu pai nunca roubou nada também!

Certamente, toda aquela dor e sofrimento não ficariam impunes e a vingança veio feito uma tempestade destruidora, sob a forma de porcos famintos atacando as plantações de abóboras e pepinos rasteiros. Destruíram tudo em pouco tempo, o bastante para não sobrar uma única planta intacta até que todos chegassem ao local. O pequeno calculou o tamanho da surra que viria e entre a morte certa e o frio da noite próxima, com seus muitos assombrados temores, preferiu arriscar.

Se voltasse pela estrada seria pego na certa. Teria que enfrentar a montanha assustadora, cheia de perigos, sons e vultos estranhos. Seguiu sem parar, movido pela força dos que lutam pela vida, a cada braçada, a cada passo, a cada golfada de ar. Seguiu por horas sem fim, com fome, com sede, com sono e dor. Subiu toda montanha e chegou ao topo sob os primeiros raios de sol. Avistou o Calore serpenteando lá embaixo e teve uma certeza: estava salvo!

Naquele mesmo dia, de tarde, o homem e seu filho mais velho bateram à porta da casa do meu avô. Questionaram, ofenderam e xingaram. Ameaçaram e juraram vingança. Meu nonno, impassível, ignorou-os por completo, virou-lhes as costas e foi ao encontro do mestre marceneiro, em que meu pai aprendeu seu ofício. Um dia, quem sabe, com isso, como se dizia por ali, Facceva L’America (Faria a América), e seu filho ganharia muito dinheiro!

E assim se fez. Pena ele não ter feito também a escola, onde teria aprendido a sutil diferença entre as Américas, do sul e do norte.

CaMaSa

Capítulo 2: O casamento da Mãe

No dia 23 de abril de 1930, Deus trouxe ao mundo uma força da natureza. Juntou um pequeno punhado de elementos abundantes em todo o vasto Universo, Carbono, Hidrogênio, Nitrogênio, Cálcio, Fósforo e Potássio, adicionou gotas de água e, após 9 meses de gestação no ventre de minha nonna Grazia, presenteou o mundo com minha mãe. A pequena, segunda naquela família, veio ao mundo a plenos pulmões. Berrava incessantemente, rivalizando com o badalar dos sinos da igreja matriz que, justo naquele dia, repicava a saudação dos mortos noite adentro, em louvor a um cidadão falecido. Três toques agudos: Tééiiiinnn, Tééiiiinnn, Tééiiiinnn…; um grave, Tóóóuuóónnnnn… anunciando aos céus a chegada de mais uma alma de Felitto.

Meu nonno Giovanni, homem culto e educado, leitor dos clássicos e figura obrigatória dos quadros administrativos do município, registrou, ele próprio, sua caçula com o expressivo nome Faustina. Naqueles tempos, de tamanha miséria e de uma Itália abandonada à própria sorte no pós-guerra, onde as funções administrativas não garantiam comida na mesa, luxo e fausto somente no nome.

A Primeira Grande Guerra havia quebrado a ilusão humana nos centros mais ricos e civilizados, ainda que não pudessem imaginar naquele momento o horror e a destruição em massa que a Segunda traria. No entanto, naquelas regiões perdidas e afastadas no Cilento, persistiram as fábulas e superstições trazidas pelas sombras da noite e imaginações férteis. Assim cresceu a pequena Faustina, ouvindo os relatos confirmadamente verdadeiros dos tios e avós, nascidos na época em que fadas e bruxas passeavam entre nós. Todos por ali sabiam que seu bisavô materno havia tido uma vida de prosperidade porque, certa vez, ao deparar-se com três moças belíssimas dormindo nuas à beira do rio, cobriu-as com palha, compadecido por elas, ali estendidas, castigadas pelo frio. Eram fadas! De súbito despertaram e, agradecidas puseram-se a chamar o rapaz que, assustado e envergonhado, pôs-se a correr. Até que uma delas tocou seu ombro e ele, desequilibrado, rolou por uma ribanceira, acordando somente algumas horas depois. Jamais faltou comida em sua casa!

De gênio forte e coração extremamente bondoso, minha mãe vivia correndo pelas estreitas vielas de pedra, de uma casa a outra, disposta a ajudar os velhinhos enfraquecidos pelo tempo e a fome, a tristeza e a solidão, oferecendo uma maçã, um sorriso, uma esperança…

Quando começou a frequentar a escola elementar, a única possível, foi levada a crer numa Itália orgulhosa e poderosa, descendente de um império romano rico e dominante, capaz de construir um novo futuro com ordem e disciplina, amor à Pátria, camisas pretas e discursos de grandeza de um líder pequeno, em estatura física e moral. A um náufrago não se pergunta a preferência da cor da boia, basta que o mantenha na linha da superfície.

E entre sonhos de uma nação e a bruta realidade dos homens, chegou minha mãe à Segunda Grande Guerra, na flor dos seus nove anos, vivendo-a pela apreensão dos relatos que chegavam pela boca dos que no meio dela estiveram e retornavam partidos, de corpo e alma. O mais próximo que aquela região esteve da guerra foi quando um avião de combate alemão espatifou-se sobre os campos de oliva, deixando apenas uma bomba desarmada, sem nenhum piloto sobrevivente. Um tio e dois primos, movidos pela urgência da fome, tentaram desmontar o artefato na esperança de colher a pólvora muito valiosa do seu interior. Explodiram com ela pelos ares, tendo seus corpos recolhidos aos pedaços pelo raio de 100 metros.

Em tempos de guerra, em tempos de paz, a juventude encontra os caminhos que levam às paixões. Inocentes no início, evoluem para sentimentos arrebatadores desses capazes de mover continentes. Minha mãe tinha certa queda pelos fracos e desvalidos e isso, naquela época, era o que não faltava. Apaixonou-se muito e intensamente, como fazem todas as meninas entre 9 e 14 anos. Bastava um olhar, uma palavra suave, um pedido de ajuda. Foram muitos Antonios, Francescos e Donatos. A todos dirigiu pensamentos, ilusões e sonhos de uma vida melhor, com filhos, muitos filhos e bem alimentados.

Até que um dia cruzou olhares com esse moço de olhos claros, cabelos espessos e jeito de ator de cinema, ainda que até então ela jamais tivesse colocado os pés num. Pensando bem, um galã de cinema não deveria ser tão baixinho, ter orelhas de abano e cara de cachorro pidão, mas, de alguma forma, ele despertou nela uma possibilidade. Só faltava encontrar uma forma de aproximação e ela encontrou uma saída muito criativa. Havia um fosso, um buraco de 1,50m no chão, entre um pequeno paiol abandonado e um estábulo de burros, no caminho entre a escola e sua casa. Por esse mesmo lugar, meu futuro pai passava todos os dias a caminho da marcenaria onde trabalhava como ajudante aprendiz. Numa tarde quente de verão, minha mãe fez cair, estrategicamente, um dos seus cadernos no fosso e se pôs a chorar a má sorte. Meu pai, que passava por ali, prontamente ofereceu ajuda, pulando no buraco. Antes mesmo de se abaixar para pegar o caderno, uma infestação de pulgas o atacou furiosamente, cobrindo suas pernas. Minha mãe gargalhava enquanto meu pai pulava e batia as mãos nas pernas para se livrar dos malditos insetos.

Com certeza ela correu muito mais que ele, que prometia matá-la se a alcançasse! Mas foi o bastante para que ele a visse entrando em sua casa e passasse a perambular por ali cada vez mais frequentemente, não para cometer um crime, mas para dar início a uma história de amor (?) que durou quase 70 anos. Em pouco tempo começaram a namorar, como se namorava naquela época, com garantidos mínimos 3 metros de distância e a companhia permanente de uma mãe, de um pai, de uma irmã, tia, primo ou seja lá o que fosse capaz de impedir mais do que alguns olhares.

Olhando assim, parece ser algo muito romântico e leve, mas, na verdade, era um arranjo de sobrevivência. Meu pai passou a frequentar diariamente a casa dos sogros, como um hóspede a quem se oferece o pouco que se tem e alguma roupa lavada. Como recompensa, minha mãe ganhou o privilégio de tecer mais, costurar mais, lavar, passar, cozinhar e fazer tudo o que já fazia com mais intensidade. Seu namorado, agora noivo e futuro marido, fortalecido e dominando o ofício, abriu o próprio negócio. Ela também alargara seus horizontes, transportando na cabeça as pranchas de madeira serradas na montanha e levadas até a marcenaria para confecção de móveis e caixões.

A festa de casamento durou 7 dias e teve todos os dois mil habitantes convidados. Todos, como sempre, colaboraram como podiam, levando ovos, leite, trigo, carnes, óleo, vinho e frutas… Tudo somado, junto e misturado, alimentou e saciou a todos, que dançaram e cantaram, desejando aos noivos um futuro feliz. Minha mãe acreditou nisso, não imaginando que em alguns anos embarcaria numa viagem de 14 dias de navio, em busca do marido que a deixara com duas filhas de colo, a menor delas que o pai não viu nascer. Desembarcou no porto de Santos, numa terra estranha que amou verdadeiramente, não com palavras doces pintadas de rosa, mas dando o melhor de si, em suor, lágrimas e sangue.

CaMaSa

Capítulo 3: Um Novo Mundo

O padre Benedetto saiu correndo pela sacristia atravessando a nave central em direção às portas da igreja. Passou como um raio pelas beatas que ficaram com as mãos das saudações paradas no ar, perplexas. Nunca viram o santo roliço padre correr tanto assim! Nem mesmo na direção de um belo prato de Fusilli acompanhado de um copo de vinho… Aí tem! E seguiram o reverendo que balançava pelos ares a batina preta. Felitto é uma cidade pequena, tem o mesmo número de habitantes, a cerca de dois mil, há pelos menos 1.000 anos. Um padre correndo com meia dúzia de beatas atrás não passaria despercebido mesmo. Assim, pouco a pouco, uma crescente caravana, ávida por informações, chegou à porta da casa dos meus avós.

Meu nonno Giovanni abriu a porta e, com grande espanto, viu o sacerdote no alto da escada, todo aflito e suado, já amparado por membros da comitiva, que só aumentava. Convidou-o a entrar e, junto com ele, entraram algumas das autoridades locais já presentes: o prefeito e o vice, o guarda municipal, o médico, o diretor da escola, além de dois tios, três primos e seis vizinhas. A casa era muito humilde e pequena, construída pelas pedras milenares que estavam ali desde sempre, composta logo na entrada por um único ambiente que fazia as vezes de sala, cozinha com fogão a lenha e sala de almoço. Havia ainda dois quartos e um banheiro anexo, desafiador nos dias frios. Deram alguns minutos para o santo padre, que retomava o fôlego lentamente, sentado na melhor cadeira disponível. Quando terminou o copo de vinho oferecido, de uma golada, puxou um envelope do bolso da batina e retirou a folha de papel timbrado da diocese de São Paulo, Brasil. Olhou ao redor, fixou os olhos na minha mãe e pôs-se a ler em tom solene:

“Ao pároco da cidade de Felitto, província de Salerno, Itália,

Recebemos em nossa diocese, na Igreja Santa Margarida dos Aflitos, no bairro da Cachoeira Seca, cidade de São Paulo, um pedido de solicitação de casamento entre Maria Bernarda Auxiliadora Silva, brasileira, natural de Amaralândia, MG, e Pasqualino Santangelo, italiano, natural de Felitto, Salerno, Itália.

Gostaríamos de saber, por parte de Vossa Reverendíssima, se há algum impedimento para esse enlace?

Mui respeitosamente…”

Ahhh! O Brasil… O Brasil…

Quando meu pai se viu um homem feito, casado, com uma filha de colo e outra a caminho, trabalhando em sua pequena “falegnameria“, fazendo todo tipo de serviço com a madeira conseguida com as próprias mãos a quilômetros, em troca de comida e alguns centavos, sem perspectiva alguma de melhora nos próximos séculos, destruída que estava a Europa do pós-Guerra, tomou-se de encanto pelos rumores de uma vida melhor vindos da América. Muitos dali já haviam partido para diversos pontos do planeta, alguns voltando para suas famílias com recursos, valores que não seriam conseguidos numa vida naquele lugar. Quanto mais a miséria e dificuldade aumentavam, cresciam os louvores de oportunidades e riqueza de terras exóticas, inexploradas, onde um homem sozinho poderia conseguir independência. Havia programas do governo incentivando os cidadãos a tomarem esse rumo, aliviando, dessa maneira, a carga administrativa de um Estado dilacerado pelas más escolhas. Um desses programas chegou a Felitto e arrastou consigo um punhado de homens jovens e corajosos dispostos a vencer a pobreza. Entre eles estava meu pai.

Foram até Nápoles, onde um navio aguardava atracado. Era tanta gente no porto, filas enormes serpenteando em direção às escadas inferiores do navio, que dava a impressão que a Itália ficaria vazia! Gente do Norte e do Sul, muitos do sul, a grande maioria do sul, espremiam-se nervosamente, aguardando a vez de subir a bordo. Muitos, como meu pai, jamais haviam saído de suas cidades, mas, como dizia o dito popular, Il Mondo é Paese, significando que não importa quão longe se está do seu pequeno vilarejo, ele sempre estará com você.

Assim que, 17 horas depois de chegar ao porto, meu pai estava a bordo de um navio velho, mal cuidado e carcomido pelo tempo e o sal marinho, com a proa apontada diretamente para a Estátua da Liberdade de uma América rica e promissora. Algumas horas depois, com as costas da Europa já pela proa, a embarcação começou a desviar lentamente à esquerda, numa curva descendente que só terminou 15 dias depois, em águas brasileiras, bem ao sul, mais precisamente no Porto de Santos.

Dio mio, che bello!” O impacto deste país sobre um imigrante é avassalador. Eram os anos 50, tudo ainda era muito virgem, muito natural. O calor, a brisa marinha, o verde e amarelo da vegetação… As casas não eram pesadas, de pedra, mas de tijolos, as mais elegantes rebocadas e pintadas. Pareciam mover-se com o vento, como os coqueiros dançantes das praias de areia branquinha, avistadas do navio antes de atracar. Separavam o verde transparente das águas do mar, daquele de tom mais forte da vegetação que descia do alto das montanhas distantes.

Por um momento, sentiu que havia feito a escolha certa, com o coração expandindo-se num contentamento jamais sentido. Amplo!

Os espaços… Tudo era muito espaçoso, à vontade. As pessoas também, mais afáveis, sorridentes. As mulheres, que lindas eram as mulheres! Claro, não pra ele que era casado, com uma filha de 3 anos e uma por nascer. Não pra ele que acabara de chegar, e logo rumaria para a cidade de São Paulo, de clima um pouco mais frio, muito bom, e ainda não havia sentido os ataques da solidão, do vazio, da nostalgia que um dia se transformaria em saudade.

Toda essa alegria de viver era para a gente daqui, com seus tons de pele multicoloridos que iam do branco da lua até o negror do carvão! Mas esses tons variados eram extremamente apreciáveis nas moças que passavam pelas ruas e avenidas, despreocupadas e sorridentes, cada vez mais convidativas, à medida que o tempo ia passando e o desejo de companhia ia aumentando. Afinal, naquela época o homem ainda tinha certas garantias e o dever de provar sua masculinidade. E, pensando assim, vencido pela distância, pelos dias, semanas e meses e anos, pelo tempo e a saudade, que naquela altura já havia se apresentado numa forma muito além da nostalgia, bem dolorosa, sucumbiu. E deixou-se levar pelos prazeres de um novo mundo!

CaMaSa

Capítulo 4: O Beijo Roubado

O clima era tenso e pesado. Estavam presentes meu nonno Giovanni, a irmã da minha mãe, zia Onorina, e seu marido, Antonio Rizzo, que trabalhava na Alemanha. Minha nonna Grazia chorava e soluçava alto num canto da sala, amparada pela irmã mais velha do meu pai, zia Veneranda. Sentado, ruminando pensamentos e palavras desconexas estava meu nonno Cármine, ladeado pelas filhas, Élida e Anna. Vincenzo, o mais novo dos irmãos do meu pai, estava na Venezuela, trabalhando como pedreiro. Antônio estava no Brasil, mas de lá não chegavam notícias há muito tempo! Padre Benedetto já estava longe, tinha cumprido sua missão.

Minha mãe estava encostada no batente da porta de entrada, no alto da escada, com o olhar perdido e distante. Nos degraus, brincando inocentemente estavam minhas irmãs, Rachel e Grazia. A conversa entre as duas atraiu a atenção de minha mãe que, por um momento, a levou dali, vendo-se ela mesma criança e despreocupada. Olhou com carinho para as filhas, como se fosse uma delas.

Rachel era fofinha, calma e tranquila. Tinha os cabelos lisos, escuros, as bochechas rosadas. Ela não sabia se tinham esse tom naturalmente ou se eram resultado dos beliscões carinhosos que todos faziam questão de lhe dar. Minha irmã aceitava essas manifestações sempre resignada, incapaz de dar um pio. Onde era colocada ficava, concentrada em si mesma ou em qualquer atividade manual que lhe caísse em mãos. Naquela altura, com 4 para 5 anos de idade, já era hábil no crochê.

A pequena Grazia, magricela e loirinha, era um terremoto! Ágil, saltitante, irrequieta, era a versão oposta exata da irmã. Eram necessários sempre dois pares de olhos sobre ela, de dia ou de noite. Nascera sem a presença do pai, não que isso fosse fazer grande diferença, mas acabara criando uma relação paterna com meu avô, que era um homem fino e sensível, de modos calmos e pacíficos. Com ele minha irmã se acalmava, esforçava-se para entendê-lo e conseguia aprender as primeiras letras e números, tão difíceis de assimilar na escolinha das freiras. Ali vivia diabruras, derrubando latas, espalhando a comida pela mesa, pisoteando flores no jardim, escalando a pilha de roupa branca, lavada e passada, e derrubando pelo chão. Não o fazia por mal. Tinha herdado esse gênio arteiro e inquieto do pai.

O pai das suas meninas… Lembrou-se do dia das núpcias. A cerimônia na igreja conduzida pelo padre Benedetto, em latim. O coral, primeiro entoando músicas sacras pomposas, depois finalizando com uma melodia leve, suave, até alegre. O sim envergonhado dele, expelido por um cutucão na barriga. Risos na igreja. O embaraço ao virar-se de costas para o altar, andar pela nave central, sorrindo para as pessoas. Os gritos de exaltação na porta e a procissão seguindo os noivos até a praça central, onde mesas improvisadas aguardavam os noivos e convidados com o que de melhor a bondade dos seus corações ali depositara. Havia música também, as belas canções napolitanas elevando a moral de todos, apesar dos tempos difíceis.

Pensou e avaliou suas opções. Já se haviam passado 4 anos desde que eles acordaram naquela manhã com a decisão tomada, a pequena e gasta mala pronta, com algumas peças de roupa, meia dúzia de ferramentas pequenas, um pouco de queijo, um pouco de trigo, um pouco de dor e alguma esperança. Nada era certo, como juras de amor juvenil, ardentes, voláteis, inseguras.

Dentro de casa a temperatura subia e descia conforme minha nonna chorava e blasfemava, acusando os céus e a má sorte. Alcançava um pico de dor e sofrimento altíssimo e despencava logo em seguida, num estado de catatonia. Nonno Giovanni lamentava em silêncio, sabendo que não poderia tomar uma decisão pela filha. Cada um deve carregar a própria cruz. Os demais murmuravam baixinho, preparavam o café e aguardavam uma solução que, seja qual fosse, ninguém ali gostaria de enfrentar.

A pequena Grazia pulou a irmã sentada no degrau, caindo de encontro à mãe que as observava um lance acima. Pegou a menina nos braços que, com as mãozinhas no rosto da mãe, disse: – Mamma, non piange…

Que dor! Que raiva! Se ficasse, aos 23 anos, teria sua vida marcada para sempre no seu pequeno vilarejo, como as viúvas da guerra que não receberam os corpos de seus maridos para enterrar o passado e iniciar uma nova etapa da vida. Viveria com a sombra de um retorno, isolada, excluída, como alguém que sofria de uma doença contagiosa. Se partisse, provavelmente partiria, seu mundo, os seus, seu coração, sua vida. Enfrentaria a distância, uma terra estranha, que não falava sua língua e não entendia seu sofrimento, a dor da separação. Se ficasse, suas meninas não teriam um pai. Se partisse, elas não teriam os avós, tios e tias, primos e todos aqueles que as amavam como suas.

No momento, para o sustento das filhas, além do trabalho no campo, plantando, colhendo, cuidando dos animais, do trabalho em casa, da costura pra fora, ajudando a irmã, havia encontrado um trabalho para o governo, carregando pedras na cabeça para as obras de reconstrução das estradas do município. Ela jamais imaginaria, que esse trabalho de 6 meses lhe renderia uma aposentadoria na fase madura da vida, paga pelo governo italiano, maior do que o governo brasileiro viria a pagar por 35 anos de trabalho.

Na sala, nos intervalos dos gritos e uivos dilacerantes, já se discutia documentos, passagens, valores, preparativos, a logística do transporte. A comunicação com os parentes ali estabelecidos, as possibilidades de acomodação, o retorno ou não. Como quando alguém morre mas a vida se impõe e segue adiante, havia vozes práticas e lúcidas, tentando avaliar a situação pelos prós e contras para a mãe, as filhas, os mais próximos que aqui ficariam, as perdas e os ganhos. Houve momentos de acusação, de apontar os dedos em direção aos culpados por tudo, por aquilo e pelo futuro. E, em meio aos gritos, abraços de desculpas, de conforto, de conformação.

Minha mãe olhou nos olhos da sua filhinha em seu colo, bem no fundo, e viu seu marido, na época de namoro, olhando para ela, nessa mesma escada, de uma maneira tão intensa e estranha, tão diferente e urgente, enquanto ela falava pelos cotovelos, sobre seus sonhos e desejos, à meia luz do início de uma noite quente, enquanto meu pai se aproximava lentamente, daquela boca dançante, e depois muito rapidamente, na velocidade da luz, beijou-a rapidamente. Ela o empurrou com força, virou-se e subiu as escadas correndo, bateu a porta atrás de si com o coração ribombando, de vergonha e prazer. Não falou com meu pai por 3 meses, mas aquele momento definiu quem ele era, quem ela era.

De repente, acordou dos seus devaneios, entrou na sala encarando a todos que a olhavam atentamente e disse: – Ho già deciso. Vado in Brasile.

CaMaSa

Capítulo 5: As águas vão rolar…

Durante a viagem de navio para o Brasil, meu pai conheceu muitas pessoas, de várias partes do mundo, que vinham tentar a vida na América do Sul. Eram em sua maioria italianos e espanhóis, mas podia-se encontrar portugueses, alemães, turcos, gregos e russos também. Uma babel moderna de 15 dias, onde reinava por alguns dias um espírito de camaradagem e colaboração, imposto pelas condições da travessia e a impossibilidade de fugir da embarcação em alto mar. Assim que os malandros, de qualquer idioma, mantinham-se dentro dos limites da lei de bordo. Os inocentes, tensos e preocupados a princípio, iam relaxando à medida que o tempo passava e as paisagens deslumbrantes desfilavam em tons de azul oceano profundo e azul céu infinito.

Havia uma espécie de refeição para as camadas inferiores de passageiros, complementada pelo que cada um trazia de sua terra natal nas bagagens. Eram os últimos sabores de um tempo deixado para trás. Havia também festas e jantares de luxo e fartura nos andares superiores, onde passageiros abastados divertiam-se na presença do Capitão do navio e sua tripulação, mas eram separados dos demais por correntes e seguranças bem treinados.

Entre os companheiros de viagem, meu pai fez amizade com um siciliano falante, forte e atarracado, com os cabelos divididos ao meio, fixados por uma goma brilhante de cheiro cítrico. Seu nome era Giuseppe Dalmonti, e sua habilidade com as palavras era similar ao seu desempenho sobre uma bicicleta. Havia feito diversas vezes o trajeto atual, sempre realizando negócios vantajosos para si. Desta vez trazia consigo uma bicicleta reluzente, da qual meu pai apaixonou-se de imediato. Entre idas e vindas no convés, o siciliano tomou as muito mais valiosas ferramentas do meu pai, duas camisas, um par de meias e os últimos trocados do seu bolso. Os últimos mesmo ficaram com o motorista do Ford 46, que levou a magrela serra acima!

Meu pai se hospedou em uma pensão na rua Pamplona, bem perto da avenida Paulista que, naquela época, em 1951, era ocupada por lindos casarões. Era uma paisagem bucólica, quase campestre de tão tranquila, mas que estava prestes a dar um vigoroso salto de desenvolvimento, capaz de catapultar a cidade ao posto de maior da América do Sul em algumas dezenas de anos. Um marco era a demolição do belíssimo Belvedere, para dar lugar à construção do MASP, o Museu de Arte de São Paulo, e suas linhas modernas e arrojadas, fruto da mente revolucionária e criativa de uma oriundi, Lina Bo Bardi.

Entre os italianos que se aproveitaram desse surto desenvolvimentista, estava Sabbato Minella, mentor e mestre do ofício do meu pai em sua terra natal. Sua marcenaria ficava na mesma Pamplona e ele se aproveitava da proximidade ao MASP para captar diversos serviços de carpintaria. As cartas que mandava para amigos e parentes na Itália incentivaram muitos paesanos, que vinham para cá com a certeza de encontrar trabalho garantido. De temperamento forte e autoritário, exigia o máximo de seus comandados, desde os primeiros raios de sol até a noite, de segunda a sábado. Sobrava o domingo e os passeios de bicicleta pelo Trianon, onde os mais jovens praticavam o trottoir pelas alamedas do parque. Mas era pequeno e, em breve, outro muito maior e adequado à grandeza da cidade seria inaugurado. O Parque do Ibirapuera, com seus imponentes 158 hectares, seria inaugurado em 1954, mas um passeio de bicicleta até lá valia a visita durante o período de construção.

Nesse mesmo 1954, meu tio Antônio, pintor, chegou ao Brasil, incentivado pelo irmão. Ele fixou residência no  bairro da Mooca, mais precisamente na rua do Oratório. Uns 8 meses depois, sua bela Rosina, minha tia Rosa, fez a viagem para cá, com meu primo Cármine (Melú) e minha prima Antonieta (Nena). Nessa viagem também estavam os pais e irmãos de minha tia, que seguiram viagem em direção ao sul, com destino a Buenos Aires, Argentina. Abraços longos e apertados separaram minha tia dos seus, que teve que descer a escada da nave só, com suas duas crianças. No Porto de Santos, ver seus familiares partindo com o navio custou-lhe alguns anos, de vida e saúde. Sentiu-se desamparada por alguns momentos e só acalmou-se quando foi abraçada pelo meu tio. Ele ainda ainda portava os cabelos cuidadosamente penteados para trás e o bigode fino, a la Vincent Price.

Eles eram o porto seguro do meu pai, mantendo-o afastado dos problemas e perigos de um país cada vez mais cosmopolita, disposto a fazer parte dos avanços e da modernidade do pós-guerra. Mas eles estavam distantes, na Mooca, e ele tinha um mundo a conquistar, do espigão da Paulista para baixo, em direção ao Jardim Europa, onde estava o poder e a riqueza. Além das mais belas moças, com as roupas coloridas, os cabelos de corte moderno e o cigarro em uma das mãos e um copo na outra, sentadas alegremente nos bares que se espraiavam pelas calçadas da região. Começou a fumar! Depois a beber. A se divertir, como se não tivesse compromissos e responsabilidades, como alguém solto no mundo, sem família. Como cantava a marchinha de Carnaval da época:

As águas vão rolar
Garrafa cheia eu não quero ver sobrar
Eu passo a mão no saca, saca, saca-rolhas,
E bebo até, me afogar
As águas vão rolar…

Meu tio não gostava nada do que via e sempre procurava aconselhar o irmão. Apesar de mais moço, era mais consciente, sabia beber e conhecia seus limites. Além de ter a vigilância de minha tia que, apesar de pequena, era bem enérgica. Chegaram a discutir, como discutem irmãos diante dos riscos iminentes a que um ou outro se sujeita, mas o vazio que meu pai experimentava naqueles tempos, não podia ser preenchido só com conselho e trabalho. Desse modo, entre os muitos passeios e carnavais, conheceu várias moças, uma delas Bernarda, que era acompanhante de uma rica senhora dos Jardins. O que era um passatempo para ele, passou a ser sério para a moça que, iludida, apaixonou-se perdidamente, sonhando em se casar. Chegou a procurar o padre da igreja São José Operário, para aconselhamento e para pedir informações sobre datas disponíveis para uma cerimônia. O pároco, amigo da família, contribuinte fiel e regular da santa igreja, procurou a matriarca para expor a situação e colaborar no que fosse preciso. Esta pediu que ele averiguasse de alguma forma, a real situação civil do rapaz na Itália, com consequências bem dramáticas.

Nada que ele já não tivesse deixado claro para ela. Não queria compromisso, só amizade e companhia. O carnaval de 55 se aproximava e ele tinha outros planos…

CaMaSa

Capítulo 6: O Fim do Começo

Existem trechos da história e situações que não cabem numa narrativa, por seus aspectos psicológicos, complexidade e drama. Esse era o caso de minha mãe deixando sua pequena cidade natal com suas duas filhas. Há muita dor no mundo, na medida da capacidade de suportar de cada um, ou não. Talvez haja dores insuportáveis, mas aquela era uma da qual ela haveria de viver e, se possível fosse, tirar ensinamentos. Nada disso, claro, evidente para ela naquele momento, que o singrou como o navio que a levava para a América, triste, obediente e monótono. Entorpecida, com olhos abertos apenas para enxergar as meninas e não perdê-las de si nem por um segundo sequer. Mas dormia acordada um sonho profundo e sem sentido.

Quando a embarcação conduzida pelos rebocadores bateu com um leve baque nas amuradas do porto, teve um sobressalto de quem é chacoalhado no meio da sesta da tarde e sorri, sem graça, por ter sido pego em flagrante. Respirou fundo, levantou-se fracamente, por conta da falta de alimentação que se impôs, reuniu os pertences, as crianças, e dirigiu o olhar pela primeira vez à terra nova que a acolhia. Antes de começar a descer os degraus da escada, esticou o pescoço em direção ao grande número de pessoas aglomeradas no chão, buscando encontrar um rosto conhecido. Não viu ninguém!

Mas havia sim conhecidos lá embaixo esperando por elas. Meu pai e três primos de minha mãe: Pasqualão, Nicola e Domenico, que na época era chofer de táxi. Os quatro espreitavam ansiosamente, fumando um cigarro atrás do outro. A multidão fazia um barulho infernal de vozes, gritos e lágrimas. Eram reencontros e despedidas sem fim, uma maré de emoções que faziam subir e descer o gigantesco navio. Gesticulavam na tentativa de fazer-se compreender mas era quase impossível, tamanha era a quantidade de pessoas ali. Meu tio Pasqualão teve a impressão de vê-las descendo as escadas e, com seu corpanzil de mais de 1,90m e 140kg, foi abrindo caminho pela multidão, seguido pelos outros três. Chegaram à beira do cais e avistaram minha mãe, as filhas, duas malas e duas trouxas grandes de pano. Meu pai gelou!

Minha mãe descia assustada a escada balançante e perigosa, atrapalhada com as duas meninas e as bagagens. Os passageiros aglomerados empurravam-se uns aos outros, impacientes, ansiosos por terminar o calvário. Uma senhora, alguns degraus abaixo, tropeçou e chocou-se com dois homens à sua frente, deixando cair uma pequena maleta na água. Pôs-se a chorar e blasfemar, amaldiçoando sua sorte, sua vida e sua morte! Dois marujos em terra tentavam ajudar, buscando içar a maleta com varas de bambu com ganchos de metal nas pontas. No meio da escada, no meio da confusão, no meio de tudo, minha mãe avistou os primos. Teve um triste momento de alegria e acenou para eles.

Quando finalmente tocou o solo, jogou-se exausta nos braços dos primos, distribuindo filhas e bagagens, sem perceber o marido ao lado deles. Quando o viu tomou um susto! Estava magro, escuro, queimado de sol, e calvo, completamente careca… Sentiu um misto de raiva e pena, quase perdoando-o ali mesmo. Mas não, havia muita coisa para ser esclarecida, muita mágoa para ser lavada, muita ferida para curar. Não era ali, naquele momento, que as coisas seriam ditas e cuspidas. Ela as ruminou por 4 anos, saberia o momento mais adequado de jogá-las no rosto do meu pai. Este parecia eufórico e perdido, sem saber se abraçava uma filha, beijava uma mala ou carregava a outra filha. Tinha urgência de falar, de sentir, de voltar a viver e ser ele mesmo. Tentava se controlar e aparentar uma naturalidade que o olhar duro da esposa não permitia. Tocaram-se as mãos. E foi só! Teriam 65 anos pela frente para chegar a uma conclusão, mas antes disso muito molho queimaria na panela, muitos pratos se espatifariam nas paredes, muitos erros voltariam a acontecer e muito perdão seria dado.

Aos trancos e barrancos chegaram ao táxi, um Chevrolet 1955 espaçoso e razoavelmente confortável que acomodou cinco adultos, duas crianças e as bagagens. Deixaram a confusão do porto para trás e seguiram em direção à Serra do Mar. Aquilo pareceu bastante familiar para minha mãe, lembrando a subida da montanha para Felitto, sua pequena cidade, tão distante agora. Mas chegando ao topo, a impressão mudou completamente com a visão do planalto paulista, gigantesco, que terminava muito longe lá no fim do horizonte, juntando-se ao céu. E mudou muito mais, à medida que de São Paulo se aproximavam, pelo tamanho incompreensível, pelo tráfego intenso e pela fumaça dos carros e o ar quente, absurdamente quente. Ela foi tagarelando todo trajeto, distribuindo as notícias e lembranças de todos que lhe haviam recomendado, evitando assim, uma conversa mais direta com o marido. Minha irmã Rachel dormia como um anjo, enquanto a pequena Grazia se irritava profundamente com esse homem estranho, que a apertava em seus braços e insistia em chamá-la de filha.

O carro os deixou na Rua do Oratório, na casa dos meus tios Antonio e Rosa. As meninas juntaram-se aos primos, Melú e Nena, enquanto os adultos tratavam dos assuntos práticos, urgentes e necessários. A casa era pequena e acomodar duas famílias precisaria de certa engenharia e muita boa vontade. A noite chegou muito rapidamente e espalharam-se como foi possível, certos todos que aquilo seria por pouco tempo. A situação era conveniente para minha mãe, porque desse modo não havia espaço para uma conversa entre os dois.

Ficaram 12 dias abusando da paciente bondade dos anfitriões, até que, numa solução um tanto desesperada, rumaram para a longínqua Lapa, distante de tudo e todos. A pequena casa, sem mobília, era um arranjo provisório entre meu pai e um cliente. Tinha uma cama improvisada para o casal e um colchão sobre tábuas para as meninas. Havia uma mesa bamba e duas cadeiras e dois bancos, uma pia e só. Não tinha fogão. Elas haviam chegado da Itália no dia 7 de dezembro de 1955, já era dia 20 e estavam a poucos dias do Natal. Meu pai saia para o trabalho de madrugada, voltava à noite. Ela, sem falar uma palavra em português, virava-se como podia para alimentar as filhas, mas, se nos últimos anos temeu pelas dificuldades que o novo mundo traria, agora as sofria profundamente nos ossos. Diante disso, as explicações intermináveis do marido, as justificativas esfarrapadas e as promessas de uma vida totalmente dedicada a ela e as filhas, eram quase aceitáveis.

No dia 24 de dezembro, só e desolada, recebeu a visita de minha tia Rosa com as duas crianças e a barriga já volumosa, trazendo nela meu futuro primo Claudio. Ela trazia alguma comida e esperança. Juntaram o óleo e o arroz aos queijos e farinhas remanescentes da viagem, improvisaram uma lata e carvão como fogão, e prepararam uma Ceia de Natal de uma noite quente de verão, completamente diferente daquelas geladas de sua terra natal. Meu pai chegou acompanhado do meu tio Antonio e, surpresos, saíram atrás de alguma cerveja e refrigerantes. Sentiram-se em paz e dormiram todos naquela casa com a certeza de que meus pais, o mais breve possível, deveriam encontrar um lugar para morar na Mooca. Poucos meses depois, encontraram um quarto e cozinha num quintal da mesma Rua do Oratório, perto dos meus tios. Ficaram ali até 1957, quando mudaram-se para a Rua Guaimbé, travessa da Avenida Paes de Barros.

A Faustina, finalmente, cedeu aos encantos do Pasqualino! Claro que esses encantos vieram acompanhados de muito respeito paciente, bom comportamento e atitudes de um pai exemplar. Acolheu-o em seus braços e, olhando-se profundamente nos olhos, puderam ver suas essências, ouvir novamente os sons de sua terra, os perfumes e sabores, apaixonadamente.

Naquele mesmo ano de 1957, aconteceu um milagre comum, desses que mudam para sempre o destino da humanidade. Deus (e uso aqui esta palavra apenas como referência, pois ela tem um significado diferente para cada um), o Criador, a própria Criação, essa Energia poderosa, essa Força infinita, o Inexplicável, quer você creia ou não, adore ou duvide, o Todo ou o Nada, mais uma vez, Deus resolveu que era hora de visitar os homens, andar entre eles, encarnado, ver e ouvir, sentir sede e fome, frio e calor, dor e amor para entendê-los. Veio numa forma humana, sem memória de si, sem poderes especiais, apenas um olhar profundo e uma lucidez, de ação e resultado, cristalina, para os conduzir de volta à Paz dos seus corações.

E, em 27 de abril de 1958, eu nasci.

CaMaSa