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Anacleto
25/04/21
CaMaSa

Anacleto e o Sequestro – Parte 1

Para o bem ou para o mal, a fama de Anacleto crescia sem parar. Muitos o consideravam alguém especial, com dons e poderes superiores, uma espécie de enviado dos deuses. Já outros viam nele somente predicados negativos, portador do azar e más influências, o próprio filho do coisa ruim. Dona Tinha mesmo era uma que sempre se benzia três vezes quando passava na porta da casa “deles”, como agora se referia aos vizinhos, com uma aguda lembrança dolorida no estômago. Os três seguiam sua rotina, indiferentes aos comentários maliciosos. Cleto saia cedo para o trabalho, tomando um café apressado e dando o infalível beijo de despedida em sua amada Ana. Ela preparava o lanche do filho e, depois que ele ia para a escola, cuidava da casa ouvindo as notícias através da Rádio Nacional. Divertia-se com os shows de variedades e músicas, mas ficava muito preocupada com as ocorrências policiais, cada vez mais assustadoras. 

Anacleto por sua vez havia aceitado bem a transição para o colegial. Na realidade a maioria da classe eram seus velhos conhecidos, todos cientes das suas esquisitices. As novidades eram 2 ou 3 alunos vindos de outros colégios. Entre eles um rapazola magrelo, de cabelos compridos e cara de quem não dormia há alguns dias. Seu nome era José Ricardo, mas trouxe consigo o apelido de Colchonete, por motivos óbvios. Ele e Anacleto tornaram-se amigos de imediato, não por afinidade ou algum interesse comum, mas pela falta de entrosamento com os demais. Colchonete ficou admirado quando soube que Anacleto era nome, não apelido. Também ficou espantado com as tendências do novo amigo e contou que não conseguia dormir antes das 3 horas da manhã, e que por isso estava sempre com sono. Foram trocando informações como quem narra detalhes da vitória do seu time de futebol na última rodada e, de repente, eram amigos!

Juntou-se à dupla outro rapaz, Pedro de Assis, vulgo Panela. Sabe-se que quando ele tinha 5 anos de idade, meteu na cabeça uma panela de ferro para brincar de soldado. Colocou a danada depois de muito corre-corre e disparos imaginários, tiros pela boca e mortes de faz-de-conta. A cabeça suada e os cabelos escorridos grudados no crânio facilitaram o encaixe, mas depois, sabe-se lá se os cabelos secaram e engrossaram ou era mesmo o momento do crescimento, o que aconteceu foi que a caçarola se prendeu de tal maneira naquela cachola que parecia ter nascido ali. De nada adiantou o choro, os gritos, as pragas e lamentos. Passou-se sabão, sabonete, óleo de cozinha e de caminhão. Tentou-se com manteiga, banha de porco, sebo, pasta de dente, shampoo e condicionador. Sugeriram estrume de vaca, mais choro e grito. Alguém conhecia um ótimo ferreiro que poderia cortar o metal, mas o risco de ferir a criança era muito grande. Exaustos, foram todos dormir, na esperança que o amanhecer trouxesse uma solução. Pedrinho deitou na cama sem travesseiro, mal acomodado, a cabeça doendo pelas tentativas de puxar a vasilha. Adormeceu vencido pelo cansaço e sonhou que cavalgava um cavalo branco por pastos verdejantes, com um céu totalmente azul manchado pela bola amarela do Sol. 

Acordou com uma baita dor de cabeça! Resolveram levá-lo ao hospital. Passou por uma junta de recepcionistas, depois por uma junta de enfermeiras e, finalmente, por uma junta médica. Todos eram unânimes: era urgente tirar a panela da cabeça do menino para que a dor cessasse. Comunicaram aos pais que a situação era muito grave, pois o crescimento da criança causaria uma pressão cada vez maior, podendo até levar a óbito. Teriam que fazer uma operação delicadíssima, cortando todo o perímetro do crânio logo abaixo da boca da panela; ergueriam a mesma com a tampa da cabeça dentro dela enquanto manteriam o cérebro exposto protegido por uma concha acrílica especial; com sorte tirariam a parte do crânio de dentro do recipiente de metal e a grampeariam na cabeça do menino. Os pais se entreolharam e na mesma hora decidiram que até que não era tão ruim assim o filho ter essa proteção extra na cabeça. Voltaram para casa firmes e decididos a usar outra panela para cozinhar o feijão. Se preciso fosse, até comprariam uma nova. Pedro ficou ainda mais três semanas com o artefato colado ao cocuruto, até que numa tarde fria de julho, sem mais nem menos a panela pulou para fora de sua cabeça. Mas o mal já estava feito, ele seria irremediavelmente o Panela para o resto de sua vida. 

Assim chegou Anacleto, com dois amigos, àquela fase da vida onde as coisas deixam de ser completamente inocentes, quando há dúvidas na hora de escolher calças curtas ou longas, quando a saudade das curtas se intensifica mas o instinto pelas longas é mais forte. Nesse período as meninas deixam de ser amigos, não jogam mais bola ou queimada, delas vem uma fragrância, um perfume tão especial que inebria e entontece, a língua tropeça nas palavras e os pés no chão. Sem saber o que se quer encontrar, os meninos experimentam coisas novas, algumas proibidas, para criar coragem e crescer alguns centímetros no conceito, na avaliação das garotas. Anacleto, Colchonete e Panela tomaram uma dose cada um de um conhaque barato no boteco do Seo Ferreira e foram gargalhando e cambaleando para o bailinho da Mirtes, famosa pelas festas que dava na garagem da sua casa. Chegaram com cara de quem tinha aprontado alguma, os dois empurrando Anacleto à frente, sem saber o que fazer. Johnny Rivers cantava suave na vitrola e, para surpresa dos três amigos, só tinha meninas no salão improvisado. Puderam escolher quem tirar para dançar e, depois de algumas tábuas, ocuparam o centro a meia luz da garagem numa tão obstinada quanto desastrada tentativa de dança.

Alguns pisões e pedidos de desculpas depois, mais rapazes foram chegando, a concorrência aumentando e, de uma hora pra outra, estavam os três jogados num canto da garagem/salão de baile. Se viram os mais novos ali. Os outros eram rapazes do 2º e 3º anos, além de muitos outros bem mais avançados, barba e bigode grosso. Uns eram reconhecíveis mas muitos outros eram forasteiros, de bairros ou até mesmo cidades distantes. Havia passado o efeito do álcool e com ele o sonho de um bailinho só para eles. Sem saber o que fazer, zanzaram pelo salão como quem não quer nada. Separaram-se para diminuir a humilhação e pescaram aqui e acolá conversas muito importantes que não faziam parte de suas realidades. “…Ingressos para o show da Nara Leão…”, “…Comprei um Opala vermelho…”, “…Então ela ficou nuazinha na minha frente…”, “…Agora é só receber o resgate…”! Anacleto sentiu um sobressalto no peito. Será que entendeu bem? Buscou os amigos com os olhos aflitos. Juntou os dois e cochichou:

– Ouvi dois caras falando sobre um sequestro!

– Eram dois caras altos, um de camisa verde e outro de camisa listrada, cinza e rosa? Perguntou o Panela.

– Esses mesmo, por que? Você também percebeu alguma coisa?

– Passei por eles e o camisa verde disse, “Ela já está com a gente, bem trancada”.

– Nossa, e agora? O que vamos fazer? Perguntou Colchonete. Vamos falar pra polícia?

– Não, respondeu Anacleto. Ninguém vai acreditar na gente. Vamos conseguir provas, ver se descobrimos alguma coisa. Vamos ficar de olho até a hora que eles saírem e daí vamos atrás deles.

– Mas Anacleto, eles provavelmente estão de carro, como vamos fazer? Perguntou Colchonete.

– Quanto vocês têm nos bolsos? Vamos juntar tudo. Pagamos o taxi até onde o dinheiro alcançar, depois voltamos de ônibus. Disse Anacleto, já antevendo na aventura riscos e flertes com a morte.

E assim fizeram. Anacleto ficou vigiando dentro da garagem, Colchonete ficou na porta e Panela na calçada. Quando os dois sujeitos deram sinais que sairiam, Anacleto avisou o amigo que assobiou para o outro no meio fio. Deram sorte! O DKW vinha batendo os cilindros lentamente em sua direção. Subiram rapidamente e pediram para o motorista seguir o Fusca bege do seu primo que arrancava logo ali adiante. O condutor seguiu o outro carro com má vontade, subindo a Rua Dom Bosco e virando à direita na Barão de Jaguara. Atravessaram a ponte e viraram na Avenida do Estado à esquerda, sem sair dela por um longo tempo. Dobraram com o rio à direita, em direção a São Caetano, Santo André, até a divisa com Mauá. O dinheiro já estava no limite e o pavor dos três era visível. O Fusca saiu da avenida e enveredou por ruelas escuras até que parou diante de uma pequena casa. Eles saltaram do táxi uma quadra antes e fingiram ser moradores do local entrando em sua casa. Viram quando a porta da casinha se abriu, deixando vazar a luz para a calçada e a sombra de um homem muito grande. Nisso, uma voz trovejante explodiu atrás dos amigos:

– Quem são vocês?

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