Anacleto sonhava e seus sonhos envolviam sua morte. Esta era sua obsessão e era natural que além de fazer parte constante do seu cotidiano, povoasse recorrentemente seu subconsciente, manifestando-se em sonhos tão fantasmagóricos quanto fantásticos. Não era ingênuo a ponto de acreditar num pós-vida idealizado, entre nuvens e anjos, ou choro e ranger de dentes, dependendo da perspectiva; nem era cético a ponto de ver no fim o fim de tudo. Havia algo mais e ele tinha nascido com uma urgência muito grande de descobrir o que seria, sem se dar conta de que talvez estivesse perdendo a cada segundo a maior de todas as experiências possível. Jamais revelava seus sonhos a quem quer que fosse. Quando a mãe perguntava curiosa a respeito, desviava do assunto, dizia que raramente sonhava e, quando sonhava, era com coisas banais do dia a dia, da escola ou dos amigos. Poupava a mãe de mais dores não falando de sangue espalhado, ossos quebrados, pescoço arrochado ou do salto no espaço ao encontro do chão duro, batido.
Houve uma vez, no entanto, um sonho que teve muita vontade de contar mas guardou para si como o maior dos segredos, porque achou esquisito demais até para ele. Sonhou que tinha morrido, até aí nenhuma novidade, os sonhos sempre começavam por aí. Desta vez podia se ver sendo velado, acomodado num caixão, rodeado de flores brancas e vermelhas. Viu seu pai Cleto consolando a mãe Ana que chorava copiosamente. Havia parentes, próximos e distantes, vizinhos consternados e curiosos, professores pesarosos e alunos tentando conter os sorrisos. Panela e Colchonete estavam posicionados do lado de fora da sala, bem em frente à porta, observando silenciosamente todo o movimento, todo o burburinho. Padre Victor da paróquia local chegou solene com a Bíblia surrada às mãos para encomendar aquela alma inocente a Deus, sabendo que somente este poderia perdoar tal desatino cometido contra si próprio. Antes da primeira palavra proferida, Anacleto viu-se distante da cena, ainda que sentisse que estava exatamente no mesmo lugar. Tudo e todos haviam desaparecido!
Piscou freneticamente os olhos tentando entender o que acontecia. Sentiu uma brisa fresca soprar seu rosto enquanto um Sol quente aquecia o vento tornando-o agradavelmente morno. Ao seu redor somente grama, mato, plantas e árvores. Achou que era o Paraíso. Estava numa espécie de floresta tropical, em milhares de tons verdes vibrantes e intensos, cheia de vida. Flores coloridas de vários formatos e tamanhos quebravam a monotonia daquele império verde, tingindo aqui e ali com rosas e azuis, amarelos e lilases, roxos e brancos. Recebiam a visita de abelhas e insetos variados. Estes zuniam alto formando o fundo de uma gigantesca sinfonia de trinados, pios e gritos dos pássaros. Acompanhou o voo de um pequeno sabiá laranjeira acima das árvores mais altas, riscando o céu azul claríssimo, manchado aqui e acolá de nuvens brancas, fofas e algodoadas. Quebrou o pescoço em direção ao chão e viu milhares de formigas marchando apressadamente pelo chão. Formavam um rio vermelho escuro de soldados disciplinados em busca de comida. Notou adiante um revoar de moscas e mosquitos ao redor de um mesmo corpo no chão. Era um pequeno roedor morto, a carcaça aberta mostrando vermes alimentando-se da carne putrefata. Tudo, absolutamente tudo, na mais perfeita harmonia.
Pouco a pouco toda aquela imensa barulheira começou a sumir. Cada bicho, cada pássaro, cada inseto foi silenciando um após outro, até que só se ouvia o murmúrio do vento e o estalar de um galho seco. Atentando um pouco mais podia se perceber o pisado forte e macio de uma onça faminta. Pata após pata, declarando num ronronar intenso: meu… tudo meu… Passou por ele sem vê-lo; somente um arrepio gelado correu de sua nuca à ponta do rabo comprido, pressentindo o que não se pode pressentir. Anacleto acompanhou o afastar do arisco animal observando maravilhado as pintas escuras na pele branca-amarelada brilhante. Meu… tudo meu… meu… foi-se misturando-se entre as folhagens, num disfarce perfeito revelado apenas por um par de olhos furiosos que, quando eram percebidos, era muito tarde. Os murmúrios, sons e a algazarra voltaram aos poucos conforme a dona do pedaço se afastava. Ele ficou por alguns instantes, que poderiam ter sido segundos ou centenas de anos, embevecido por aquele momento, até que um clarão de um milhão de lâmpadas explodiu em seus olhos, seguido de um estrondo ensurdecedor. Pensou que estava cego e surdo até que viu as primeiras gotas prateadas de uma chuva grossa lavar seus olhos e correr pelo seu corpo. Em pouco tempo a água gelada formou uma lâmina no chão lavado, refletindo o mundo num espelho cheio de pingos. As águas tinham endereço, correndo em direção aos filetes de riachos que alimentavam o rio volumoso adiante. Era fundo e transparente, mostrando centenas de peixes no seu interior, sapos e jacarés às suas margens. A água da chuva recolhida dobrou seu volume e em pouco tempo arrastou tudo que lhe era próximo. Passado o temporal, no entanto, tudo voltou ao normal, os que sobreviveram deixaram suas tocas e se alimentaram dos peixes deixados às margens do rio.
O tempo e o espaço não eram barreiras para Anacleto que movia-se para frente ou para trás, para cima ou para baixo num piscar de olhos. Explorava incessantemente tudo à sua volta e mais além. Observava o nascer do Sol acompanhando segundo a segundo sua posição no firmamento, até que este se punha, escondendo-se atrás de uma noite ora escura, ora coalhada de um tapete de estrelas brilhantes e infinitas e uma Lua de várias fases e brilhos. Resolveu descobrir onde se formava aquele rio, seguindo por ele na direção oposta do fluir de suas águas. A cada passo, menor o rio ficava. Menor e menor, até se tornar um fiapo de água cristalina e pura brotando do interior da terra, no alto da serra. Seguiu um pouco mais adiante e viu, do alto da escarpa rochosa que espetava os céus com quase um quilômetro, o mar, gigantesco, batendo-se sobre a terra lá embaixo. Voou lentamente sobre a vegetação pantanosa de terra escura, onde siris e caranguejos olhavam arregalados os pássaros que se aproximavam, e chegou a uma enseada de areia branca e brilhante, pedras moídas pelo tempo. Sorveu o ar marinho, sopa de vida, e sentiu a benção do equilíbrio terra e água, fogo e vento. Tudo é realmente perfeito, tão perfeito como a gota de água que respinga do mar sobre a rocha aquecida pelo Sol e evapora numa nuvem de chuva para retornar ao mar.
Costeou todo litoral em direção ao norte e entendeu que o mar era realmente muito grande! Resolveu atravessá-lo e viu nele muito mais vida, furacões e tormentas, segredos profundos em suas entranhas. Chegou novamente a terras firmes, secas, totalmente secas, mas ainda assim cheias de vida. Escalou os picos mais altos, gelados, sem oxigênio, para descobrir que uma vez lá, só resta a descida. Viu a terra ranger e quebrar-se em pedaços, separando-se em duas, abrindo feridas. Viu jorrar de dentro dela fogo e pedra derretida, destruindo com fogo e cinzas tudo ao redor. Também viu as primeiras folhas de grama verdinha rompendo o tapete da destruição. Alcançou as calotas da Terra, onde só há gelo e vastidão, mas mesmo ali viu a vida se manifestando, na pureza da neve branca, em profusão. Em tudo, absolutamente tudo, havia harmonia e resposta, não havia perguntas nem confusão. Tudo lhe era familiar, como as coisas que aprendemos na escola ou vemos nos filmes da televisão. Era tão natural, tão próximo e verdadeiro, que chegou a pensar que não havia morrido, que não havia ido pra lugar algum.
Resolveu subir o mais alto que pudesse, na direção do Sol a pino, para ter uma visão geral do lugar. Foi subindo lentamente, cada vez mais alto. Passou pelas montanhas mais altas, as nuvens mais carregadas, viu os animais alados mais poderosos muito abaixo de si. Subiu e, à medida que subia, sentia o desconforto do ar rarefeito, a falta do entorno para o qual fomos criados. Avistou o contorno dos continentes, separados pelo mar. Viu a semelhança com os mapas e globos geográficos da escola. A partir de uma certa altura as cores ficaram difusas, cada vez mais homogêneas, num tom cinza-azulado, frio e distante. Passou pela Lua esburacada e viu diante de si o mesmo planeta azulado, a mesma Terra bendita e perfeita, flutuando na imensidão infinita do Universo.
Anacleto acordou ofegante e ensopado, buscando inspirar o ar que lhe faltava. Viu-se apavorado sentado sobre sua cama, em seu quarto, em sua casa. Precisou de alguns instantes para perceber que havia sonhado um sonho intenso, mais real que a própria realidade. Só então deu-se conta que no Paraíso sonhado não havia seres humanos.
CaMaSa
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