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Ele acordou com o som do despertador do celular indicando as 7h31m do dia 27 de abril de 2058. Há décadas se propusera esse horário para pular da cama, mas geralmente acordava antes. Não nesse dia. Foi o beep-beep intermitente do aparelho eletrônico que o tirou do mundo dos sonhos. Completava 100 anos de idade, um século! Mesmo então, era privilégio para poucos. Havia aqueles que possuíam uma constituição naturalmente resistente para suportar a passagem do tempo, e havia os que eram mantidos pela biotecnologia disponível a um custo muito alto. Esse era seu caso. Fisicamente saudável à beira da perfeição, vinha perdendo aceleradamente nos últimos tempos, no entanto, a ferramenta mais importante de todas: a memória.

Ainda morava na cobertura do seu prédio de 52 andares da Avenida Paulista. De lá, tinha uma vista panorâmica de 360º de toda São Paulo, a capital do seu império particular que se estendia para além dos limites da cidade, do país e do mundo. Nas duas últimas décadas porém, tudo isso tinha perdido a pujança, mostrando sinais de decadência por toda parte. O edifício, antes servido por um conjunto de 12 elevadores super-rápidos, agora tinha somente o seu, particular, atendendo sua moradia. Nenhum dos andares estava ocupado por escritórios de representação das empresas multinacionais mais poderosas do mundo, mas por viciados e sem-teto marginalizados pela sociedade. Tudo era decrépito, com paredes descascadas e sujas, lixo acumulado por todo lugar e um malcheiroso odor que somente os seres humanos são capazes de produzir. Não havia água nem eletricidade no prédio todo, exceto para sua cobertura que se mantinha limpa e conservada graças aos seus últimos serviçais.

Eram decorridos pelo menos 12 anos desde que havia recebido sua última visita social. A partir de então, não mais recebeu ninguém nem saiu de casa, tendo uma relação com seus multibilionários interesses no mundo, de forma totalmente virtual. Quando percebeu que a memória começou a dar as primeiras falhadas, consultou os maiores especialistas e instituições, recebendo de todos o mesmo diagnóstico: a perda era irreversível e era uma questão de tempo para se dar a amnésia total. Ele compreendeu que seria uma baleia ferida no mundo das transações bilionárias no oceano financeiro infestado de tubarões, ávidos por sangue. Tratou de concentrar toda sua riqueza em fundos de investimento suíços, absolutamente seguros, confiáveis e de total liquidez, caso necessário. Retirou de circulação da economia mundial o equivalente a 12% dos ativos, da noite para o dia, provocando crises catastróficas até nos países mais ricos e estruturados economicamente, gerando falências em massa e hordas numericamente inimagináveis de gente faminta. A decadência que o cercava era consequência direta disso.

A data de hoje, no entanto, era especial. Tinha planejado com antecedência e dado ordens específicas ao mordomo que organizou tudo com perfeição. Os monitores dos computadores reluziam o número cem, havia cartazes espalhados por todo apartamento estampando o aviso de aniversário de 100 anos, de todos os tamanhos e cores, para recordá-lo da importância desse momento e dos compromissos e promessas que havia feito a si mesmo para realizar nesse dia. Tomou um café da manhã frugal preparado pela equipe de cozinheiros e, logo após, sentou-se diante do seu computador pessoal, que já o aguardava ligado com a tela de login esperando por sua senha. Refletiu por alguns instantes sem saber o que fazer e, antes que entrasse em desespero, seu secretário particular surgiu ao seu lado e pegou sua mão direita, numa espécie de cumprimento formal. Na junção de seus indicadores surgiu uma sequência de caracteres tatuados formando a palavra-passe para iniciar o aparelho. Nele encontrou instruções para o “Aniversário de 100 anos”, com orientações para imprimir o documento chamado “Liberdade” e o endereço do colégio Firmino de Proença, na Rua da Mooca.

Ele trocou o pijama por um terno de bom caimento e demorou alguns minutos para escolher uma das milhares de gravatas à disposição. Não tinha mais o vigor mental, mas sua aparência física era de alguém na casa dos 50 anos de idade. Assustou a criadagem quando se encaminhou para o elevador e os deteve com um enérgico gesto de mão. Ficaram boquiabertos quando a porta se abriu e ele apertou o botão do térreo, descendo impassível para o mundo completamente mudado que o aguardava lá embaixo. Chegou ao lobby e não prestou atenção ao estado lastimável em que este se encontrava, indo direto para a calçada. Chamou um táxi e rumou para seu objetivo.

Chegou ao número 363 da Rua da Mooca e imediatamente as lembranças invadiram seu cérebro. Deu-se conta que muito havia mudado mas a essência estava lá. O ano letivo estava em andamento mas felizmente era sábado e a reunião com o diretor do colégio tinha sido agendada previamente. Uma jovem e bonita assistente veio ao portão para recebê-lo. Ele perguntou se podia dar uma volta pelo colégio antes da reunião e ela respondeu que ficasse completamente à vontade, deixando-o sozinho. Estava na entrada principal e lembrou das fotos coletivas, quando a professora organizava a classe inteira na grande escadaria, dispondo os alunos uniformizados nos degraus da escada, uns ao lado dos outros. Lembrou-se da foto do segundo ano primário em que, para estragar a imagem, escondeu-se atrás de um dos colegas no exato momento em que o fotógrafo disparou a máquina. De toda classe, ele era o único aparecendo na foto com um olho, meio nariz e meia boca.

Caminhou pelos corredores até chegar ao portão interno que dava para o pátio. Recordou das manhãs nas quais todos os alunos do colégio cantavam perfilados o Hino Nacional. Refletiu que a disciplina da época nunca permitiu que ao final os alunos explodissem em palmas e gritos. Estes eram permitidos durante os recreios, onde grupinhos de várias idades formavam-se para trocar ideias e combinar atividades extracurriculares. Nas salas de aula aprendia-se português, matemática, história, geografia, biologia, química, física, artes, desenho, música, inglês, francês, filosofia e moral e cívica. Nas quadras externas, professores de educação física estimulavam as atividades esportivas. Tudo gratuito, num colégio estadual! 

Chegou à biblioteca que lhe pareceu tão pequena agora. O quadro com a representação gráfica da fauna e flora brasileiras ainda estava no mesmo lugar, logo à esquerda da entrada, desbotado pelo tempo. Dele saíram vários apelidos: Tucano, Jiboia, Rato, Gazela… Lembrou-se de um livro sobre psiquiatria que o impressionara muito. Era um estudo de caso, todo documentado e fotografado, contando a história real de uma moça que dava entrada numa instituição e, após uma longa e penosa série de tratamentos variados, saia de lá com algum documento comprovando sua cura, mas com os olhos sem brilho e sem vida, como de alguém que tivesse perdido a alma.

Quando se aproximou da sala da diretoria, notou a porta entreaberta e entrou sem avisar. O diretor e sua assistente surpreenderam-se com a intromissão, quase pegos no flagrante amoroso. Ele preferiu ignorar e ir direto ao assunto que lhe trazia ao colégio. Tirou do bolso do paletó um pequeno envelope pardo que continha uma única folha, dobrada duas vezes. Desdobrou-a lentamente mas não expôs o conteúdo ao diretor. Olhou para o casal avaliando se deveria pedir privacidade para a moça. Ela deveria ter pouco mais que vinte anos, contrastando sua juventude com os mais de quarenta do amante. Achou que não faria diferença alguma, já que o diretor tinha no dedo anelar da mão esquerda somente a marca de pele mais clara da aliança.

Contou rapidamente como havia conquistado sua imensa fortuna, à custa de muito esforço e influência. Estivera sempre à sombra do poder, mas era peça pivotante da política do país. Expandiu-se por todo o mundo sem que não mais do que meia dúzia de pessoas soubessem quem ele realmente era. Fora causador do crack de 2046, apenas retirando de circulação sua fortuna pessoal. Olhou para o documento em suas mãos e explicou que aquilo transferia de modo irreversível todo aquele incrivelmente absurdo montante de dinheiro para o seu portador. E ele havia decidido que tal pessoa seria o dirigente da escola em que ele havia estudado os cursos elementares de sua formação. Perdeu o fio do pensamento por alguns instantes e quando retomou teve que se esforçar para entender onde estava. Quando recobrou a consciência explicou ao diretor que tais recursos deveriam ser aplicados integralmente na reestruturação do colégio, assim como na ampliação do mesmo e na expansão do benefício a todo o sistema educacional brasileiro.

Terminada a explanação, assinou o documento, levantou-se e foi embora deixando para trás o casal atônito e sem entender o que havia acontecido, se aquilo era real ou somente o delírio de um louco. Quando chegou na rua já não tinha a mínima noção de onde estava, para onde deveria ir e quem era. Virou à direita, em direção à Praça da Sé, e lá estabeleceu sua residência a céu aberto, sem jamais recuperar a memória.

***

O casal apaixonado desfrutava a garrafa mais cara da carta de vinhos do Le Jules Verne, restaurante de alta gastronomia que fica no 2º andar da Torre Eiffel, em Paris. Ele achou que era a coisa mais romântica que podia oferecer a ela nessa primeira viagem internacional de ambos. Teve tempo de deixar a mulher e os quatro filhos, surpreendentemente ricos de uma hora para outra, com uma conta poupança de 100 milhões de reais. Uma ninharia diante do que possuía agora. Nem a ex-esposa, nem ninguém no Brasil, sabia do paradeiro do ex-diretor do colégio estadual Antônio Firmino de Proença.

CaMaSa