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O primeiro beijo a gente nunca esquece, claro, mas as circunstâncias do fato podem torná-lo épico, dramático ou absolutamente embaraçoso. Aos 9 anos eu acompanhava a cena musical brasileira através dos olhos e ouvidos da irmã mais nova. Os festivais de música popular brasileira (MPB), com seus artistas cabeludos, esquisitos e vestidos de uma forma estranha, de um lado, e a Jovem Guarda, com seus artistas cabeludos, esquisitos e vestidos de uma forma estranha, do outro. Para mim era tudo absolutamente visual e cenas como a de um cantor quebrando o violão no chão e jogando o instrumento todo arrebentado sobre o público que o vaiava incessantemente, ou a de senhoras, já avós, jogando pétalas de rosas no monitor da TV, em preto e branco, para alguém que as mandava para o inferno, eram bem marcantes.

Na época eu achava que ambos movimentos defendiam posições distintas, com a turma da MPB defendendo uma arte musical própria, nacional, de raiz, falando sobre as necessidades do povo e suas aspirações, propondo uma revolução cultural através da liberdade e da igualdade, e o pessoal da Jovem Guarda buscando na internacionalização da música e do jeito de ser, falar e se vestir, um estilo de vida que se queria alcançar através de um atalho, copiando o que já era sucesso comprovado. Com o tempo percebi que estavam do mesmo lado, que através de qualquer expressão artística, só é possível alcançar o próprio sucesso, gigantesco e duradouro para alguns, muito pequeno e curto, em termos de sustento, para outros. Que não é dessa forma que se conduz uma nação e seu povo a um patamar mais elevado, ainda que alguns ainda creiam sinceramente nisso.

Mas era uma época de ídolos dourados, como hoje, e fãs alucinados, como hoje. Eu gostava de todos. As músicas eram muito boas e divertidas e alegravam um povo sofrido e com poucas perspectivas. Mas a verdade era que enquanto o pessoal da MPB fazia cabeças e agitava o público universitário, mais politizado, a turma da Jovem Guarda causava um furor apaixonado nas adolescentes de 8 a 80 anos. Certa vez o Príncipe da juventude faria uma apresentação no colégio Firmino de Proença, perto de casa. Não sei se eram os olhos verdes ou os cabelos longos jogados sensualmente para o lado, mas suas músicas românticas e melosas provocaram um verdadeiro tumulto, sendo necessário a intervenção da polícia militar para conter a multidão. Eu acompanhava tudo na segurança da cozinha/ateliê de costura de casa, recebendo notícias picotadas através da rede de informações das minhas irmãs e suas amigas. Se com um Príncipe a coisa já tinha sido tão intensa, imagina o que seria um show do Rei!

O Rei, e sua corte, não ia a colégios. Suas apresentações só aconteciam em horário e local definidos, num padrão único que seguia um ritual planejado com mão de ferro. O sonho de toda jovem era participar desse conto de fadas televisivo ao vivo e a cores, já que as transmissões ainda eram em tons de cinza. Naquele ano mudara-se para nosso prédio uma encantadora família carioca, com seu jeito diferente e divertido de falar e viver a vida. O pai viera a trabalho e trouxera a tiracolo a mulher, dois filhos mais velhos, e duas filhas Sony e Quinha. Sony era a mais nova, rosto rechonchudo e cabelos crespos, com um jeito de falar choramingado que provocava um humor involuntário em qualquer situação. Quinha era um pouco mais velha, morena jambo, muito bonita, com formas acariocadas perfeitas que provocavam devaneios nos meninos por onde passava. Eu, que de uma maneira inocente sempre gostei de meninas, fiquei completa e platonicamente apaixonado por aquela beleza exótica. Como as duas eram alucinadas pelo Rei, criaram um vínculo imediato com minha irmã e eu, por motivos óbvios, passei a me interessar cada vez mais pelo assunto, demonstrando até saber muito mais do que realmente sabia. Eu fazia parte desse minúsculo fã clube de três garotas sonhadoras, que passavam os dias trocando informações sobre cada detalhe dos cabelos, das roupas, das músicas, de tudo enfim que dizia respeito aos reis do iê-iê-iê. O grande objetivo do clube era participar do programa num domingo de sonho. E sonhavam a valer, planejando minuciosamente como atingiriam essa realização, como comprar os ingressos, como chegariam até lá, com que roupas iriam, etc. Eu estava fora dos planos, mas sonhava com a mesma intensidade com o dia que a Quinha declararia sua paixão por mim, pegaria minha mão e passearia comigo pela rua, para grande espanto e admiração dos meus amigos.

Quem sonha com os pés no chão conquista e, de tanto insistirem e lutarem por isso, chegou o dia em que finalmente iriam ao show, conhecer de perto a Jovem Guarda. Haviam conseguido os três ingressos através de um amigo de um amigo do seu pai, e a alegria das meninas era tão intensa que mal se reparava na minha tristeza infinita. A semana, que para elas custava a passar, para mim se arrastou lentamente, fazendo de cada minuto um eterno calvário de sofrimento infanto-juvenil. Era duro demais! Não que eu quisesse conhecer pessoalmente esses ídolos, gritar suas músicas ou me descabelar. Eu só queria estar junto da Quinha, ouvir a sua voz e rir com sua risada. Mas, seja porque meu sonho era mais intenso, ou porque catapora era real e atacava crianças indiscriminadamente, Sony amanheceu o domingo com febre alta e com a pele toda pipocada. Sorte de uns, azar de outros, o ingresso caiu no meu colo, para minha felicidade. De uma hora pra outra saí de um inferno de dor para um paraíso de possibilidades. Banho rápido, roupas de festa, até um perfuminho! Embarcamos num ônibus até um lugar, descemos e pegamos outro que nos deixou em frente ao teatro. Um enorme aglomeração de jovens formava-se diante da porta, concluindo uma fila enorme que dava voltas no quarteirão. Eu ficava entre minha irmã e Quinha, que seguravam firmemente minhas mãos, recomendação muito específica de minha mãe. Eu suportava tudo com um leve sorriso de satisfação no rosto, aproveitando ao máximo o meu momento. Duas horas depois entramos no local.

It’s been a hard day’s night, eu me sentia como um dog! Perdidaço… Que zoeira, quanta gritaria! Como era possível alcançarem tantos decibéis? E, à medida que a coisa ia se aproximando do final, ao invés do som diminuir, aumentava cada vez mais, numa espiral crescente e ensurdecedora. Pelos meus cálculos, já haviam passado barões, condes e viscondes pela corte e chegava a hora de que os reais representantes do reino fariam suas apresentações. O Amigo do Rei, a Princesa e, finalmente, o próprio Rei, cantaram o que tinham pra cantar, deixando o público em estado de êxtase indescritível. Chorados e alucinados bis foram concedidos economicamente e, enfim, as pesadas cortinas de veludo juntaram-se no meio do palco encerrando aquela tarde inacreditável. 

O teatro esvaziava muito rapidamente mas minha irmã preferiu ficar sentada aguardando que as coisas acalmassem. A grande maioria ia para a porta na esperança de encontrar o Rei saindo de carro. Era impossível, claro, havia uma saída secreta para essas situações, livres de qualquer possível assédio. Aproveitei esse momento de espera para ir até o palco e ver aquilo de perto. Não era muito alto, cerca de 1,10 mts de altura, e, num gesto impulsivo, saltei para cima e atravessei a abertura das cortinas. Foi como passar por um portal mágico que me conduziu para um reino mágico e encantado… mas, de verdade, era bem normal para qualquer um que tivesse alguns anos a mais que eu. Os instrumentos estavam lá, alguns músicos, técnicos e produtores. Vi um pequeno grupinho com três pessoas e me aproximei. Nele estavam o diretor do programa, um tal de Melão que eu já tinha visto em algum programa de entrevistas, o amigo do Rei e a Princesa. O diretor olhava para mim e o Amigo percebendo minha presença disse:

– Ei, você é o Batman? Que bom te ver por aqui!

Eu achei aquilo muito legal e deu pra entender porque o Rei gostava dele e o chamava de Meu Amigo. A Princesa Léa apontou seus enormes olhos verdes em minha direção, aproximou seu rosto lindo do meu para me beijar. Nesse instante, eu, por reflexo, virei o rosto para o lado direito e os seus lábio macios estalaram um beijo de bochecha na minha boca! Ela riu gostosamente e disse:

– Que gracinha você é! Está sozinho? Não é melhor voltar para sua mãe?

Ela me virou na direção da abertura da cortina e eu segui como um robô, voltando para as garotas que me esperavam ansiosas. Queriam saber onde eu havia me metido, onde estava e com quem? Mas eu não tinha nada pra dizer, havia vivido um momento muito especial, só meu, tinha tido uma lição e compreendido uma coisa muito importante que moldaria meu comportamento para sempre. Na minha simples infantilidade, havia percebido que aquelas pessoas eram pessoas comuns em papéis extraordinários. Que desempenhavam suas funções em resposta a milhares de pessoas que assim os viam e, assim, os faziam existir. E isso valia para artistas, políticos e líderes de qualquer espécie. Sem querer, humildemente, ali eu havia superado toda a idolatria, com o selo de um beijo.

CaMaSa