Quando mudamos da rua Dom Bosco, na Mooca baixa, para a Professor Elias Vita, no Parque da Mooca, foi como soltar um sagui da gaiola na floresta. Saímos de uma casa a pouco mais de 1 quilômetro do marco zero da Praça da Sé, à época o verdadeiro centro comercial de São Paulo, para uma fazenda de sol e luz! A Dom Bosco era um lugar cinza, escuro, o sol não fazia questão nenhuma de dar as caras por lá. Nossa casa ficava a um quarteirão de distância do Rio Tamanduateí, que vira e mexe se esparramava até nossa calçada, com suas águas escuras e fétidas. Certa vez choveu tanto, mas tanto, que o nível do rio subiu muito além do normal, chegando até ao oitavo degrau da escadaria do nosso prédio! Ficamos ilhados por mais de três dias, sem condições de sair de casa para nada, nem para comprar comida. Quando a chuva diminuía eu saía no balcão e ficava observando a água marrom, repleta de manchas de óleo, passando vagarosamente pela rua. Não podíamos nos queixar. Muitas famílias moravam em porões, a água chegando até o teto, destruindo tudo do pouco que tinham.
Nós nos mudamos para um sobrado geminado com três quartos, sala, cozinha, três banheiros, quintal e lavanderia! Era uma tremenda evolução no padrão, confirmada pelo cheiro fresco de tinta nova. Na rua, além do sobrado ao lado, havia mais cinco ou seis casas, além da construção inacabada do futuro hospital São Rafael, que nunca foi concluído. E mamona, muita mamona. Meu Deus do céu, quem teria plantado tanta mamona assim? Tinha mato e pé de mamona desde a rua Juatindiba, futura rua Juventus e única asfaltada além da minha, até os tanques da Esso, que para mim, aos 12 anos, pareciam estar a centenas de quilômetros. A rua terminava num morro alto, muito mais alto do que um sobrado de dois andares, cortando a terra dos dois lados, formando paredões verticais muito íngremes. Sobre ele estava plantada uma das torres de transmissão de eletricidade, estilo Eiffel, magras, elegantes, altíssimas. Lançavam umas para as outras fios pretos longos como cabelos lisos e esticados.
Tudo era novidade, assim como a família de seis filhos que morava numa das casas. Uma das crianças era um menino um ano mais novo que eu, gordinho e muito simpático. Ficamos amigos imediatamente e protagonizamos uma série de aventuras típicas da pré-adolescência. Certa manhã, resolvemos experimentar aquilo que tanto interessava aos adultos e era proibido para as crianças. Resolvemos fumar cigarros! Roubamos um maço pela metade da sua irmã mais velha, uma caixa de fósforos, e, discretamente, fomos para o campo do Democrático. A caixa d’água ficava no ponto mais alto do bairro, para que a gravidade fizesse seu trabalho. Ela ficava do lado norte da Avenida Paes de Barros, a mais importante e larga da região. De frente para ela, ao sul, estendia-se um declive, em princípio bem acentuado, até o bairro do Ipiranga, do outro lado do rio.
Do outro lado da avenida havia uma construção enorme, de um prédio de apartamentos de mais de 15 andares. O fundo dessa construção dava para um arco enorme, inclinado como um auditório gigante. Nas duas extremidades havia escadas muito altas, com quase 300 degraus. No centro, um platô liso formava um campo de futebol de várzea, com uma das traves no pé do morro, abaixo da construção, e a outra no lado oposto, de costas para uma rua de barro que descia atravessando a Juatindiba, passando ao lado do hospital João XXIII, seguia ao largo da cerca dos fundos do clube do Juventus e continuava até chegar na Esso.
Nesse campo imenso resolvemos, eu e meu amigo gordinho, experimentar essa autêntica delícia adulta de tabaco. Fumamos um cigarro inteiro cada um e eu, ao final, senti o mundo girando, o estômago revirando e minha boca vomitando… Nunca mais fumei. Mas aquilo me deixou com uma sensação de frustração intensa, daquelas que precisam ser recompensada de qualquer jeito. Olhei para o pé da trave e vi encostado um velho pneu. Uma ideia brilhante surgiu no momento. Uma competição entre nós para espantar o baixo astral! Faríamos o pneu rolar ladeira abaixo e quem o fizesse chegar mais longe, seria o vencedor da disputa.
Peguei o pneu despretensiosamente, aprumei e soltei. Ele começou a corrida titubeante, balançando como um bêbado de um lado pro outro, foi ganhando força, velocidade, quicando cada vez mais forte, mais rápido… nessas alturas já estava no meio do quarteirão, nós dois olhando um para o outro, olhando para o pneu, cada vez mais veloz… Aí meu Deus, que burrada! O besta do pneu não parava, já voava como carro de corrida o miserável e, finalmente, atravessou o farol vermelho da rua como se tivesse vida própria!
Nisso ouvimos um barulho assustador de um carro brecando bruscamente, mas sem chance de evitar o impacto. O motorista teve tempo de piscar os olhos antes de atingir o pneu que saiu voando alto, muito alto mesmo, como se fosse normal pneu voar. Não que nós estivéssemos ficado lá pra ver. Na velocidade da luz subimos uma das escadarias, chegando na avenida em menos de três respiradas. Descemos até a rua da Mooca e só voltamos para casa muitas horas depois.
Quando voltamos pra casa soubemos do “acidente”… Ninguém sabia dizer como aconteceu, mas parece que um pneu desceu ladeira abaixo e foi atingido por um Chevroletão antigo, com para-choques de metal, que vinha em grande velocidade. O pneu foi lançado com violência sobre uma viatura que vinha no sentido contrário. Voltou quicando na outra direção e bateu de raspão na cabeça de uma menina que estava engasgada com um bala presa na garganta. A bala voou longe enquanto a mãe, chorando desesperada, caia de joelhos no chão agradecendo a Deus nosso senhor! No carro havia dois homens e uma mulher. Sob o banco traseiro, camuflado e muito bem disfarçado, havia um pacote enorme com quilos de pasta de cocaína que seria usada para produzir muita droga. Os ocupantes do veículo foram levados à delegacia para averiguações e, ao que parece, não sairiam de lá tão cedo.
Todos na vizinhança comentavam o fato e acrescentavam um pouco mais de drama e fantasia à medida que o tempo passava, de tal forma que já atribuíam à intervenção divina o surgimento milagroso do santo pneu. De fato, chegaram a fazer uma pequena coluna de concreto na esquina do ocorrido e fixaram o pneu com grapas de ferro, de tal modo que através dele se podia ver o exato local onde ele havia atingido a cabeça da menina. Começaram a colocar flores e laços de fita, pedidos de ajuda em pedaços de papel. Sua fama foi crescendo a cada dia, atribuindo ao agora Círculo Látex Divino da Amazônia as curas mais diversas, de caxumba a tendinite, espinhela caída a impotência! Colocavam a cabeça, os braços, as pernas no vão do pneu para receber as graças. Tiravam fotos com o aro formando uma moldura preta. Trouxeram um padre e água benta, um pastor com a Bíblia e um pai de santo. Quando chegou o rabino virou o maior encontro ecumênico da região em muitos anos.
Uma noite, já hora avançada, enquanto todos dormiam e o pneu descansava de um dia de intensa romaria, forrado até a tampa de papel e flores secas, dois moleques arteiros atearam fogo à papelada e ficaram horas assistindo a fogueira ardendo e gemendo, com uma fumaça escura que ia da calçada na terra até o infinito do céu. Na manhã seguinte o pneu havia sumido… sem deixar marcas.
CaMaSa
Kkkkkkk, eita traquinagem…. Adorei também a “chapinha” dos fios de alta tensão. Agora conta só pra mim, rsrs, o quanto de verdade tem nesse “Santo Pneu”?
A verdade é o que realmente acontece e vivemos. O que se escreve Edson, é tudo invenção. Um abraço!
Show
A crônica do São Pneu está uma delícia de ler.
Obrigado Roberto! Divirta-se!